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Um mosteiro, um parque de estacionamento, um palácio com direito a quadros de reis pintados a óleo, museus com animais embalsamados e obras de arte contemporânea ou um renovado mercado de frescos foram algumas moradas dos desfiles que marcaram o calendário da 51.ª edição do Portugal Fashion.
Nesta verdadeira visita guiada pela cidade do Porto, as criações de jovens designers e nomes consagrados foram descobertas à boleia de mensagens ativistas, regressos ao passado, materiais mais amigos do ambiente e técnicas a pensar no conforto, na inclusão e na roupa utilitária.
A incerteza sobre a continuidade do evento pairou no ar, mas não impediu que muitos mantivessem a esperança de que em março todas as luzes se voltarão a acender na passerelle para mostrar o melhor que se faz na moda em território nacional.
Os contrastes de Xiomara, o reggae de Gambina e a alfaiataria de Maria Carlos Baptista
Katty Xiomara apresentou “Propaganda”, uma coleção que desafia o conceito de propagar ideias e doutrinas anulando ou penalizando o pensamento individual. “Não é um tema descontextualizando do tempo em que vivemos”, sublinha a criadora ao Observador. Desta reflexão nasceu um contraste de linhas austeras, rígidas e masculinas, em que as manequins surgiram a marchar com um bivaque escuro na cabeça, com peças cheias de detalhes femininos, como laços, folhos e rendas, num universo marcado por tecidos translúcidos e coloridos.
Há vestidos em tule, onde o branco funciona como tela para rabiscos onde se pode ler ‘bla, bla, bla’ ou “watching”, grafismos e vários olhos estampados numa espécie de camuflado otimista e delicado. “Como um Big Brother que está sempre a olhar para nós”, sublinha Katty Xiomara. Azul, lilás e preto reinam em peças cruzadas e sobrepostas com dualidades inusitadas. “Há zonas cobertas com contrastes de cor e rendas fechadas, mas transparentes ao mesmo tempo. É o romper das regras estabelecidas se vivêssemos num regime.”
A comemorar 30 anos de carreira, Maria Gambina rompeu com as regras da estação e apresentou uma coleção para este outono-inverno, pensando cada vez mais presente e no que é usável e comercial. “Não quero apresentar mais coleções com três meses de antecedência, não faz sentido no meu negócio fazer esse tipo investimento para depois ficarem paradas no meu ateliê. Não faço mais peças para museus ou para ficarem a ganhar pó”, justifica.
Gambina nunca foi fã de reggae, mas um documentário na Netflix fê-la mudar de ideias. “Nunca achei muita piada ao reggae, mas comecei a descobrir um lado menos conhecido e gostei. A mensagem deste género musical é muito paz, amor e alegria e isso é tudo o que precisamos hoje. Embora seja uma coleção de inverno é uma proposta muito colorida e bem-disposta.” Peças gráficas, detalhadas e urbanas saltam à vista em materiais maioritariamente orgânicos, das malhas tingidas de forma sustentável ao denim estampado a laser, uma novidade no trabalho da designer, que pensou o inverno com golas altas, chapéus de chuva e bombers oversized.
Da plataforma Bloom, dedicada ao talento dos jovens criadores, destacou-se Maria Carlos Baptista, que nesta coleção regressou às suas bases de alfaiataria, misturando o clássico e o contemporâneo em partes iguais. “Gosto muito de roupa utilitária, das outras vezes quis ser um bocadinho mais experimental, mas tive necessidade de voltar à minha origem”, explica, sublinhando que esta é uma opção estratégia já com a comercialização da sua marca em vista.
A estrutura mais rígida dos blazers e dos fatos contrastam com as saias acetinadas ou os vestidos longos com costas descobertas e aberturas laterais, detalhes essenciais para evidenciar a silhueta feminina. “Fiz esta coleção por instinto e sem pensar muito no seu conjunto, mas olhando para tudo acho que dá para perceber que é um trabalho meu.” Gangas, popelinas e algodões foram materiais usados por Maria Carlos Baptista em coordenados cheios de volume e ao mesmo tempo delicados, usáveis tanto por homens como por mulheres. “Quero muito fazer roupa masculina, vejo que há interesse, talvez na próxima estação.”
Os jardins Luís Onofre e Miguel Vieira e a cor de Agatha Ruiz de la Prada
Se em março Miguel Vieira regressou ao preto, a sua cor de eleição, nesta estação “há cor que nunca mais acaba”, diz ao Observador. Lima, lavanda, púrpura, amarelo lírio ou verde pimenta foram alguns tons que rechearam o trabalho do designer de São João da Madeira, onde os fatos e camisas com um novo monograma estampado, os vestidos esvoaçantes e os calções drapeados se fizeram notar como peças-chave na passerelle. “É uma coleção inspirada num jardim imaginário, há flores em estampados e materiais sustentáveis, como algodões ou lãs virgens”, sublinha, acrescentando que a maioria dos tecidos com que trabalhe cheguem de Itália.
Depois do estilo militar para o inverno, Luís Onofre apostou numa explosão de cor para os dias de sol, onde a natureza continua a ser o mote para pincelar os pés das mulheres de laranja, rosa, amarelo ou néon, e até há dois tons no mesmo par de sapatos. Uma das novidades do designer de Oliveira de Azeméis, e que irá registar em breve, é um novo fecho cursor ajustável, normalmente usado nos anoraques para a neve, transportado para a fita de sandálias. “Pode ser ajustado no calcanhar ou à frente, faz com que o sapato caiba em todo o tipo de pé, dá conforto, que é sempre uma prioridade, e acaba por personalizar o modelo em termos de styling.”
Os stilettos permanecem com um protetor em forma de diamante e os saltos apresentam-se cada vez mais alargados, uma tendência que Onofre tem vindo a explorar nas últimas estações, assim como as botas texanas, mesmo quando falamos de verão. As tiras em cristais Swarovsky continuam a marcar presença em vários tons cintilantes para personalizar modelos de sandálias douradas, sendo que as pétalas de buganvília, orquídeas, penas de pavão coloridas e tiras que remetem para as raízes das árvores a envolverem o tornozelo são outros elementos decorativos que se destacam na coleção.
As peles polidas, as camurças, os cetins e os plásticos são alguns dos materiais mais requisitados, há fivelas e entrançados que saltam à vista e as formas ganham mais estabilidade graças a uma nova construção composta por uma tripla plataforma rasa. “O desafio é sempre procurar coisas novas que me desafiem para surpreender e dar mais conforto à mulher. As malas e as carteiras ficam em stand-by, estou concentrado no calçado, é aquilo que gosto e sei fazer de melhor.”
E se falamos de cor, temos obrigatoriamente de mencionar o nome de Agatha Ruiz de la Prada. A designer espanhola foi a convidada especial desta edição do Portugal Fashion e aproveitou a ocasião para mostrar toda a sua admiração pela moda nacional, recordando que 90% da produção da sua marca, especialmente vestuário feminino, infantil e até roupa de cama, é feita em Portugal, numa fábrica em Riba de Ave, em Vila Nova de Famalicão.
Na passerelle mostrou a sua última coleção, apresentada apenas em Madrid, composta por peças comerciais e outras mais conceptuais a puxar o surrealismo. “É a coleção mais ecológica que fiz na minha vida”, garantiu a criadora, minutos antes do desfile, destacando os tecidos reciclados e outros feitos à base de algas e bambu.
Marques’Almeida aprenderam com os mais novos e Alexandra Moura veio de outro mundo
Marta Marques e Paulo Almeida, o casal que dá vida à dupla Marques’Almeida, começaram a fazer coleções para criança por mera experimentação e numa altura em que as filhas do casal eram mais pequenas. Nesta estação decidiram apresentar essa oferta pela primeira num desfile, provando que a marca tem agora roupa para toda a família, “e uma família cada vez mais inclusiva”. “Sentimos que neste momento estamos mais confortáveis e confiantes para mostrar”, afirma Marta, acrescentando não existir grande diferença entre criar peças para adultos e para os mais novos. “Aprendemos muito com a maneira como elas se vestem e como se querem vestir. Utilizamos muito disso em adulto também, é sempre uma mistura.”
Já Paulo Almeida enaltece a liberdade presente no processo criativo. “Sempre achamos que as crianças era as pessoas mais cool porque não tinham preconceitos ou expectativas, é isso que tentamos fazer, retirar os preconceitos a desenhar.” Cada coleção de criança Marques’Almeida tem cerca de 100 modelos, haverá duas coleções por ano e a venda no site já está disponível.
Os anos 1980 foram uma inspiração na cor e no design das peças da marca, que continua a apostar em modelos reais para mostrar os seus coordenados. “Ainda não nos tínhamos aventurado nesta década até percebermos o quanto ela é importante em termos de enaltecer as comunidades transgénero e gay de uma forma tão celebrativa, tão loud e tão proud. Fazia-nos sentido que fosse uma coleção loud porque é importante celebrar estas coisas que estamos a falar.”
O brilho conseguido através lantejoulas com padrões, a base de alfaiataria e uma atenção redobrada aos acessórios foram algumas novidades apresentadas, assim como os tafetás gigantes com grandes mangas, os drapeados ou os laços em vestidos. A escolha de materiais sustentáveis continua a ser uma aposta do casal, ainda que ambos tenham a consciência que essa não é uma viagem fácil ou linear.
“Fazemos os tingimentos naturais, mas depois os tingimentos naturais mancham e desperdiçamos 300 peças, isso não é sustentável. Há uma aprendizagem e o nosso manifesto [lançado em 2020] é para cumprir”, garante Marta Marques. A roupa infantil, por exemplo, é feita a partir de malhas e algodões usados na coleção de mulher, as gangas são feitas com algodão orgânico e as lavagens são realizadas sem qualquer desperdício de água. “Não há poliéster virgem em lado nenhum nas nossas coleções.”
No dia em que a invasão russa começou na Ucrânia, a 24 de fevereiro, Alexandra Moura estava prestes a apresentar a sua coleção na Semana de Moda de Milão e foi precisamente nesse dia, em que “o ambiente era estranho” e o mundo mudou, que soube o que ia fazer no seu próximo trabalho. “Extramundanus” parte de “um desejo profundo de uma nova Terra, da chegada de novos seres que ajudam na mudança e uma reprogramação da humanidade para o equilíbrio do planeta”. Baseada nesta premissa que enaltece o trabalho de bastidores, o espírito de salvamento e de união, a designer apoderou-se do universo das equipas de racing numa coleção que mantém o selo desportivo e confortável da marca ainda que com algumas transformações.
“Pesquisei muito o lado racing na Fórmula 1, no motociclismo e nas equipas da NASA dos anos 50, eles tinham sempre o logo presente no uniforme, canetas para fazer anotações e porta-chaves.” Blazers, calças e bombers surgem estampados com logotipos gráficos, digitais e futuristas com o nome da designer sempre presente, mas também alusões espaciais e canetas ou porta-chaves incluídos no styling.
Preto, vermelho ou azul ganham vida em gangas, viscoses, algodões e materiais mais técnicos que dão a ilusão de salpicado ou machado ou que fazem lembrar cabedais, mas que são feitos com uma base de algodão com acabamento em latex e um alto relevo floral, estão presentes em bombers e vestidos curtos, cujos botões podem ser apertados em várias casas, personalizando o tamanho e o formato da saia. Os folhos, as sobreposições e as silhuetas longas continuam a fazer parte da identidade de Alexandra Moura, mas nesta estação decidiu evidenciar mais a figura humana, apostando menos no oversized. “Trabalhei mais a silhueta, tirei volume e ajustei alguns vestidos.”
Diogo Miranda e Huarte com duas visões para a mesma mulher
Trabalhar o guarda-roupa clássico feminino foi, mais uma vez, o ponto de partida para Diogo Miranda fazer desfilar vestidos, curtos e compridos, em tons fortes, onde o taupe, o bege, o talco e o branco se cruzam com os azuis, os verdes, o amarelo torrado ou o vermelho. “O clássico e o romântico acabam por ser a minha identidade, estas são cores que podemos ter no guarda-roupa e usá-las várias vezes.”
As décadas 50, 60 e 70 continuam a inspirar o criador que comemora 15 anos de carreira, épocas que parecem combinar na perfeição com a leveza, a elegância e a delicadeza das suas peças, desta vez com um detalhe nos cintos evidenciados com franjas. As silhuetas querem-se longas e femininas e nos materiais o designer apostou pela primeira vez nos crepes plissados, pensados para qualquer tipo de corpo. “É fácil de vestir e os vestidos funcionam como um tubo, fica muito bonito, mesmo nos vestidos longos”, destaca o criador de Felgueiras, que nesta estação desenvolveu o seu conceito de capa para uma espécie de armadura romântica. “Ligando o ombro a uma bainha a peça vai e volta para cima, como um casaco, um abrigo.”
Já Huarte, jovem criador em destaque na plataforma Bloom, apresentou uma outra visão dos seus coordenados femininos, um segmento que ainda está a explorar. “No último desfile tive um a fechar, agora terei quatro e no futuro gostava de apostar mais em mulher. Alguns designers trabalham uma mulher muito romântica, feminina e elegante, eu gosto de desconstruir isso e dar uma visão mais fresca desse conceito.”
O designer espanhol, que trabalha na Salsa e tem investido cada vez mais numa proposta comercial, acredita que o futuro da moda passa pelo unissexo e o sem género. “Este colete, por exemplo, idealizei para um homem, mas pode ser um vestido para uma mulher usar com um biquíni por baixo, ou estas calças podem ser vestidos por ambos. A principal diferença na criação de roupa para homem e mulher é apenas o tamanho, o molde é igual e eu quero desenhar peças que todos possam mesmo vestir.”
Para a próxima estação quente Huarte teve como ponto de partida a música do final dos anos 90, que o acompanha durante o seu processo criativo, e a vontade de “pegar na primeira roupa que temos em casa, fazermos uma mala, irmos para o aeroporto e apanharmos o primeiro voo” que surgir. “Nunca fiz isso, mas gostava. Essa ideia de verão, de não ter um destino fixo, essa incerteza em relação ao futuro, ao trabalho ou à forma como vai acabar o dia inspirou-me.”
As opções centram-se essencialmente na roupa utilitária, visível em peças com muitos bolsos e bastante funcionais, mas também em look de noite, mais animados tal como as batidas musicais que ouve para dançar. A ganga impera nos materiais, muitas delas orgânicas, e todos os tecidos utilizados, das malhas aos calções de banho, são portugueses. “Gosto de ter esta proximidade com os fornecedores.” Outra das prioridades do jovem designer são as texturas e nesta coleção voltou a dar protagonismo ao crochet, incluindo nos acessórios, e aos cortes em laser feitos para criar “padrões florais menos óbvios”.
O regresso ao passado de Alves/Gonçalves, Hugo Costa e Susana Bettencourt
Sem pontos de partida, histórias para contar ou mensagens a passar, a dupla formada por Manuel Alves e José Manuel Gonçalves preferiu dar continuidade ao seu trabalho técnico nos tecidos, à sua noção de espetáculo e ao poder visual de coordenados onde o masculino funde-se no feminino e vice-versa. “É sobretudo um trabalho de experimentação sobre aquilo que já foi feito e que vem de outras coleções, é essa ligação que nos interessa.”
Os blazers, as aplicações metalizadas e os vestidos com diferentes volumes são imagens de marca dos Manéis, que nesta coleção apresentaram como novidades os bolsos mais evidenciados, a aplicação de desenhos indianos, impressões com flores e corações, o efeito de calça molhada ou os casacos feitos a partir de um modelo de calças. Os elementos de streetwear combinam com uma inspiração nos anos 1990, ambos decifráveis em calças com cintura descida e t-shirts cortadas a laser, mas também em óculos desportivos, botas altas com grafittis ou sapatos rasos com tachas metálicas. Lãs, malhas, peles falsas, sedas e tecidos sintéticos “que parecem papel” reinam em peças sobrepostas e conjuntos acolchoados coloridos, mas também em vestidos de noite extra volumosos com saias capazes de cobrir o corpo inteiro.
Hugo Costa também regressou ao passado para mostrar o seu amadurecimento enquanto designer. “Nesta coleção revisito algumas icónicas e não precisei de desenhá-la, só tive que perceber o que era importante para mim. É uma coleção mais madura, não tem um fundamento temático concreto, mas baseia-se num imaginário definido ao longo de 12 anos.”
As silhuetas longas, as peças oversized e os detalhes identitários como os bolsos, as golas e os punhos evidenciados fizeram do clássico descontraído do criador uma marca registada, ainda que ela viva e sobreviva com o contributo do público. “A tipologia das peças mais importantes mudou, o blazer que até aqui era complementar, hoje é central e, entre sobreposições, nesta coleção tenho nove. Isto é resultado do feedback do público da marca que vai mudando e construindo também esta identidade.”
Tal como na estação passada, Hugo Costa apostou na cor, agora de uma forma mais tímida limitando-se ao preto, branco, cinza e vários tons de rosa. A grande novidade recai em materiais como tule ou organza em fatos, casacos ou chapéus, sendo que as gangas, os prints florais ou o axadrezado também saltam à vista.
“Origins of Perception” é a coleção onde Susana Bettencourt joga com todas as etapas gráficas que influenciam a forma como percecionamos o mundo, de como a luz, a cor e as formas são criadas nas telas dos nossos olhos. “É uma fusão entre peças muito manuais e outras que resultam de um processo tecnológico”, explica, destacando tons fortes como o verde floresta e o azul vibrante delineados pelo preto e o branco.
Os grafismos característicos dos seus jacquards e vestidos provam que o tricot e o crochet continuam a ser as técnicas manuais que a designer mais privilegia, funde-as frequentemente com o universo digital e desse casamento nascem efeitos 3D, formas triangulares e planos pixelizados. Um dos destaques da coleção vai para os acessórios, como malas e chapéus, trabalhados em crochet de forma artesanal ou as malhas abertas feitas em tear manual, já a maquilhagem com um contouring exagerado é uma sátira “às visões adulteradas que temos atualmente no mundo digital.”