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A estrela, as acusações e as imagens: foi isto que Michael Jackson fez na Terra do Nunca? E agora?

"Leaving Neverland” revela duas alegadas vítimas sexuais de parte de Michael Jackson. É um julgamento público mas também é um fenómeno deste tempo. Já vimos o documentário que se estreia esta sexta.

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Num artigo do New York Times, os efeitos de “Leaving Neverland” são abordados da seguinte forma: “É possível que tenhamos passado os últimos 26 anos a preparar-nos para este momento”. Este momento é o documentário de Dan Reed, que se estreou há uns dias na HBO nos EUA e que chega à HBO Portugal nesta sexta-feira, dia 8. O momento, “Leaving Neverland”, é o confronto entre o espectador, o fã, o cidadão e a realidade aqui descrita. Os 26 anos referem-se a 1993, quando Evan Chandler, o pai de Jordan Chandler, acusou Michael Jackson de abusar sexualmente do seu filho. A história de então já mostrava o padrão contado nos testemunhos de “Leaving Neverland”: Jackson “adotava” estas crianças, acompanhadas com a sua família, normalmente as mães, no seu Neverland Ranch. Mas nada disto foi alguma vez abordado como é abordado agora.

[o trailer de “Leaving Neverland”:]

Nos instantes finais de “Leaving Neverland”, a irmã de Wade Robson responde às críticas feitas ao seu irmão quando em 2013 este alegou que havia sido vítima de abusos sexuais por parte de Michael Jackson. A declaração é espontânea e surpreendentemente lúcida, separando as águas entre qualquer vontade de Wade – e respetiva família – de atacar a carreira musical do Rei da Pop. Chantal Robson quer explicar, numa simples frase, que em causa não está o seu génio, mas sim a pessoa, o facto de ter feito coisas detestáveis. Mas como se sabe, é difícil separar as águas.

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Já se esperava que o documentário causasse este tipo de impacto. E depois de o vermos é impossível fugir a essa possibilidade. Desde a sua estreia no Festival de Sundance, no início deste ano, que que têm pululado artigos um pouco por todo o lado sobre como nos devemos comportar em relação à herança musical de Michael Jackson. A questão é, porquê agora? Tal como Wesley Morris deixa transparecer no seu artigo do New York Times, andámos iludidos até ao momento de uma espécie de confronto final. Andámos iludidos? “Leaving Neverland” é a prova irrefutável de que precisávamos? Mas já agora, uma outra pergunta: é a relação com a música de Jackson o elemento principal aqui? Ou os eventuais crimes que o artista cometeu e as devidas consequências?

“Leaving Neverland”

O britânico Dan Reed tem feito uma carreira na televisão, entre documentários, séries e reportagens. Noutras ocasiões já foi bastante vocal sobre a possibilidade evidente de termos de reavaliar a forma como ouvimos a música de Michael Jackson e o próprio já é alvo da ira dos fãs, acusando-o de tentar destruir a carreira do Rei da Pop. As coisas confundem-se na vida real, uma coisa não é necessariamente a outra, e isso é algo que o documentário de Dan Reed explora bem. Mas tem sempre presente que Michael Jackson foi, segundo os participantes do documentário, um pedófilo. Publicamente a música de Michael Jackson vai dificilmente manter-se como está. Ou seja: nas rádios, nas pistas de dança ou nas versões de artistas em palco, aquele “Billy Jean” nunca mais vai ser o mesmo. Já na apreciação pessoal, a cantiga será outra, natural e inevitavelmente.

Realizador do documentário sobre Michael Jackson: “Vão ter de ouvir a música dele sabendo que ele era um abusador de crianças”

Dois relatos, duas experiências, são documentados em “Leaving Neverland”. O de Wade Robson, 36 anos, e o de James Safechuck, 41 anos. Tudo segundo os próprios e familiares próximos, exceto os pais: as figuras paternais estão fora do documentário (não vale a pena explicar as razões, para não estragar a experiência do visionamento, mas há razões). O primeiro é um rapaz de Brisbane, Austrália, que conheceu Michael Jackson porque era seu imitador; o segundo conheceu o cantor durante as gravações de um anúncio da Pepsi. Este anúncio da Pepsi:

https://www.youtube.com/watch?v=t6dHsESVf5c

Ao longo das quatro horas do documentário, dividido em duas partes de duas horas cada (é uma história longa, com muito para esmiuçar mas em que nem tudo fica esmiuçado), Dan Reed preocupa-se em contar apenas a história das alegadas vítimas. A intenção passa pelo espectador não desligar das suas histórias, concentrar-se nos detalhes, nas semelhanças, deixar evidente que parte dos atos de Michael Jackson foram facilitados pelos familiares de Robson e Safechuck. Um dos principais choques de “Leaving Neverland” parte daí: o consentimento da “adoção” das crianças e das suas famílias por Michael Jackson. Um fenómenos que só é possível entender — e mesmo assumir muito dificilmente — graças ao estatuto absolutamente extraordinário que Jackson alcançou na cultura pop. Contas feitas: há Sinatra, há Elvis, e ainda antes de Madonna há Michael Jackson. Qual dos três primeiros é o maior? Essa resposta não é fácil e para muitos Jackson foi o maior de sempre (e “sempre” aqui quer dizer “da humanidade”, e que ninguém entre no campeonato dos juízos de valor, é o que é).

Durante os testemunhos é fácil que o espectador fique incrédulo com a forma como tudo se processava. A incredulidade aumenta com a presença regular da palavra “amor”, as descrições dos quartos separados (as crianças dormiam no quarto de Michael Jackson, as mães noutro) e dos relatos dos rituais que levavam aos atos sexuais. O realizador opta por deixar os relatos acontecerem, sem qualquer julgamento, interrupção, deixando até decorrer uma certa repetição, para que o próprio ritual se interiorize na cabeça do espectador. Porque a realidade é óbvia — Dan Reed, o realizador, fez aquilo que qualquer autor de um documentário quer fazer: contar uma grande história. E esta é uma grande história. Pena que possa de quando em vez vestir a máscara da ficção, dada a distância que Michael Jackson sempre teve da normalidade humana.

O foco de Dan Reed é dar voz a Wade Robson e James Safechuck e deixá-los contar as suas histórias. Mesmo que não o tenham feito quando isso foi mais oportuno. Mesmo que nos perguntemos várias vezes "porquê este modelo de narrativa?", "porquê este ponto de vista?", "porquê agora?"

A primeira parte do documentário vive muito disso. “Leaving Neverland” deixa as acusações nas entrelinhas, são as imagens vívidas dos relatos que tomam conta e terminam precisamente com as recusas de Macaulay Culkin que visitou regularmente o rancho de Michael Jackson entre os seus 10 e 14 anos. O corte acarreta pouca inocência, na segunda parte começam-se a desmontar as acusações de pedofilia que começaram a surgir desde 1993 e das quais Michael Jackson se defendeu em vida. E lembremos que não há contraditório. Absolutamente. Os depoimentos são os das alegadas vítimas e os das famílias. É um stream feito com estas informações.

Há pouco material de época. Esse não é o foco. O foco de Dan Reed é dar voz a Wade Robson e James Safechuck e deixá-los contar as suas histórias. Mesmo que não o tenham feito quando isso foi mais oportuno. Mesmo que nos perguntemos várias vezes “porquê este modelo de narrativa?”, “porquê este ponto de vista?”, “porquê agora?”. A última pergunta pode ter várias respostas, a mais óbvia de todas será “porque só agora foi possível”. Quanto às anteriores: com o material em mãos, seria possível contar a história de outra maneira? E esta história teria alguma vez uma saída limpa?

Wade Robson

Ouvimos os relatos em “Leaving Neverland” e podemos ou não criar reações (negativas) em relação à música de Michael Jackson. “Leaving Neverland” é também um reflexo de um novo momento que se vive, em que as pessoas são julgadas publicamente e o linchamento é imediato ou não (esta última hipótese é claramente mais rara). Atenção, isto não é uma defesa de Michael Jackson. É uma perceção de que o público – a audiência – não ouviu e não encorajou Wade Robson quando devia. Mais vale tarde do que nunca? É uma boa forma de desculparmos os atos das estrelas quando ainda estão vivas.

Wade Robson conhece Michael Jackson pela primeira vez

Wade Robson é um caso particular. É a sua história que toma conta de grande parte do documentário de Dan Reed, principalmente na segunda parte. Atualmente com 36 anos, Robson mudou-se da cidade australiana de Brisbane com a mãe e a irmã para o Neverland Ranch. Isto aconteceu. Assim. E, mais uma vez, vale a pena ver o documentário e descobrir os motivos por lá, não entre estas linhas. Wade não é uma cara desconhecida. Começou a carreira como imitador de Michael Jackson – foi assim que o conheceu –, dançarino, coreógrafo e realizador, trabalhou com os NSYNC e com Britney Spears, teve um programa na MTV (“The Wade Robson Project”) e chegou a ser júri de “So You Think You Can Dance”.

[uma entrevista com Wade Robson e James Safechuck no programa “This Morning”, da CBS:]

Uma das razões para “Leaving Neverland” existir surge pelo facto de Wade Robson ter mudado os seus depoimentos na última década. Aquando do julgamento por crimes sexuais em 2005, Wade testemunhou a favor de Michael Jackson, dizendo que nunca tinha sido vítima de abusos sexuais durante o período em que conviveu com o o cantor. Contudo, em 2013, anos após a morte do Rei da Pop, Robson veio a público reverter o seu depoimento.

A sua participação em “Leaving Neverland” ganha outras proporções por causa deste pormenor. Wade Robson é um elemento-chave em todo este processo, em tempos, se tivesse contado a verdade — ou esta verdade, melhor assim –, a decisão apresentada em tribunal poderia ter sido outra e Michael Jackson poderia ter sido julgado em vida por causa dos seus crimes. Mas talvez em 2005 não acreditássemos nele. Talvez se pensasse que só estava à procura de atenção, dinheiro, como muitos agora o julgam. Talvez ainda não tivesse desbloqueado a verdade no seu cérebro. Mas, se assim foi, porque é que agora devemos acreditar em Wade? (Um pouco de advogado do Diabo nunca fez mal a ninguém.)

O facto de Wade Robson ter mudado o seu depoimento, de surgir agora, com a sua família, no documentário é também um sinal de que o fetichismo do público com as suas estrelas cria inúmeras resistências para que alguma vez se saiba a verdade: talvez mais importante do que se saber a verdade, hoje, é acreditar sabê-la e criar um julgamento, mesmo que fora do tribunal, mesmo -- ou sobretudo -- fazendo uso de um produto mediático.

“Leaving Neverland” não esquece esse detalhe e explora-o convenientemente. O facto de Wade Robson ter mudado o seu depoimento, de surgir agora, com a sua família, no documentário é também um sinal de que o fetichismo do público com as suas estrelas cria inúmeras resistências para que alguma vez se saiba a verdade: talvez mais importante do que se saber a verdade, hoje, é acreditar sabê-la e criar um julgamento, mesmo que fora do tribunal, mesmo — ou sobretudo — fazendo uso de um produto mediático.

Mas lá está, como a irmã de Robson diz, a sua família não está a tentar destruir a herança musical de Michael Jackson. Só quiseram uma purga de uma verdade que os corroía há anos. De uma verdade que até Wade Robson escondeu da família até há bem pouco tempo: apesar dos factos, dos comportamentos, dos rituais, da família ter estado presente e próxima naqueles anos. Ou seja, a verdade que Wade Robson revela agora era estrangeira mesmo para os que viviam próximos da fronteira.

James Safechuck

Nem James Safechuck, nem a sua família, são secundarizados em “Leaving Neverland”, pelo menos não numa questão de valor, não há uma comparação a afirmar que o que aconteceu a um foi pior do que aquilo que aconteceu ao outro. Aliás, a presença – e os consentimentos no passado da sua mãe – reforçam a influência que Michael Jackson exercia sobre as crianças e, invariavelmente, sobre as respetivas famílias. Mas o filme precisava ter uma figura central e essa é claramente Wade Robson. O relato das experiências do jovem ator, que conheceu Michael Jackson no exato momento em que o espectador também o vê no anúncio da Pepsi, tem um impacto semelhante às confissões de Wade. O mesmo relato – ou a sua participação no filme – correlacionam-se com a vida mais discreta que tem, alheado das câmaras e do mundo do espectáculo, tal como Wade, e recolhido no mundo da programação informática.

Michael Jackson com James Safechuck

E da mesma forma, James defendeu Michael Jackson durante o julgamento de 1993 – o de Jordan Chandler –, quando ainda era uma criança. Mas recusou participar no julgamento mais de uma década depois. Esta recusa expõe menos James Safechuck ao quadro geral de “Leaving Neverland”, ao confronto constante entre o homem, a estrela pop e o seu público, talvez por isso Safechuck seja também menos referenciado publicamente do que Wade Robson. Os depoimentos de Safechuck sobre a sua relação com Michael Jackson, entre os 10 e 14 anos, quando o artista estava em digressão, corroboram muitos dos detalhes que Robson expõe com maior detalhe.

No enredo de “Leaving Neverland”, James Safechuck perde protagonismo porque não é tão dramático, porque Wade tem uma história familiar muito mais complexa que é revelada no documentário mas que não é totalmente clara (convenhamos que isso ajuda e muito à história). Recordemos: Robson deixou Brisbane com a mãe para viver com Michael Jackson. É o protagonista perfeito e Safechuck serve sobretudo para corroborar o que Wade diz, para explicar que Michael Jackson não fez o que eles dizem que ele fez apenas uma vez, a uma criança, mas fê-lo repetidamente.

Michael Jackson

“Leaving Neverland” quer destruir a herança musical de Michael Jackson? Não. Dan Reed, o realizador, diz que temos de reavaliar a música de Michael Jackson quando a ouvimos, mas é uma declaração mais de defesa do que de ataque. O documentário não quer ser um julgamento, quer ser uma exposição de duas alegadas vítimas e das suas famílias. Mas há um inevitável julgamento, ele já começou e é imparável. E mais do que se acreditar ou não, deve-se parar e pensar porque é que, afinal, não estamos assim tão chocados quanto isso?

Michael Jackson e família de Wade Robson

Porque é isso que está a pensar quem está a ler este texto, não é? Não estamos assim tão chocados quanto isso, pois não? Porquê? Porque fomos levados a acreditar que esta é a verdade e de alguma maneira já o sabemos há muito? Porque Jackson é uma personagem, de carne e osso, com história, com pele e sangue, mas é uma personagem? Criança prodígio, fonte de rendimento interminável para uma família que ou se aproveitou dele, ou se encostou à sua interminável sombra? Famoso como nunca ninguém foi, muito antes do tempo certo para o compreender e aceitar? Sem vida a não ser a que todos conheceram (e talvez, afinal, uns quantos segredos)? Casamentos estranhos, um comportamento difícil com os filhos, paranóias várias e a relação caricata com o corpo? Abusador sexual ou pedófilo? Estas expressões surgem e não causam surpresa, não causaram na altura em que alguns casos foram apresentados à justiça, não causam agora que existe este documentário. De alguma forma, tudo parece parte do espectáculo. Mas não é. Aqui não há espectáculo nenhum.

Michael Jackson “abusou de nós centenas de vezes”, repetem duas alegadas vítimas

Sim, há burburinho. Há muitas vozes a falar, opiniões até de quem ainda não viu o documentário. Mas, mais do que uma explosão, “Leaving Neverland” parece acordar alguns para uma verdade que estiveram a negar durante imenso tempo. E sem Michael Jackson para se defender, torna-se muito mais fácil de aceitar a realidade deste documentário. Chegamos ao fim de “Leaving Neverland” a preocuparmo-nos se devemos ou não continuar a ouvir a música de Michael Jackson, como se isso apagasse o que estes relatos vêm agora contar, como se, por um momento, fosse mais importante os depoimentos destruírem a nossa memória, a nossa relação com um artista, do que a possibilidade do artista ter destruído a infância de várias crianças e, por consequência, as suas vidas. No fim, o julgamento pode ser sobretudo para com a obra, não para com o eventual crime. Porque é impossível fazer o segundo — Jackson não está entre nós há dez anos — e porque é muito mais fácil e visível fazer o primeiro.

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