Chega ao café que fica junto à sua casa, na Baixa do Porto, de máscara no rosto, olheiras de quem já não dorme bem há vários dias e dois telemóveis na mão, sempre à espera de uma mensagem escrita em árabe. Nasir Ahmad é afegão, chegou à cidade há cinco anos, sem saber dizer uma palavra em português, numa tentativa de mudar de vida e conseguiu. Em Cabul, a sua terra natal, está a mãe, Roshan Noori, agora com 75 anos, vários problemas de saúde e com mobilidade reduzida, e a irmã, Lida Ahamdi, de 32, ativista na luta pelos direitos das mulheres. Com a conquista da cidade pelos talibãs, a 15 de agosto, ambas correm agora perigo de vida, garante.
Tenta comunicar com elas todos os dias por mensagens e, apesar das dificuldades de internet, recebe relatos diários de medo e desespero: “Não saem de casa, têm as janelas tapadas com cortinas. E só comem, porque um vizinho vai às compras por elas”. Nasir, à distância, já não sabe o que fazer. Não consegue dormir nem comer bem.
No total contrarrelógio, apesar dos vários e-mails e pedidos de ajuda enviados para o governo português e associações, continua sem uma resposta concreta. “Só queremos ter uma vida tranquila e em segurança”, desabafa.
Eis o relato na primeira pessoa e em português. Como fez questão de fazer:
A vontade de sair do Afeganistão
“Tenho 31 anos, nasci em Cabul, vivi uns anos no Paquistão, mas voltei a Cabul para começar a estudar. Foi lá que tirei a minha licenciatura em administração empresarial e cultural e trabalhei numa empresa privada de telecomunicações. Ao mesmo tempo, colaborava com a ONG German Agro Ation, na área da administração da segurança.
A vida lá era boa, mas nunca me sentia seguro a 100%. No Afeganistão havia sempre guerra, direta ou indiretamente, existam ataques terroristas todas as semanas, os talibãs invadiam mesquitas, universidades e ruas. Estávamos sempre prontos para que isso acontecesse, vivia sempre com medo. Lembro-me que em 2014 estava numa sala da universidade e eles invadiram-na, alguns dos meus colegas morreram nesse ataque.
Por trabalhar com direitos humanos, sabia que o meu nome já era famoso entre os talibãs. Em novembro de 2015 recebi uma ordem deles para não trabalhar mais nessa área, aí percebi que eles nos seguiam, sabiam a data e as horas de tudo o que eu fazia no escritório. São um grupo forte e por isso conseguem sempre o tudo o que querem. Nessa altura, decidi juntar dinheiro para sair do país, não conseguia ver mais violência todos os dias, estava cansado.”
A adaptação a Portugal
“Nunca pensei vir viver para o Porto, mas lia nas notícias que Portugal era um país seguro e o que eu mais precisava era de segurança. Não precisava de um país muito rico, mas de um país tranquilo. Muitos afegãos têm família na Alemanha, tenho tios e tias lá, mas procurava um sítio mais pacífico.
Tive a sorte de fazer alguns contactos online com portugueses e consegui vir para o Porto. Cheguei no inverno de 2016 e no início foi tudo difícil, principalmente o facto de estar sempre sozinho. Comecei por viver num hostel alguns dias, foi lá que conheci vários amigos que depois me ajudaram a alugar uma casa. No início, não sabia falar português, então inscrevi-me num curso para estrangeiros na escola Soares dos Reis, alguns amigos também me deram aulas individuais. Ainda não falo bem, mas quero tentar falar cada vez melhor.
Seis meses depois de chegar ao Porto, entrei no mestrado de marketing na Universidade Católica. Nunca tive dificuldades de relacionamento com as pessoas, o mais complicado foi lidar com um sistema curricular diferente do que estava habituado. Estudava em persa e aqui tinha aulas em inglês. Ainda fiz três cadeiras em português, foi bastante difícil, mas consegui passar a tudo.
Com a crise provocada pela Covid-19 ainda não consegui arranjar trabalho na minha área, mas estou a tentar. Gostava de trabalhar numa empresa internacional, porque falo várias línguas: persa – a minha língua materna – inglês, português, alemão e árabe. Nunca conheci refugiados no Porto, não conheço nenhum afegão cá, mas gostava de me cruzar com alguém para poder falar a minha língua, tenho muitas saudades de falar a minha língua materna.
Em Portugal adoro o tempo, para mim é sempre verão, e a comida, especialmente o bacalhau. É o meu prato favorito, também já sei fazer, mas não é como num restaurante típico. Com amigos, já fui a outras cidades do país como Aveiro, Braga, Comporta, Algarve, Lisboa e Setúbal, mas gosto muito do Porto, quero ficar aqui a trabalhar e a ser uma pessoa independente, igual às outras.
Sempre existiu muita burocracia, mas comigo deu tudo certo. Deram-me o título de refugiado, que tenho até hoje, mas no próximo mês penso que já terei nacionalidade portuguesa. Pedi isso há uns quatro ou cinco meses, mas devido ao coronavírus o processo atrasou. Gosto muito de viver aqui, sinto-me com a mesma cultura e ter a nacionalidade é uma coisa muito importante para mim.”
A invasão dos talibãs e os pedidos de ajuda
“O meu pai morreu, a minha mãe tem 75 anos, nunca trabalhou porque tem um problema no joelho, está dependente e anda de cadeira de rodas. A minha irmã tem 32 anos, é solteira, não tem filhos, trabalha na administração de uma empresa ligada ao petróleo e é ativista, trabalha com mulheres na ONG Afghanistan Women Council. As duas vivem na mesma casa em Cabul e estavam bem, não queriam viajar. As mulheres eram independentes, podiam sair e trabalhar, mas agora tudo isso é crime.
Quando isto aconteceu, um amigo enviou-me uma mensagem a dizer que os talibãs estavam por todo o lado e ninguém queria de casa. Mandei logo uma mensagem à minha irmã a perguntar se estava bem e ela disse-me que sim. Estava a trabalhar no escritório e só conseguiu voltar para casa ao fim do dia, depois disso nunca mais saiu de lá. Por mensagem de voz, contou-me que estava toda a gente a ir para o aeroporto para tentar fugir, que só via coisas horríveis e homens armados. Sigo alguns meios de comunicação do Afeganistão nas minhas redes sociais e acompanhei tudo pelo telemóvel e pela televisão. Os talibãs estavam presentes em muitas cidades, mas nunca pensei que chegassem a Cabul, aconteceu tudo muito rapidamente.
Elas não conseguem ir para o aeroporto, porque são mulheres e estão sozinhas. É por isso que as quero ajudar. Tenho medo que forcem a minha irmã a casar e a minha mãe fique sozinha. Tenho medo, porque a minha irmã ajuda outras mulheres e para eles isso é crime. Ela está sempre à espera que os talibãs invadam a casa delas para a matar, até porque soube que outras colegas ativistas que morreram.
Há 8 anos que não as vejo, porque quando sai de Cabul elas viviam no Paquistão, mas sempre comuniquei com elas por telefone e pelo Whassap. Tenho falado com elas todos os dias, mas não como antes. Antigamente estavam sempre online, agora temos receio de o telemóvel da minha irmã estar a ser controlado por eles.
Falamos muito pouco e sempre por mensagens, nem sempre consigo, porque, por vezes, os talibãs cortam o sinal da internet. Falei com elas ontem, perguntam-me sempre se consegui alguma ajuda para as trazer para Portugal. A minha mãe disse-me que a saúde dela vai piorar porque não pode ir ao médico. Elas estão bem, mas com muito medo, não saem de casa, têm as janelas tapadas com cortinas e só conseguem alimentar-se porque um vizinho homem vai às compras por elas.
Peço ajuda ao governo português para as trazer para cá, sei que não é fácil, mas espero conseguir. Já criei uma petição online e enviei emails há cinco dias para o SEF, para o Presidente da República, para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, para o Gabinete de Asilo e Refugiados, mas ainda não tive qualquer resposta. Só tenho até dia 31, tenho pouco tempo e preciso da ajuda de Portugal para salvar a vida delas.
Não durmo bem há vários dias, a minha cabeça está lá, o meu espírito está lá, só o meu corpo é que está cá. Acho que só vou comer bem quando souber que elas estão seguras. Só queremos ter uma vida tranquila e em segurança.”