Era uma vez um homem que queria ser mulher, e que, de um momento para o outro, deixou de querer ser as duas coisas ao mesmo tempo, a uns quantos quilómetros do chão. O homem, António Felipe Santos, brasileiro extraditado de Lisboa para o Rio, arquitetou o plano, e Shirley, a belíssima mulher que ele também conseguia ser, cumpriu à risca a arquitetura de um suicídio com desejos de grandeza.
Decidira então morrer de desgosto. E quanto mais longe do anonimato, melhor. Sua cabeça, sua sentença. Fez contas à vida. Orquestrou uma tragédia do tamanho de um avião com gente dentro, morta por ter a sua história nos jornais e nas televisões de todo o mundo, a tal história que diz que era uma vez um homem, que queria ser mulher, e que, de um momento para o outro deixou de querer ser as duas coisas ao mesmo tempo, a uns quantos quilómetros do chão. Porquê? Porque um ano antes fizera o caminho inverso, do Brasil para Portugal, a navegar a ilusão de conquistar com o corpo Lisboa, primeiro, e depois Paris. Jamais se perdoaria por ter falhado esse encontro de sonho com o destino nos Champs-Élysées.
No embarque, há quem repare na extraordinária beleza de uma mulher exótica. Depois, uma cortina deixa a classe turística às escuras. Ninguém sabe que Shirley está ali para matar e morrer. Antes de fazer isto e aquilo, janta.
Portugal era para ter sido trampolim e não ricochete das próprias intenções. Só que um dia, na rua, em vez de um cliente apareceu-lhe um ator. O cliente não queria sexo, nem trazia dinheiro. E Shirley pagou por isso. O cliente era polícia. E se a vida estava, como estava, para golpes de teatro, Shirley não estava para aí virada. Nem para aí, nem para o Brasil. Mais depressa morreria de vergonha, com a ajuda de uma lata de gás paralisante.
Mandada embora de Portugal, por “não ter um modo de vida”, não tarda nada Shirley vai pedir à hospedeira para pedir ao piloto que a deixe tirar uma fotografia no cockpit. Shirley viaja em executiva. O avião está lotado, mas as autoridades, como querem mesmo muito que ela vá embora de uma vez por todas, sentam o problema que têm em mãos nas mordomias dos lugares da frente. No embarque, há quem repare na extraordinária beleza de uma mulher exótica. Depois, uma cortina deixa a classe turística às escuras. Ninguém sabe que Shirley está ali para matar e morrer. Antes de fazer isto e aquilo, janta.
O mal acontece enquanto o piloto esfrega um olho
Se é verdade que avião é pássaro, e voa, avião é tantas outras coisas mais. Entre elas, é sala de projeção, cineminha, passa filmes para fazer passar o tempo, o que não acelerando a marcha sempre ajuda à digestão das dez horas em altitude dentro de um cilindro com asas que a engenharia atira de um continente para outro.
Entraram 373 pessoas no Boeing 747-200 da Varig, entre tripulantes de passageiros. Arrumaram-se malas e outros haveres. Vieram instruções emergentes, por segurança, contra pânicos e azares, colapsos da máquina e da capacidade humana. Veio por fim uma voz de comando ordenar as últimas dúvidas. Encostaram-se as mesas e as costas das cadeiras. Voaram.
A escritora portuguesa Teolinda Gersão segue a bordo, a certa altura na plateia. Antes estivera na sala de jantar, sem sair do sítio. Assiste, sentada, na mais adequada posição de voo, à madrugada de um romance popular. Richard Gere é um homem de negócios e Julia Roberts uma prostituta: Pretty Woman passa nos minúsculos écrãs. Em poucos minutos, a comédia romântica dá lugar a um filme de terror sem atores, mas repleto de figurantes involuntários. Ninguém percebe muito bem o que está a acontecer. O avião oscila, e enquanto faz tudo o que um avião não deve fazer durante a rota, inicia uma descida vertiginosa. Há louça por todo o lado. Os carrinhos de serviço embatem nos assentos, nos apoios de braços. As hospedeiras tapam o nariz e a boca com paninhos dos encostos de cabeça das cadeiras.
Ponto de situação: a aeronave pula e avança em sentido proibido, a pique, as aeromoças mais o seu semblante aflito e tanto silêncio na língua, retraídas de medo e de espanto. Teolinda Gersão percebe o “ar denso de fumo”, vem aí o “barulho da louça a partir”, já partiu, continua a partir, os cacos ao calhas, o Boeing “a descer vertiginosamente” e Teolinda, em 1990, numa fase da vida em que ainda não se dedicava em exclusivo à literatura, encontra uma nesga de conforto na figura consagrada do escritor e poeta David Mourão-Ferreira — “o David teve mais noção do perigo” — a quem disse: “Se eu fosse sozinha estaria em pânico, mas como você vai aqui, e a sua vida corre muito bem, não lhe vai acontecer nada. Parecia que a vida dele era um passeio na passadeira vermelha. São ideias irracionais, em momentos em que nos agarramos a qualquer coisa para ter um pensamento positivo”.
Teolinda e David escreveriam no Jornal de Letras sobre esse minuto, talvez nem tanto, em que um o avião esteve de cabeça para baixo e a vida no mesmo rumo, apontada à morte. Só o fariam no Brasil, pelo que é demasiado cedo para lá à ir, nesta viagem que ainda nem sequer chegou à Gran Canária, ilha de emergência e porto seguro.
Adiante. Para lá cortina da classe executiva, a solução do mistério. Shirley põe em prática o plano de Afonso. A hospedeira, ao abrir a porta, não vai ter tempo de fazer a fineza de abordar o comandante com a tal fotografia a pedido de uma mulher “extremamente bonita”. Shirley ultrapassara o primeiro obstáculo, a porta do cockpit, com a arma de manuseamento fácil, a sedução, ajudada de modo inconsciente pela boa vontade da hospedeira, que ao abrir a porta, tirou a cavilha ao ímpeto suicida de Afonso/ Shirley e às suas premeditações.
No mesmo instante, ele travestido dela, pulveriza o comandante com gás paralisante. E uma história com tudo para correr mal, a correr mesmo muito mal, salva-se graças à aparição de um narrador imprevisto. Naquela hora má de Afonso, faltava uma peça no puzzle do cockpit e Afonso não dera pela falta dela.
O co-piloto tinha ido à casa de banho. No regresso, encaixou ao certo no quebra-cabeças. Começou por neutralizar o agente agressor da ocorrência com outros elementos da tripulação. Pegou nos comandos do Boeing, fê-lo descer da forma abrupta que os passageiros sentiram a meio do filme, a louça partiu, o ar adensou, parecia o fim do mundo, a lua cheia lá fora a iluminar o Atlântico, parecia uma eternidade, parecia o fim da eternidade, mas não, foi um minuto, um minuto em queda, um passo atrás para dar dois à frente, o avião desceu até onde tinha de descer.
E desceu para quê Teolinda? “Para poder chegar a uma altitude certa para o co-piloto o fazer arejar e subir de novo.” E quando voltou a subir… “Ouviu-se o piloto dizer que foi um passageiro que lançou gás na cabine dos pilotos. Disse que dentro de trinta minutos faríamos uma aterragem de emergência. Fez-se um grande silêncio, naquela meia hora até às Canárias. Pensávamos que fosse um princípio de incêndio nos reatores do avião”.
Uma aterragem de emergência
Diz quem viu que foi cabo dos trabalhos. À polícia espanhola, apanhada na curva pelo desenrolar dos acontecimentos, a léguas de querer ficar com um pirata do ar de ocasião, a meio de uma extradição de Portugal para o Brasil, passou-lhe pela ideia mandar toda a gente embora, aos seus lugares e à rota anterior, mas ninguém embarcou nesse pensamento a jato. Ninguém. E os espanhóis em Las Palmas, tentando insistir que sim, que sim, que deveriam partir todos na mesma, que não ficavam com a pessoa em causa por falta de jurisdição, que o prisioneiro não era deles. Mas nada, ninguém vacilou.
Sobrou para a companhia aérea. Pelo transtorno infligido aos passageiros, a Varig mandou outro avião, que demorou a chegar e obrigou a uma espera mais longa que o dia — no total terão sido quase trinta horas empatados nas Canárias. Às sete da manhã, Teolinda Gersão telefonou para o marido com a notícia de última hora. Afonso estava preso com Shirley em Las Palmas. A Gran Canária não o queria receber, mas teve mesmo de ser, afinal era uma emergência, um voo em dificuldades, e recusar a abertura da pista seria muito provavelmente um sarilho maior para as autoridades locais, bem maior do que ficar e lidar, durante umas horas, com o autor do ataque a onze mil pés de altitude. Só não o queriam ali para sempre. E não o teriam.
Teolinda Gersão recorda essa noite no aeroporto: “As pessoas pensaram que iam morrer. E nas Canárias houve quem chorasse, quem se exaltasse, quem fosse a seguir embebedar-se”.
Trinta e seis horas depois de ter descolado da Portela, o Boieng 747-200 da Varig, com 372 pessoas a bordo, cumpriu o destino previsto. Teolinda Gersão e David Mourão-Ferreira perceberam, no Rio de Janeiro, diante de um batalhão de jornalistas, o seguinte: “Pelo facto de sermos escritores ninguém nos ligava nenhum. A literatura interessa muito pouco às pessoas”. Dentro desse frenesim mediático perceberam ainda, e pela primeira vez, em 36 horas de voo, num minuto de terror, e em meia hora de silêncio, que as suas vidas tinham estado nas mãos de um travesti que “ia tão contrariado para o Brasil que se quis suicidar”.
O que eles escreveram com a morte ali à mão
À direita da página 30 do Jornal de Letras, nos dias a seguir ao susto de 1990, David Mourão-Ferreira abria o relato, dizendo, por baixo do nome, isto: “Foram momentos de um incrível suspense em regime de pesadelo condicionado”. Falava de um Boeing “roncando de um modo suspeito (…) descendo de modo suspeito, dos 11.000 metros de altitude a que vogava para cerca de 1.000 a cima do nível do mar”. Lá pelo miolo do texto, onde se expõe a um “susto retroactivo”, não diz que viu a morte diante dos olhos, mas que a sentiu debaixo do pés. O tal “susto retroactivo” levou-o, no derradeiro parágrafo, a recordar “a urgência de vivermos cada minuto, como se cada minuto pudesse afinal ser o último”. David Mourão-Ferreira morreu há 19 anos, no dia 16 de Junho de 1996.
Teolinda Gersão, sobre sustos e afins, põe na sua mancha de texto no Jornal de Letras, as mesmas memórias que 25 anos mais tarde recuperou para esta incursão à mulher que viajava no corpo de um homem dentro de um avião, “para dizer que ele também é um ser humano. Enlouquecido e perturbado, é certo. Mas um ser humano como nós. Com um desespero do tamanho do mundo”.
Recuperando as peças de um avião que esteve para cair no oceano
O homem que queira ser mulher e que deixou de querer ser as duas coisas ao mesmo tempo foi julgado no Brasil. Foi condenado a pagar uma multa de 10.000 dólares. Foi preso e casou na cadeia.
Longe vai o dia em que, na alfândega, em poiso português, Lisboa, aquele corpaço, muito bem adereçado, das roupas e dos brincos ao cabelo, e quem sabe às unhas (não restaram muitos testemunhos, também aos factos o tempo trata da saúde), aquela massa de homem, mas com desenho de senhora, distratora de atenções, deixou passar na maleta da moça, ou no saco do moço, por entre as calejadas barbas da aduana, uma pequena lata de gás paralisante, fácil de confundir com laca de cabelo, exposta, como terá estado, a olhos pouco espertos na matéria. E a polícia, desconcertada pelo homem e a mulher do seu mandato, a deixou ir assim para o avião. Já se sabe que a segurança não peneirava passageiro como agora peneira. Faltavam, no outono desta epopeia, quase onze anos para o 11 de setembro. E convém não esquecer que Shirley, no apogeu da idade, seria mulher de fazer parar o trânsito, mesmo com Afonso Felipe Santos por baixo daquela capa de abrigar homens temporariamente sós.