Onde se ia às sextas e sábados à noite na Lisboa de 1944, com a Europa em guerra, espiões e pides pela cidade, um puritanismo apertado a vigiar as escolhas alheias? Quem tinha dinheiro, ia ao n.º 17 da rua Rodrigues Sampaio, edifício modernista assinado por Cassiano Branco, arquiteto do regime, e um dos três hotéis mais luxuosos de Lisboa, a rivalizar com o Avis, onde vivia Calouste Gulbenkian, e o Avenida Palace. Chamava-se Hotel do Império, uma jóia Art Déco, onde os quartos tinham telefone, rádio, máquina de escrever e casa de banho privada.
Metros de cetim harmonizavam-se com as linhas geométricas do mobiliário de design português, a elegância dançante dos candeeiros de pé alto, e tudo parecia pronto para receber uma loira flamejante como Marilyn Monroe. Num último andar que todos os jornais anunciaram ser uma “danceteria”, funcionava na verdade um casino clandestino e uma sala de cinema privada onde “supostamente” se poderiam ver reportagens da guerra. Abriu na noite de 13 de Outubro de 1944, nunca teve Marilyn mas teve a atriz espanhola Carmen Sevilha e várias divas portuguesas: Sophia de Mello Breyner, Vera Lagoa (Maria Armanda Falcão) ou Natália Correia. O hotel faz agora 75 anos e a história do século XX português passou e ainda passa por aqui.
Onde se vai hoje ao fim de tarde na Lisboa cosmopolita e gentrificada, cheias de hotéis e hostels, Airbnbs, turistas, restaurantes feios a tomarem conta das ruas? Os americanos, britânicos e brasileiros já descobriram o discreto Britânia, com a sua geométrica e pesada porta de ferro, as janelas circulares, o seu chá das cinco com bolinhos, a sua penumbra acolhedora. Voltam as costas ao sol e ao bulício das lojas e regressam ao hotel, que hoje, em pleno século XXI, conseguiu manter-se um dos segredos mais bem guardados da capital: tem o mesmo mobiliário desses anos 40, quando a decoração foi pensada para homenagear o império ultramarino português, uma esfera armilar desenhada saída das mãos do mestre António Maria Ribeiro (que desapareceu e foi substituída por outra da autoria de Charters de Almeida), pinturas evocativas das ex-colónias, chão de mármores e de ladrilhos de cortiça feitos na antiga fábrica Mundet, uma penumbra acolhedora, quase doméstica onde se pode ver uma tela de Almada Negreiros, fotografias e objetos antigos.
Ignorado pelos portugueses, o hotel que se chamou Império e hoje se chama Britânia foi, em 2018, distinguido pelo jornal inglês Daily Telegraph, um dos 17 hotéis Art Déco mais bonitos do mundo. Não tem spa, nem piscina, nem quartos com vista. Tudo aqui acontece nos espaços interiores.
Hotel do Império e a imperatriz Natália Correia
Quando Cassiano Branco tomou o projeto estava entusiasmado com uma novidade americana, os aparthotéis, e quis fazer do Império o primeiro aparthotel nacional. Mas consta que o regime terá torcido o nariz e o SNI terá mesmo considerado a coisa “um atentado aos bons costumes”. Como conceber um apartamento com sala e quarto e casa de banho mas sem cozinha? Estava-se mesmo a ver que a coisa ia descambar.
Estas dúvidas, conta Ana Alves de Sousa, dona do hotel e responsável pelo levantamento da sua história, encontram-se em cartas trocadas entre a família proprietária do edifício e o arquiteto. Cassiano Branco previa 30 pequenos apartamentos e duas lojas no rés-do-chão para darem apoio ao hotel. Quando viu que o seu projeto tinha sido alterado bateu com a porta e nem sequer assinou a conceção do edifício cuja finalização ficou a cargo do engenheiro Costa Macedo. Os apartamentos ficaram na gaveta e o Império ganhou 30 quartos luxuosamente espaçosos, com uma antessala e casa de banho privada (coisa rara para a época), um restaurante seleto e distinto com chefs que rivalizavam com os melhores do seu tempo. Os bons costumes respiraram de alívio, ainda que apenas temporariamente.
Em 1953, o proprietário do hotel, Alfredo Luís Machado, casa com a poeta e diva Natália Correia. Foi o seu terceiro marido e as almas românticas afiançam que “o seu grande amor”. Sobre os amores de Natália, Luís Alves de Sousa, à frente do hotel desde 1976, recorda apenas o que lhe contaram os antigos empregados, que “o senhor Machado vivia mais para Natália do que para o hotel”, que tudo passou a orbitar em torno da escritora especialmente a partir do momento em que o casal se muda também para a Rodrigues Sampaio e passa a viver praticamente à frente do Império. O apartamento viria a tornar-se um local de culto para os intelectuais que se opunham ao regime. Ali havia festas, tertúlias, teatro, conspirações, visitas de célebres escritores estrangeiros que, a pouco e pouco, se foram estendendo para o hotel, que partilhava desta boémia intelectual por onde passaram Henry Miller, Marguerite Yourcenar, Graham Greene, os surrealistas Eugene Ionesco, Henri Michaux, os jovens Alexandre O’Neill e Cesariny, os editores Luiz Pacheco e Ribeiro de Mello e tantos outros ilustres desconhecidos, párias, loucos, homossexuais, estudantes com fome. Mas também ali e no hotel aconteceram, em 1958, reuniões preparatórias da candidatura à Presidência da República do general Humberto Delgado.
Enfim, os estritos bons costumes exigidos ao hotel aquando da sua construção definitivamente não se aplicavam ao apartamento do n.º 52 da mesma rua. Mas, em qualquer dos casos, ter uma cozinha revelou-se uma coisa muito importante.
As célebres ceias, que ficaram no imaginário poético dos portugueses, como se viessem do próprio corpo de Natália qual Demeter abundante, alimentando homens e animais, não vinham afinal dos campos de Zeus mas da cozinha do hotel do Império. Na conversa que tiveram com o Observador, Luís e Ana Alves de Sousa recordam histórias contadas pelo escritores Fernando Dacosta e Dórdio Guimarães (último marido da poeta), que incluem travessas com lagostas e bifes a atravessarem a rua nas mãos dos empregados do hotel que não davam conta do frenesim entre o Império e as tertúlias conspirativas. Fernando Dacosta contava que “Luiz Pacheco chegava muitas vezes com uma pasta e à saída abria-a, metendo lá dentro uma lagosta”.
No final dos anos 60, Natália Correia chegou inclusive a instalar-se no quarto n.º 13 do Hotel do Império para escrever a peça de teatro “O Encoberto”, que viria a ser proibida pela Censura e estreada apenas em 1977.
Em 1969, o poeta brasileiro Vinicius de Moraes veio atuar no recém-inaugurado Teatro Villaret e instalou-se no hotel. Conhece e grava com Amália Rodrigues, faz amizade poética com O’Neill, sente o terramoto que abalou Portugal na noite de 28 de Fevereiro desse ano, sobre a qual escreverá o poema “Lisboa Tem Terramoto”. Na primavera marcelista, a bossa-nova de Vinicius trouxe a Lisboa também Chico Buarque, Nara Leão e muitas garotas sonharam que Ipanema era já ali. Mas não era.
Nesses últimos dias dos anos 60, já o hotel do Império estava com grandes dificuldades financeiras. O elevado padrão da unidade exigia muitos empregados, muitos gastos. O Ritz, inaugurado em 1959, tinha-se tornado o hotel de luxo da moda e o Império “não se conseguiu atualizar”, afirma Luís Aves de Sousa, que diz também não ter dúvidas de que “foi Natália Correia quem mais contribuiu para a falência do espaço”: “O volume de gastos e a dependência que ela tinha do hotel devem ter começado a pesar. Além disso, o Alfredo Machado deixava tudo para estar com ela e acabava por não dar ao hotel a atenção devida”.
O Império foi então entregue a uma empresa espanhola chamada Otusa e depois dado à exploração do empresário Joaquim Paredes Alves, que geria o hotel Eduardo VII e era um homem apaixonado pela cultura inglesa. Em 1971, Natália Correia e o marido fundam na Graça o bar O Botequim e no final de 1973 o Império fechou para obras.
O fim do Império e a revolução alcatifada
Nessa madrugada do 25 de Abril, o hotel na Rodrigues Sampaio continuava fechado para obras e entregue à empresa Tapinorte. Ainda sem se saber que terminariam, dali a pouco, 500 anos de império português, já se cobriam as pinturas alusivas às colónias, já se cobriam as paredes com contraplacado pintado a negro, se rebaixava o teto, se tapava a clarabóia do bar e se forravam os mármores do chão de alcatifa amarela.
“O novo gestor era um homem inglesado e queria criar aqui uma ambiência de pub inglês e mudou o nome para hotel Britânia”, conta Alves de Sousa. Mas lá fora a revolução continuava; Joaquim Paredes Alves fugiu para o Brasil deixando o hotel entregue aos trabalhadores que, para não perderem todo o dinheiro, decidiram ocupar o hotel. Nesses dias, há jornais e gráficas que se instalam na zona onde já estava, há muito, o Diário de Notícias, o Jornal, o País, a redação de Lisboa do Jornal de Notícias. Entretanto, a família Infante da Câmara, proprietária do edifício de Cassiano Branco, recusa-se a negociar com os trabalhadores que mantêm a ocupação do hotel.
Luís Alves de Sousa, regressado poucos meses antes de uma comissão de dois anos na guerra em Angola, seria o futuro responsável pelo hotel, mas antes disso teria a sua própria aventura revolucionária particular: por esses dias tinha escritório montado no mesmo prédio da redação do jornal O Sol, dirigido por Vera Lagoa, que viria a sofrer um atentado bombista, que não fez vítimas mas danificou bastante o edifício. Depois viu-se preso por ter despedido a namorada do comandante Marques Pinto, membro do Conselho da Revolução. “A rapariga era vendedora e não vendia nada. Eu tive de a despedir. Sabia lá de quem era namorada! Ao fim de duas horas tinha seis chaimites apontadas ao prédio, o escritório todo revistado e uma ordem de prisão por tráfico de divisas”, recorda o empresário, que acabou por fugir também para o Brasil.
Quando o 25 de Novembro de 1975 trouxe alguma calmaria, Alves de Sousa decidiu voltar e “pegar” no tal hotel ocupado que agora se chamava Britânia e estava fechado há três anos. Negociou com a comissão de trabalhadores que ocupava o hotel. “O que se passava era inimaginável. Havia uma comissão de trabalhadores formada por cinco elementos que negociou a conclusão das obras e a saída do hotel mas, às escondidas dos mesmos trabalhadores, negociou também o espaço do restaurante que seria desanexado do hotel. Portanto, alguns elementos da comissão de trabalhadores enganavam os outros. Não é inacreditável?”, conta o empresário.
Tudo terá acabado em bem e forrado a alcatifa amarela. “As loiças, carrinhos, talheres, tudo tinha desaparecido nesses anos, conseguimos apenas salvar algumas mesas do restaurante que foram recuperadas e hoje são usadas no bar”, acrescenta Ana Alves de Sousa.
É com o nome de Britânia que reabre em Janeiro de 1976. Apagadas as marcas do império e da sua imperatriz maior, Natália Correia, passa a receber Jaime Neves, um dos operacionais do 25 de Novembro, Canto e Castro e outros amigos para conversas ao fim do dia. Por ali passa também o almirante Pinheiro de Azevedo, candidato às primeiras eleições presidenciais pós-revolução e alguns dos seus apoiantes. Apesar disso, não houve fumaça que chegasse ao novo Britânia, que longe dos seus tempos áureos se convertia num hotel mediano de um país em mudança e recebia ao anoitecer aqueles que o iriam escrever: José Cardoso Pires, Fernando Assis Pacheco, Batista Bastos, Joaquim Letria, Júlio Moreira, Raul Solnado e muitos jornalistas mais ou menos anónimos. Até Vera Lagoa se instalou lá para convalescer de uma cirurgia.
Um reduto quase secreto no coração de Lisboa
Março de 2019. Todos os jornais desapareceram da Rodrigues Sampaio. A rua paralela à avenida da Liberdade acompanha a nova demanda da cidade, há obras por todo o lado, lojas de decoração, ateliês de alfaiataria, bistrôs, hamburguerias. A velha pastelaria Smarta por de baixo da casa de Natália Correia fechou portas. Quem sobe e desce a rua não repara na fachada originalíssima do hotel Britânia e só um ou outro se apercebe da geometria modernista da porta de ferro e a placa dourada onde se lê o nome da cadeia à qual pertence, Hotéis Heritage. Em 1999, João Soares, então presidente da Câmara de Lisboa, atribuiu o Prémio Municipal Eugénio dos Santos, que distingue Luís Alves de Sousa e sócios responsáveis pelo restauro do edifício.
Entre 1996 e 1998, mesmo a tempo da Expo 98, o Britânia sofreu profundas obras de restauro com vista a devolver à luz a sua Art Déco original. Com recurso a arquivos foi feito o restauro da receção, do bar, dos painéis alusivos ao império que já não existia. Os quartos foram redecorados, mas o mobiliário é o mesmo. O sexto andar, mais ou menos esquecido desde que lhe acabaram com a roleta, foi reconvertido em mais dois quartos com terraço e uma suite, pelo arquiteto Pedro Appleton. Hoje com 33 quartos, o Britânia insere-se no segmento dos hotéis boutique, só o nome “Império” não foi possível recuperar porque afinal ainda há muitos saudosos de impérios e a designação já estava tomada por outra unidade. Apesar disso, o nome funciona como um chamariz de falantes da língua inglesa, que são, “pelo menos desde os tempos da Expo 98, a principal clientela”, diz Alves de Sousa.
Além do restauro da Art Déco, nos últimos anos o Britânia investiu no restauro da memória de Natália Correia. Fotografias dos seus anos de diva e das suas festas espalham-se pelas paredes. Nas estantes há livros dela, em cima de uma das mesas uma fotobiografia (da autoria de Ana Paula Costa). Em 2018, o quarto n.º 13 passou a chamar-se Quarto Natália Correia e, além de fotografias da poeta, tem uma folha volante em português e inglês com um resumo da sua vida e relação com o Britânia. O mesmo acontece no agora Quarto Vinicius de Moraes, que homenageia o poeta brasileiro, com fotografias e poemas.
Apesar de ser um dos hotéis mais genuinamente portugueses de Lisboa e um dos mais interligados à história coletiva da cidade e do país, o Britânia é também um dos mais excêntricos. Senão repare-se: oferece aos hóspedes a possibilidade de dormirem e usarem mobiliário com um valor artístico incalculável que podia ser vendido com muito lucro e substituído por móveis de muito menor valor e custo; quartos duplos com espaço para dar uma festa, quando poderiam diminuir o seu tamanho e duplicar a capacidade de alojamento; servem o pequeno-almoço até às 12 horas (sim, leu bem, meio-dia); entre as 17h e as 19h têm à disponibilidade dos hóspedes chá quente e bolinhos e à noite quem quiser pode servir-se de um Porto ou de uma ginginha. Tudo isto sem que lhe seja cobrado nenhum extra na hora do check out.
Sabemos que todo este cosmopolitismo e humanismo não são típicos dos portugueses, ainda que muitos tenham sobre si e sobre a sua história esta ilusão. Tudo isto parece ter ainda aqui a mão de Natália Correia, que tinha sempre uma panela com sopa para receber os últimos. Luís Alves de Sousa tem uma explicação menos mística e mais acessível a todos: “Tenho pena que em Portugal não saibamos usar aquilo que temos de melhor. O que me custam estas pequenas coisas, como ter uma garrafa de Porto ou um chá para os hóspedes, é tão pouco e faz tanta diferença para quem chega. Se eu posso ter um serviço de luxo porque é que não o hei-de dar? Tudo isso me é devolvido pelo número de clientes que fidelizo e pelo facto de nunca ter o hotel vazio, apesar de o seu preço ser elevado. Claro que este não é um hotel para turistas normais, mas para quem gosta e sabe apreciar estas coisas, do mobiliário ao chá, mas sobretudo a memória. Tenho muita pena que Lisboa se esteja a tornar uma cidade de fachadas debaixo das quais não há memória. E sem memória não há personalidade.”