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Chegou a hora de descobrirmos a violência nas palavras de Fernanda Melchor

Os seus livros são poderosos ensaios sobre as raizes do mal e da violência, de onde vem o que pior existe na humanidade. A autora mexicana Fernanda Melchor está finalmente publicada em Portugal.

O cheiro “era pior que um punhado de areia na cara” e “tirava a vontade de continuar a avançar”. “Mas o líder apontou para a beira do carreiro e os cinco, de gatas sobre a erva seca, os cinco, agrupados num só corpo, (…) reconheceram por fim o que espreitava sobre a espuma amarela da água: o rosto pobre de um morto entre os juntos e os sacos de plástico que o vento impelia da estrada, a máscara escura que fervilhava numa miríade de cobras negras, e sorria.” O corpo inchado da decomposição pertencia à Bruxa, a figura misteriosa que vivia numa casa isolada na aldeia de La Matosa. Ninguém sabia o seu nome e o seu rosto, sempre escondido sob um grosso véu negro, mesmo nos dias quentes, era um enigma para muitos. Circulavam muitas histórias sobre ela — que era rica e que tinha um tesouro escondido sob o chão de casa, que sabia feitiços poderosos e que tinha feito um pacto com o Diabo. Nenhuma era verdadeira. Foi preciso que morresse para que a verdade fosse revelada.

A Bruxa é a personagem central de Tempestade de Furacões, o poderoso segundo romance de Fernanda Melchor, finalmente disponível em Portugal (edição da Elsinore). Publicado em 2017 no México, o livro tornou-se internacionalmente conhecido em 2020, com a publicação da edição em inglês e a nomeação para o International Booker Prize, importante prémio de ficção traduzida a que a escritora mexicana de 40 anos voltou a ser candidata em 2020. Um duro mas profundamente poético retrato de uma pequena aldeia no México dominada pela morte, violência, preconceito e superstição, Tempestade de Furacões é uma reflexão sobre as origens da violência. Uma questão que atormenta e fascina a autora: “A violência sempre foi um mistério para mim”, admitiu ao The New York Times. “Porque é que acontece, como acontece, como parece provável que todos somos capaz de a cometer… Sempre foi fascinada por isso tudo.” Os livros de Melchor, que têm sempre a realidade como ponto de partida, exploram “com horror e humanidade” (uma expressão usada pela tradutora Sophie Hughes) o lado mais negro do ser humano, ao mesmo tempo que tentam compreender a origem humana da violência, que não se restringe a um ambiente de dificuldades e pobreza, como o mais recente romance da autora, Paradais, mostra: o horror pode nascer até no mais fecundo dos solos.

Fishing Industry in Veracruz Affected by Coronavirus Pandemic

Fernanda Melchor nasceu e cresceu em Veracruz, onde se passam a maior parte das suas narrativas

Getty Images

Fernanda Melchor, que é formada em Jornalismo, percebeu cedo que a realidade é a melhor amiga do escritor. Durante anos, visitou cantinas (um tipo de bar comum na América Latina) e locais frequentados por toxicodependentes em Veracruz, a sua cidade natal, recolhendo histórias que guardava num caderno, hoje transformado num enorme ficheiro de computador. Foi com uma dessas histórias que a sua carreira, literária e também jornalística, arrancou. Tudo começou em 2003, com um concurso de ensaios. Melchor estava no segundo ano do curso de Jornalismo na Universidade de Veracruz. Frustrada com a falta de trabalho prático, decidiu concorrer ao desafio lançado pelo La Jornada, um jornal da Cidade do México. Enquanto pensava sobre o que escrever, lembrou-se de um incidente que tinha ocorrido seis anos antes, numa aldeia de 236 habitantes na fronteira que liga os estados de Veracruz e Oaxaca: um homem acusado de ter violado e assassinado uma vizinha, foi capturado pela população, amarrado a uma árvore, torturado até confessar o crime e incendiado após ter sido regado da cabeça aos pés com gasolina. O ato aparentemente impulsivo, perpetuado por uma população habituada a ver os crimes contra as mulheres ficarem impunes, foi minuciosamente planeado: segundo a Vulture, foi formado um comité de condenação e recolhidas quase 200 assinaturas a favor da execução do criminoso.

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A capa da edição portuguesa de "Temporada de Furacões", de Fernanda Melchor (Elsinore)

O processo foi todo filmado e a gravação transmitida pelo telejornal do canal de televisão TV Azteca, o segundo maior do país. A escritora, que tinha 13 anos na altura, lembra-se de ver “um homem a arder na televisão” e de sentir que precisava de saber “o que se tinha passado”. A história era “aterrorizadora, fascinante e de certa forma bonita”. Fernanda Melchor decidiu contá-la, ao jeito de Truman Capote, com quem tem sido muito comparada. O texto, que escreveu com a ajuda de um estudante mais velho de Jornalismo que só queria ir para a cama com ela, ficou em segundo lugar no concurso do La Jornada. Uma versão revista foi incluída no primeiro livro da autora, Aquí No Es Miami, uma coleção de histórias verídicas que terá este ano, em abril, a sua primeira edição em inglês, com chancela da editora australiana independente Text Publishing. A tradução é de Sophie Hughes, que foi responsável para verter para o inglês os dois romances da autora publicados no Reino Unido e Estados Unidos da América: Temporada de Furacões e Paradais. Aquí No Es Miami é o único livro de não-ficção de Melchor, mas não se trata de jornalismo, como a própria esclarece no prólogo. “No México, o jornalismo está ainda preso a uma fantasia antiga de que tem de ser totalmente objetivo, como se nos pudéssemos transformar num olho flutuante sem corpo, sem passado e sem ideologia própria”, declarou à Vulture em 2022, numa altura em que se encontrava em Berlim. “Para mim, isso é ridículo. O que devemos fazer é usar a nossa subjetividade e tirar vantagem dela.”

A credulidade faz parte do enredo de "Temporada de Furacões", na forma de uma superstição que tanto consola como revolta. A Bruxa é procurada para para curar, mas é também usada como bode expiatório. É nela que os jovens quebrados de La Matosa descarregam as suas frustrações. 

Melchor, que sempre escreveu ficção, mesmo antes de se tornar jornalista, encarou como natural a viragem definitiva para o romance. Essa aconteceu no ano da publicação de Aquí No Es Miami, 2013, com o lançamento de Falsa Libre, sobre quatro jovens que vivem num ambiente desesperante, rodeados pelo vício, prostituição e violência. Em 2017, saiu Temporada de Furacões que, após a publicação em inglês em 2020 e a nomeação para o International Booker Prize no mesmo ano, tornou Melchor conhecida e reconhecida fora do México. O livro foi amplamente elogiado pela imprensa inglesa e norte-americana e chegou à shortlist do International Booker, mas o prémio acabou por ir para O Desassossego da Noite, de Marieke Lucas Rijneveld. A autora mexicana voltou a ser nomeada para o mesmo galardão em 2022, com o seu mais recente romance, Paradais, mas não passou da longlist.

Temporada de Furacões: uma vila esquecida, ao sabor da violência

Temporada de Furacões passa-se numa vila isolada no México onde os seus habitantes vivem enfeitiçados pela misteriosa e enigmática Bruxa, uma curandeira local sobre a qual se contam muitas e estranhas histórias. A aura mágica que rodeia a figura vai-se desvanecendo à medida que o romance avança e o leitor fica a saber que a Bruxa é, afinal, um transexual que apreendeu o ofício de curador com a mãe, conhecida pelo mesmo nome. As mulheres de La Matosa batem-lhe recorrentemente à porta em busca de uma receita milagrosa para os seus males, porque acreditam no seu poder e porque não têm mais onde pedir ajuda. As restantes personagens do romance são sobretudo jovens que frequentam a casa da Bruxa e as festas organizada por esta na sua cave. As suas histórias, pessoais e familiares, vão sendo reveladas ao longo da narrativa, escrita numa torrente de linguagem que é apenas interrompida pelo fim e o início de cada novo capítulo, como notou o Observador num artigo publicado em 2022, a propósito da nomeação de Temporada de Furacões para o International Booker Prize. A história é contada por um narrador que, como destacou a Vulture, está “simultaneamente dentro e fora da cabeça das personagens, experienciando em alta definição o pathos que origina cada (geralmente má) decisão e a cadeia de eventos que desencadeiam” a morte da Bruxa. É o relativo distanciamento dessa voz narrativa que permite a Melchor descrever as situações mais incómodas e transmitir de forma subtil as denúncias e alertas que considera importantes.

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Uma cerimónia ritual realizada a 19 de abril de 2022, no âmbito do Dia Cultural de Veracruz, no México

Future Publishing via Getty Imag

Tal como as restantes obras de ficção de Melchor, Temporada de Furacões é baseada numa história verídica. Numa vila não muito longe da terra natal da escritora, Veracruz, uma mulher foi encontrada morta num canal, assassinada por um homem que a acusou de usar magia para fazer com que ele se apaixonasse por ela. O detalhe do corpo a boiar na água impressionou de tal forma a autora que esta o usou na abertura do romance. Melchor, que soube do crime por um jornal local, ficou também “surpreendida” pelo tom da notícia, que relatava o que tinha acontecido “de uma maneira que fazia parecer natural que um crime fosse motivado por bruxaria”. Numa região onde o sobrenatural faz parte do dia a dia das populações, até que o era. Prova disso é o facto de a polícia não ter questionado a justificação apresentada pelo assassino. “Fiquei chocada e quis contar a história por detrás do crime”, admitiu numa entrevista à Deutsche Welle, concedida por altura da atribuição a Temporada de Furacões de um prémio de literatura internacional em Berlim, em junho de 2019.

Fernanda Melchor, que não tem o fascínio pelo sobrenatural de muitos dos seus compatriotas, tem dificuldades em acreditar em bruxas e feitiçaria. Mas tem consciência de que as pessoas à sua volta, especialmente em Veracruz, “acreditam mesmo nisso” e que não o podia ignorar no seu livro. Os rituais descrito “são mesmo os que as bruxas em Veracruz fazem. As pessoas acreditam mesmo nessas formas de cura e nesse tipo de espiritualidade”, explicou à rádio alemã. Essa credulidade faz parte do enredo, na forma de uma superstição que tanto consola como revolta. A Bruxa é procurada para para curar, mas é também usada como bode expiatório. É nela que os jovens quebrados de La Matosa descarregam as suas frustrações. A vila tem o típico ambiente claustrofóbico de uma pequena localidade isolada, onde todos se conhecem e onde tudo se sabe. Os seus habitantes são machistas e preconceituosos para com as mulheres, os homossexuais e os transexuais. A violência é oferecida de forma diária e gratuita pelas autoridades, membros de cartéis e até familiares.

"Paradais" aborda, de maneira distinta do romance anterior, não apenas a violência de uma maneira geral, mas especificamente a violência contra as mulheres e a forma como estas são estigmatizadas e objetificadas pelos homens.

A escritora mexicana, para quem a parte mais interessante da história que lhe serviu de inspiração era “o triângulo amoroso” por trás dela e não “o cadáver putrefacto com a garganta cortada”, gostava de ter visitado o local do homicídio, como Truman Capote fez para Em Sangue Frio, mas os traficantes de droga que vivem escondidos na região tornaram a viagem impossível de concretizar. “Uma estranha a fazer perguntas desconfortáveis ia ser logo notada. Podia tê-lo feito, mas não queria colocar-me numa situação perigosa”, contou à Deutsche Welle. “Tentei consolar-me e decidi fazer alguma coisa igualmente interessante através da ficção, inventando a vida privada das pessoas que participaram no crime”, cometido numa comunidade isolada, “esquecida pelo Estado e pela sociedade”.

Paradais: a violência não tem classe

Fernanda Melchor, que voltou a ser candidata ao International Booker Prize em 2022 com o romance Paradais, explicou que a ideia para o seu mais recente livro, que explora o facto de a violência transcender o estatuto social, surgiu quando, após ter terminado de escrever Temporada de Furacões, soube que os residentes da verdadeira La Matosa, o nome que usou para criar “o cenário fictício” do romance anterior, “estavam a ser expulsos das suas terras para que um condomínio de luxo com um campo de golfe pudesse ser construído”. “Em Temporada de Furacões, escrevi, entre outras coisas, sobre a violência misógina em áreas marginalizadas e, desta vez, queria explorar o facto de a violência não ser exclusivamente associada à miséria ou à pobreza, mas algo que pode nascer no coração do ‘paraíso’, este condomínio de luxo para pessoas privilegiadas”, disse em entrevista ao Booker Prize.

Demonstrators Protest Outside The Embassy Of The Islamic Republic Of Iran In Mexico After Arrests And Executions In Iran

Em 2021, foram assassinadas 1.004 mulheres no México. Trata-se de um aumento de 135% em relação a 2015

NurPhoto via Getty Images

A história é contada da perspetiva de dois jovens com vidas muito distintas: Franco, um rapaz mimado viciado em pornografia e emocionalmente subdesenvolvido que vive num condomínio fechado com os avós; e Polo, um jovem com um problema de alcoolismo, que desistiu da escola e que trabalha no conjunto de apartamentos. Franco e Polo, que não têm nada em comum, encontram-se nas horas vagas para se embebedarem até desmaiarem com as bebidas alcoólicas que o primeiro consegue comprar com o dinheiro que pede ou rouba aos avós. Os encontros furtivos acontecem numa casa abandonada e decrépita, que os rapazes acreditam estar assombrada por uma nobre dos tempos coloniais que foi assassinada por raptar e torturar jovens escravos. O local foi inspirado pela “Casa del Diablo”, onde Melchor e os amigos se encontravam para se drogarem com cogumelos mágicos e ouvir tecnho até amanhecer.

A autora escreveu o primeiro rascunho de Paradais em apenas seis semanas, durante a noite. De dia, trabalhava no guião da série “Somos”, da Netflix, um relato ficcionado do massacre de San Fernando, perpetrado pelo cartel Los Zetas em 2011, no norte do México. Melchor trabalhou no romance durante um período difícil da sua vida: em entrevista ao The New York Times, contou que tinha terminado recentemente uma longa relação, o que a fez sentir-se “posta de lado” e sozinha, sem casa ou família. “Os meus livros são um retrato da minha alma”, admitiu ao jornal. “Isso não diz nada bom de mim, claro. É o que é.” Inspirado no estado de espírito da autora, Paradais é também uma homenagem a um dos romances mais populares do México, Las batallas en el desierto, de José Emilio Pacheco, sobre um adolescente da Cidade do México que se apaixona pela melhor amiga da mãe. Franco, que passa os dias fechado no quarto com ar condicionado a ver pornografia, torna-se obcecado pela vizinha, Señora Maria, e convence-se de que é capaz de tornar as suas fantasias reais. Para isso, requer a ajuda de Polo. A história acaba em tragédia.

Sobre a violência gráfica dos seus livros, Fernanda Melchor admitiu estar interessada em escrever romances “que transportam as pessoas para lugares estranhos”: “Acredito que a arte deve deixar sempre uma ferida”.

Em termos formais, o romance é muito semelhante a Temporada de Furacões: as frases são longas, a linguagem é poética e as descrições detalhadas, gráficas e violentas. Há violência no que Melchor escreve, mas também humanidade. Ao contrário do romance anterior, Paradais não está dividido em capítulos, mas em parágrafos que podem ocupar várias páginas. A narrativa aborda, de maneira distinta do romance anterior, não apenas a violência de uma maneira geral, mas especificamente a violência contra as mulheres e a forma como estas são estigmatizadas e objetificadas pelos homens. De acordo com os dados recolhidos pelo Vision of Humanity, em 2021, foram assassinadas 1.004 mulheres no México, o que corresponde a um aumento de 135% em relação a 2015. Um número elevado dos homicídios ocorreu num contexto de violência doméstica e em casa.

Apesar de este ser um problema da sociedade mexicana, Melchor faz questão de frisar que os problemas que descreve nos seus livros não são exclusivos do seu país. “A pobreza e as pessoas em situação de sem-abrigo não são específicas de nenhum país”, afirmou ao The New York Times. Sobre a violência gráfica dos seus livros, a escritora admitiu estar interessada em escrever romances “que transportam as pessoas para lugares estranhos”: “Acredito que a arte deve deixar sempre uma ferida”. Melchor não quis desvendar ao jornal norte-americano o rumo que a sua escrita irá tomar no futuro, mas deixou algumas pistas: “Estou a caminhar em direção a outras formas de ferir o leitor, não exatamente com violência, mas com outras cores da paleta humana das emoções”. Estas certamente que serão dolorosamente verdadeiras e cruas, como os enredos de todas as suas histórias.

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