Reportagem em Clarksburg, Virgínia Ocidental
É difícil para Lou Ortenzio tratar dos últimos detalhes deste culto religioso às portas de Clarksburg quando, a cada passo, alguém o cumprimenta. Sejam os toxicodependentes em processo de recuperação, aqueles que ainda andam nas ruas ou os voluntários que aqui vieram ajudar, toda a gente faz questão de ir ter com ele e dar-lhe sinal de vida. A cada “olá, Lou!” e “tudo bem, doutor?”, sorri e acena-lhes com a cabeça, onde leva um boné azul com as letras WV em amarelo. Aqui toda a gente o conhece. Pelas melhores e pelas piores razões.
Lou Ortenzio, 67 anos, chegou a Clarksburg em 1978. Com 25 anos, e saído da faculdade de medicina, chegou àquela cidade da Virgínia Ocidental para montar um consultório com outros dois médicos. Chegou numa altura em que a cidade já estava no início do declínio causado pelo desaparecimento das indústrias do carvão e do vidro. O que este médico não sabia à altura era que, não muito depois, através do seu trabalho, viria a ser responsável por acentuar esse declínio – que, além da cidade, também o arrastou para o fundo.
Quando estudou medicina, Lou Ortenzio aprendeu os quatro sinais vitais: temperatura corporal, ritmo cardíaco, ritmo respiratório e pressão sanguínea. Porém, quando já estava instalado em Clarksburg, o consenso científico ditou a inclusão de um novo sinal vital: a dor. Ao mesmo tempo, a indústria farmacêutica desenvolveu uma série de analgésicos novos e introduziu-os no mercado sob a avaliação de que não causavam dependência.
Se, até então, Ortenzio receitava analgésicos apenas para pessoas com cancro e outras doenças graves, a partir dali passou a fazer o mesmo para outros casos, como dores de costas ou nos joelhos, então comuns nesta cidade onde muitos trabalhavam com o corpo. “Eu só queria que as pessoas ficassem felizes”, recorda.
Os sinais estavam lá e, em retrospetiva, Lou Ortenzio reconhece-os. Primeiro, o número de pessoas que lhe pediam analgésicos não parou de crescer. Depois, cada um dos seus pacientes passou a pedir mais e mais receitas. “Muitas pessoas vinham ter comigo e diziam que tinham perdido os analgésicos ou que eles tinham caído para a sanita. Mas isso nunca acontecia com os medicamentos para a tensão ou para a diabetes”, conta. “Eu devia ter percebido.”
Mas Ortenzio não estava bem. As longas horas de trabalho e a sensação de ter Clarksburg às costas começou a pesar-lhe. Aos poucos, afastou-se da família e os seus níveis de ansiedade dispararam. O médico entrou numa espiral, até que saiu dela ao tomar uma amostra de hidrocodona, uma analgésico que lhe foi enviado por uma farmacêutica. Aqui, entrou em nova espiral – esta mais perigosa e mortífera, igual àquela em que muitos dos seus pacientes caíram.
“De uma amostra passei muito rapidamente para 40 comprimidos por dia”, recorda. À medida que precisava de mais analgésicos, arranjou novas maneiras de consegui-los. Como médico, podia levantar mais unidades do que um cidadão comum. Mas quando isso deixou de lhe chegar, passou a passar receitas em nome de amigos. E quando isso deixou de ser suficiente, começou a escrever receitas em nome do filho, para depois levantá-las. “Foi o meu ponto mais baixo”, admite.
Primeiro, o vício custou-lhe o casamento. Depois, o emprego, quando o FBI fez buscas no seu escritório, onde ficou claro que o seu historial de receitas escondia algo. Pouco depois, foi acusado de fraude em saúde e de passar receitas fraudulentas. Era 2006 e Lou Ortenzio declarou-se culpado.
Se tivesse sido meses antes, a condenação tê-lo-ia levado a aprofundar a espiral em que caíra. Mas, quatro meses antes, Ortenzio começara a sair dela. Casado com uma segunda mulher, que frequentava a Igreja Baptista, viu na religião a sua salvação.
“Deus estava no comando e eu tinha de me render”, diz. “O gesto de uma pessoa que se rende é geralmente visto como algo mau. Mas não. É bom. É uma vitória.”
Sem licença para exercer medicina, Lou Ortenzio fez um pouco de tudo para ganhar a vida em Clarksburg. O primeiro trabalho foi de jardinagem, mas também trabalhou numa papelaria e a entregar pizzas. “Ia entregar pizzas às mesmas casas onde antes era chamado como médico”, diz. Para alguns seria humilhante, mas tudo o que Ortenzio sentia era alívio.
Mas, ao mesmo tempo, à sua volta, Clarksburg não parou no seu declínio. O desemprego e a pobreza afastaram muitos daquela cidade e afundaram ainda mais os que ali ficaram. Aos poucos, foram aparecendo as primeiras mortes por overdose de analgésicos – duas das quais, sabe Lou Ortenzio, foram com medicamentos que ele receitou. Para outros, os analgésicos abriram caminho a outras drogas, da heroína às metanfetaminas.
Ali, o ex-médico só via o problema a crescer. “Eu recuperei, mas Clarksburg foi ficando cada vez pior”, diz. À medida que ia contando mais dias sem drogas, assumiu a vontade de ajudar os outros. Em 2008, conseguiu então um emprego na Clarksburg Mission, uma instituição cristã fundada em 1971 que dá um teto a sem-abrigo e passou a dedicar todo o seu trabalho para o alojamento e recuperação de toxicodependentes quando aquela cidade caiu na droga. Desde 2018 que Lou Ortenzio é diretor do centro.
A crise dos opioides, que vão dos analgésicos acessíveis com receita médica à heroína, é um problema nacional dos EUA. De acordo com os números oficiais para o ano mais recente (2018) morreram 67.367 pessoas com overdoses relacionadas com droga em todo o país, o que aponta para uma taxa de mortalidade por estas causas de 20,7 pessoas a cada 100 mil habitantes. Quanto a 2019, os números provisórios apontam para um agravamento da situação, com uma estimativa oficial de 71.966 mortes. A confirmar-se, isto quer dizer que, desde 1999 (ano em que houve 16.849 mortes por overdose de drogas), este foi um problema que cresceu em 327%.
Neste contexto, não há nos EUA nenhum caso pior do que a Virgínia Ocidental. A realidade de Clarksburg repete-se com forte incidência em tantas outras coordenadas deste estado, com uma taxa de mortalidade em 2018 de 42,4 mortes por cada mil habitantes — ou seja, mais do que o dobro na generalidade do país. Para lá das mortes, as estatísticas oficiais demonstram que praticamente 70 a cada 100 habitantes deste estado receberam uma receita para levantarem um opioide numa farmácia.
Esses números saltam à vista no culto religioso que está prestes a começar num espaço relvado arrumado a um canto ao pé de uma das entradas principais de Clarksburg. Logo a seguir às escadas que dão acesso àquela zona estão três mesas com várias panelas de chili, servidas por um grupo de solidariedade local, o Friends Feeding Friends, que ajuda sempre nesta iniciativa que acontece todos os meses. “O objetivo inicial é que os toxicodependentes venham até nós e recebam uma refeição quente grátis, mas o objetivo derradeiro é que eles cheguem aqui e oiçam a mensagem de Jesus Cristo”, diz Lou Ortenzio. “Se olharmos aqui à volta, a grande maioria das pessoas que aqui estão já teve problemas com drogas ou então ainda tem neste momento. E nós achamos que Jesus Cristo pode ajudá-los.”
À procura de algo entre as ruas de Clarksburg
Pouco depois das 18h00, quando o sol já mal se vê, um pastor da Igreja Baptista em Clarksburg vai até debaixo da lona montada naquele espaço relvado e começa a pregar. “Podem ler a Bíblia de uma ponta à outra que ela não vos vai dizer ‘acredita em ti'”, diz o pastor. “O que ela diz, isso sim, é ‘acredita no Senhor’. Esse é o vosso primeiro passo.”
Adam Humphrey acaba de dá-lo. Numa das cadeiras de trás diante da zona de onde fala aquele pastor, este homem loiro de 32 anos que vai para lá dos 1,90m de altura senta-se encolhido, naquilo que passa por uma tentativa de esconder o seu tamanho. Na véspera, deu entrada na Clarksburg Mission. “Estava farto de andar na rua ao frio, dia e noite, à procura de trabalhou ou de drogas”, diz. Fala com um forte sotaque do Sul dos EUA, através de uma voz grave e invulgarmente lenta.
As palavras do pastor não são novas para Adam Humphrey, que foi criado a ouvi-las dentro de casa. O pai era pastor da Igreja Baptista em Baltimore, antes de se ter mudado para a Virgínia Ocidental e ali criado a família onde Adam e os irmãos viriam a nascer. Não era, por aquilo que o filho conta, uma família feliz — e também o vício estava por trás disso.
O pai era alcoólico e a mãe toxicodependente. “Uma combinação explosiva”, recorda agora Adam Humphrey, erguendo as sobrancelhas num riso envergonhado quando diz aquelas palavras. Não conseguiu fugir dos estilhaços dos pais, que, desde cedo, o atingiram. Ainda criança, foi habituado a beber álcool na quinta em que foi criado. “Desde os três anos que os meus pais me davam um pouco de vinho para eu me acalmar”, recorda. “Foi aí que tudo começou.” E nunca parou: aos 13 anos, fumou erva pela primeira vez; aos 16, já estava a tomar analgésicos oralmente, atirando-o para um torpor que o levou a sair da escola secundária; aos 18, passou a injetá-los. Daí passou para outras drogas pesadas, de metanfetaminas a heroína.
O consumo e as ressacas levaram-no a ter “uma vida do caraças” — e, embora também se ria quando diz isto, não parece ser com orgulho que o faz. “Os estragos estão à vista”, diz, apontando primeiro para o braço e depois para o maxilar. “Entre um sítio e outro tenho 20 parafusos”, conta. Partiu ambos os sítios em lutas de rua, com outros toxicodependentes. Do braço, sobram as cicatrizes. Do maxilar, a razão pela qual Adam Humphrey fala tão devagar.
O seu ponto mais baixo, conta, foi quando a segurança social lhe tirou a custódia do filho, que hoje tem cinco anos e que já não vê há mais de seis meses, depois de se ter divorciado. “É por ele que estou a fazer isto, foi por ele que ontem cheguei à Clarkburg Mission para me curar”, diz. Esta não é a primeira vez que dá esse passo. “Já perdi a conta às vezes em que tentei curar-me”, diz. “Mas desta vez espero conseguir.”
A 50 metros de Adam Humphrey, e sem que consiga ver o corpo encolhido dele, está James David. Tem 29 anos e está a viver em Clarksburg, onde divide o seu tempo entre a procura de droga e o seu consumo, tudo enquanto busca um sítio seguro onde dormir. Apesar de não ser desta cidade, sente que já conhece os cantos deste território e todas as suas manhas. Na noite anterior, ficou a dormir na casa de um amigo, mas este fez-lhe saber que aquela era uma solução temporária. Por isso, já tem um mapa mental das casas que sabe que, tendo estado alugadas, deixaram de ter inquilinos recentemente. “Essas costumam ser as melhores, porque ainda não lhes cortaram a água, o aquecimento, às vezes até a eletricidade”, diz. “É só partir um vidro ou uma janela e estamos dentro.”
Uma vez por mês, sempre que a Clarksburg Mission e os Friends Feeding Friends se juntam à entrada da cidade, James David aparecem mas nunca se chega perto. A razão para guardar distância faz parte do seu percurso: começou a consumir droga aos 13 anos; aos 14, foi retirado aos pais (consumidores e traficantes) e colocado numa família de acolhimento; aos 18, foi preso pela primeira vez. Desde então, tem saído e entrado da prisão — experiência intermitente que lhe valeu stress pós-traumático e um medo a ajuntamentos.
Por isso, pede aos amigos com quem chega, todos eles toxicodependentes a viver nas ruas, que lhe vão buscar comida. A mensagem que vai soando nas colunas microfones e que ecoam pelos edifícios decadentes em volta não é algo em que esteja interessado. “Eu já tentei curar-me quatro ou cinco vezes, mas percebi que não tenho paciência para aquilo”, diz. “Não consigo estar a tentar afastar-me da droga e, ao mesmo tempo, passar os dias a falar disso. Qual é o ponto de estar a falar tanto tempo daquilo de que quero fugir?”, pergunta. Por esta altura, já segura uma taça de esferovite cheia de chili. De seguida, põe uma fatia de pão-de-ló de milho por cima e desfá-lo até tudo se juntar numa só papa. Dá as primeiras garfadas depressa, com ânsia.
“Melhor do que isto, só a droga”, diz James David para os amigos em volta. Alguns riem-se, outros parecem não ouvi-lo. Uma delas, Megan, encolhe-se numas escadas enquanto ressaca. Outro, Duncan, anda aos esses e rodopia enquanto fala por quem passa. Consumiu há menos de uma hora. À volta dele, nota-se uma certa impaciência de quem não está assim — e, agora que as colunas onde se ouviam os sermões já foram desligadas e as mesas onde as panelas de chili assentavam foram dobradas, o grupo está pronto a seguir caminho.
“Vamos embora, vamos arranjar droga, o meu dealer já está à nossa espera”, diz James David. Os amigos não demoram a levantar-se — basta só que Duncan, no seu jeito ondulante, guarde na mochila as calças e os ténis usados que lhe deram, ao mesmo tempo que segura nos vários sacos com comida que também lhe ofereceram. Ultrapassado esse passo, o grupo de três segue caminho em direção ao outro lado de um riacho, onde algures entre as casas de madeira com a tinta a descascar encontrarão aquilo que procuram. Na altura em que entram na casa do dealer, já Adam Humphrey estava nas camaratas da Clarksburg Mission.
“Continuamos a ser esquecidos pelo poder”
A crise dos opioides nunca foi tão grave nos EUA. Desde a década de 1990 até aos dias de hoje, a ciência evoluiu e tem hoje mais do que claro que os analgésicos de receita médica são aditivos. Porém, essa conclusão científica não tem sido acompanhada de políticas capazes de inverter o rumo desta epidemia, que, a cada ano que passa, mata sempre mais pessoas — e que, de 1999 até 2018, foram mais de 450 mil.
Na campanha eleitoral de 2016, Donald Trump prometeu pôr um travão nesta crise. “Vamos parar a entrada de drogas no New Hampshire e no nosso país a 100%”, disse, num discurso feito uma semana antes das eleições, naquele que é o terceiro estado mais afetado por esta crise. Meses depois, no discurso de tomada de posse, Trump falou dos “homens e mulheres esquecidos deste país” e enumerou vários problemas que os atingem, entre os quais “as drogas que roubaram tantas vidas e privaram o nosso país de tanto potencial por concretizar”, rematando depois: “Esta carnificina americana acaba aqui e agora”.
E este foi um tema que o Presidente não deixou cair após a eleição. Em outubro de 2017, declarou esta crise como uma urgência de saúde pública; em 2018, aumentou a despesa federal dedicada ao tratamento de toxicodependentes; e, nas negociações com a China durante a guerra comercial, não esqueceu de garantir que o gigante asiático diminuísse as exportações de fentanyl, um analgésico.
Embora o número de mortes por overdose em absoluto não tenha deixado de subir, a taxa de mortes por esta causa por cada 100 mil habitantes baixou ligeiramente no primeiro ano completo de Donald Trump na Casa Branca — de 21,7 em 2017 para 20,7 em 2018. Até aqui, segundo os registos oficiais que são feitos desde 1999, só tinha havido um ano em que esta taxa baixou — com um decréscimo de 0,1, entre 2011 e 2012.
Embora estas medidas de Trump sejam elogiadas pelos especialistas, as mesmas vozes põem em causa alguns passos que a atual administração deu, tal como outros que se prepara para dar. O diretor do Centro de Estudos e Investigação de Políticas para as Drogas do think-tank Rand Corporation, Beau Kilmer, critica a escolha de Chris Christie (ex-governador de Nova Jérsia e político próximo de Donald Trump) para liderar a comissão presidencial para o combate às drogas, em vez de especialistas no tema. “Isto torna difícil as pessoas entenderem quem é que está, afinal, a coordenar estes esforços”, disse Beau Kilmer à NPR.
Outra crítica tem a ver com os planos de Trump para a saúde nos EUA. Apesar de não ter ainda conseguido cumprir a sua promessa de abolir o Affordable Care Act (lei também conhecida como Obamacare, que abriu a possibilidade de qualquer pessoa ter um seguro de saúde público, se assim quisesse), o Presidente continua a fazer campanha a favor desse fim, em defesa de um sistema essencialmente de seguros privados.
“Retirar o Affordable Care Act não só levaria a que milhões de americanos perdessem os seus seguros de saúde como eliminaria a cobertura de abuso de substâncias ilícitas como tratamento essencial”, alerta um artigo publicado na revista científica Lancet. “Como resultado, as pessoas que estão a receber tratamento pelo uso de substâncias ilícitas poderiam ser retiradas ou recorrer a métodos alternativos para conseguirem opioides, como heroína ou fentanyl de rua, o que levaria a um aumento das mortes por overdose.”
Do outro lado da campanha, o democrata Joe Biden defende a continuação do Affordable Care Act como maneira de combater a crise dos opioides — algo que, por si só, não chegou para impedir a subida da taxa de mortes por overdose de 11,9 a 18,9 nos anos de Barack Obama, de quem Joe Biden foi vice-Presidente.
Em Clarksburg, não é consensual a avaliação daquilo que foi feito nos quatro anos de Donald Trump para tentar resolver esta crise. Lou Ortenzio votou antecipadamente nestas eleições e acabou por escolher o candidato do Partido Socialista dos EUA, Howie Hawkins. Não é que o diretor da Clarksburg Mission lhe conheça o nome: “Nem sei quem ele é, foi um voto de protesto, porque não quis votar em nenhum dos principais”.
Sobre Donald Trump e o combate à crise dos opioides, Ortenzio reconhece as menções que o Presidente fez ao problema há quatro anos. “Ao menos, ele falou de nós, o outro partido nem isso pode dizer”, sublinha. Mas, para lá das palavras, o ex-médico vê poucas ações e ainda menos resultados. “Não há um ano em que eu não veja um agravar desta situação.”
Com a pandemia da Covid-19 surgiram sinais de um agravamento súbito da crise dos opioides um pouco por todo o país, com vários estados a reportarem um aumento de mortes — em particular naqueles em que o problema já estava fortemente instalado, como a Virgínia Ocidental. Paradoxalmente, este tema foi apagado da campanha e dos debates que a marcaram — a única menção a drogas foi quando Donald Trump atirou a Joe Biden que o seu filho mais novo, Hunter Biden, tinha sido toxicodependente. De resto, o tema não tem merecido atenção.
“Continuamos a ser esquecidos pelo poder”, diz Lou Ortenzio, remetendo para o discurso de tomada de posse de Donald Trump.
Um passo de cada vez
São 9h00 da manhã do dia seguinte ao culto religioso que aconteceu às portas da cidade. Ao lado da residência da Clarksburg Mission, naquilo que era uma loja de roupa em segunda mão que teve de ser fechada por causa da pandemia, os residentes da primeira fase do programa de reabilitação estão sentados todos à volta da mesma mesa.
Com a pandemia, a missão acabou por implementar um novo sistema. Quando entraram em confinamento no mês de março, deixaram de poder receber pessoas que entravam e saíam dia sim, dia não. “Era simplesmente impraticável termos a segurança sanitária garantida com pessoas a circular todos os dias”, diz Desi Underwood, 48 anos, vice-diretora da Clarksburg Mission. No início do confinamento tinham 110 pessoas a dormir ali, às quais comunicaram que quem saísse não poderia entrar durante os próximos tempos, para evitar contágios trazidos de fora.
Dessas 110 pessoas, hoje restam 39 pessoas dentro daquelas portas. “Parece um número péssimo, mas, na verdade, é melhor assim”, garante Desi Underwood. A razão por trás dessa lógica é que, ao manterem quem procura tratamento dentro de portas, a Clarksburg Mission começou um programa divido em três fases: uma primeira, de 90 dias, para desintoxicação e orientação espiritual; uma segunda, também de 90 dias, para inserção no mercado de trabalho; e uma terceira, que vai de 6 a 24 meses, em que vão viver para casas independentes, noutras partes de Clarksburg.
O programa é dirigido por Melissa Carter, 39 anos, ex-toxicodependente. Está sóbria desde 2017 e trabalha na missão desde o ano passado. É com ela que começam as sessões matinais que juntam algumas das pessoas que estão na primeira fase com as que já passaram à seguinte. A ideia é que as primeiras percebam o que têm pela frente através das últimas — entre as desafios e os sucessos que podem vir depois.
Adam Humphrey está ali sentado da mesma maneira que estava no dia anterior frente ao pastor da Igreja Baptista: encolhido e tímido, a tentar passar despercebido. À sua volta, um a um, os residentes do programa fizeram o que fazem todas as manhãs para começar o dia: dizem aquilo pelo qual estão gratos.
Houve quem celebrasse a reversão de uma pena em tribunal, como recompensa de estar a receber tratamento naquelas quatro paredes. Outra pessoa assinalou que voltou a ter custódia do filho — algo que disse num sorriso apenas comparável com o de uma mulher viu pela primeira vez a neta. Também houve quem dissesse: “Estou sóbrio há 6 meses e dois dias. Continuo a querer ficar pedrado, claro que quero. Mas estou grato pela graça de Deus, que me mantém sóbrio e com vontade de continuar a tratar-me”.
Quando chega a vez de Adam Humphrey falar, a sua voz grave soa durante pouco tempo. Com os cotovelos em cima da mesa e o tronco curvado, obriga-se a falar. “Estou grato pelo bom tempo que passámos ontem… Estou feliz por estar sóbrio mais um dia…”, diz. Tenta pensar em mais, mas o olhar dos outros parece feri-lo. “E já chega”, diz, encolhendo-se mais um pouco.