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Agora que tem as contas arrumadas, literalmente, Leonard Cohen diz-se preparado para morrer. É por isso que este novo álbum tem o som de um adeus antecipado, com a carga religiosa de muitas das suas músicas sublimada pela proximidade da morte e de um tête-à-tête despojado com Deus. Com o fim a aproximar-se, Cohen perde o pudor e desafia o Todo-Poderoso para um último combate. Como sabe que o vai perder, permite-se ser sincero e mostrar-se vulnerável (e assumir a vulnerabilidade é também uma derradeira manifestação de força), “eis-me aqui, estou pronto, vamos lá”, sem perder no entanto o humor e um cinismo que nunca azeda.
No fundo, é o drama da humanidade: se tudo o que há é silêncio, então que sejamos nós a falar, nem que seja para invectivar o Deus de que tanto precisamos. No outro dia, ao ver “Os Dez Mandamentos”, essa megalomania exuberante de Cecil B. De Mille, fiquei a saber, num dos documentários do DVD, que foi Charlton Heston quem propôs que a voz de Deus na cena no Monte Sinai fosse a sua própria voz, alterada, porque estava convencido de que, numa situação semelhante, Moisés teria ouvido a voz de Deus no interior da sua cabeça. E é isso que acontece aqui, a voz de Cohen, mais grave que nunca, dirige-se a Deus – que nas suas canções assume muitas vezes a forma de uma mulher, normalmente de uma amante que se perdeu, de um amor impossível – e se há resposta, é a do eco da sua própria voz, um homem a falar com Deus, um homem a falar sozinho, um Deus a falar com um homem, um Deus a falar sozinho.
Este é um álbum de canções sagradas e profanas, música para igrejas, sinagogas e apartamentos onde se sofre pelo fim do amor, pelo fim da vida. Salmos fúnebres, finais, cheios de serpentes, pecados, anjos e diabos, tentações, luz, graça, verdade, caminho, cálices de sangue, culpa e mulheres. Que o fim de Cohen esteja distante e que estas canções possam embelezar outros funerais. Como estes, canção a canção:
Para funerais dos convertidos
“You Want it Darker”. O funeral de alguém que se converteu tardiamente à religião (ou ao amor) merece uma canção como You Want it Darker, que dá título ao álbum. Pode ser aquele amigo que só descobriu a religião ao mesmo tempo que encontrou o frigorífico vazio depois de a mulher o ter deixado. A certa altura, Cohen, acompanhado de um coro, canta “hineni, hineni” que é como quem diz “Senhor, já que estamos aqui faz o que achares melhor.” Na história da religião há muitos casos de conversão, o mais célebre dos quais daqueles senhor que viu a luz a caminho de Damasco. Mas, tal como as finanças, aparentemente Deus aceita formulários submetidos fora do prazo. Se se tem de pagar multa ou não, é assunto para se debater no além, a dois, preferencialmente numa conversa regada a vinho. Nunca é tarde para amar. É sempre cedo para morrer.
Para funerais dos hesitantes
“Treaty”. A quem se dirige Cohen quando canta “I’m so sorry for that ghost I made you be / Only one of us was real and that was me”? A uma mulher que o abandonou ou ao Deus de cuja existência ele, afinal, duvida? À mulher que não podia ser o que não era ou ao Deus em que ele acreditou em vão? A tensão entre amor incondicional (ágape) e amor romântico (eros) manifesta-se em muitas das canções de Cohen. O homem sente-se dividido pelo amor a Deus e aquela sensação de calor no baixo ventre quando a vizinha do rés-do-chão vai à janela de roupão. Se conhece alguém com tendências para Santa Teresa de Ávila e confunde orgasmos com êxtases místicos (e quem, na verdade, sabe onde começam uns e acabam os outros?), guarde-lhe esta canção para o dia final.
Para os funerais dos que fizeram as escolhas erradas
“On the Level”. “Se o arrependimento matasse…” O arrependimento não mata, mas mói. E para que possamos celebrar as escolhas certas somos obrigados a reconhecer que, por vezes, optámos pela pior solução. Há uma canção dos Pulp, “Something Changed” (letra, como sempre, de Jarvis Cocker) que fala sobre como uma decisão menor pode afetar o rumo da nossa vida e talvez afastar-nos, sem que tenhamos maneira de o saber, do verdadeiro amor. O que teria acontecido se, naquele dia, tivéssemos ficado na cama até mais tarde? “Do you believe that there’s someone up above? / And does he have a timetable directing acts of love?” Ah, os fios do acaso. Mas quando somos nós que deliberadamente viramos costas ao que o acaso pôs no nosso caminho? Que mandamos embora os nossos anjos pensando que estamos a renegar os nossos demónios? Cohen responde: “They oughta give my heart a medal / For letting go of you”. Uma medalha para os corações impacientes, nem mais.
Para os funerais dos que acabam as discussões com “leva lá o triciclo”
“Leaving the Table”. Todos nós conhecemos alguém que, à segunda jogada de uma partida de xadrez, começa logo a dizer “pronto, pronto, já ganhaste”. Ou que, no calor de uma discussão que lhe foge do controlo, admite a derrota com “pronto, leva lá o triciclo.” Esta canção é para eles. Não são desistentes, nem perdem os jogos por falta de comparência. São mais hábeis e obtêm uma vitória moral quando resolvem sair com estrondo. Quer dizer, saem lentamente, mas arrastam a cadeira. Qual é o nome que se dá a estas pessoas? Ah, passivo-agressivas. Que fique claro que Cohen, apesar de dizer “You don’t need a lawyer / I’m not making a claim / You don’t need to surrender / I’m not taking aim”, não é desses. Ele é um velho guerreiro, Leonardo Baptista cansado das guerras do amor: “I don’t need a lover, no, no / The wretched beast is tame”.
Para os funerais dos hiperbólicos
“If I Didn’t Have Your Love”. Toda a gente precisa de um amigo “larger than life”, daqueles que dão grandes abraços por tudo e por nada, dos que gostam tanto de dizer “és o meu melhor amigo” que o dizem a todos os amigos e até a alguns conhecidos, benfiquistas que julgavam que o Benfica ia acabar depois da saída de Jorge Jesus e agora celebram Rui Vitória como o maior génio táctico desde Aníbal, sportinguistas que julgavam que o Sporting ia ser campeão europeu com a chegada de Jorge Jesus e tiveram vontade de morrer após o primeiro empate, amigos que assinam petições contra o fecho de salas de cinema e depois se lançam pesadamente para o sofá para ver o que está a dar no Hollywood, amigos que são oito de manhã e oitenta ao fim do dia, que acham que uma borbulha no pé é um tumor maligno e que um tiro a meio da noite é o início da Terceira Guerra Mundial mas que, minutos depois, mais calmos, já estão convencidos de que vão durar para sempre e que o sorriso de um amigo compensa todas as tristezas do mundo.
Para os funerais dos cautelosos
“Traveling Light”. O amigo que vai de férias uma semana e leva a casa atrás, o amigo que numa noite de verão leva casaco porque “pode arrefecer”, o amigo que não sai de casa sem confirmar que os bicos do fogão estão fechados, o amigo que repete “cautelas e caldos de galinha…”, o amigo que consulta sites de meteorologia para ver o tempo dos próximos dez dias, o amigo que confirma a pressão dos pneus sempre que põe gasolina, o amigo “porque isto nunca se sabe”, o amigo que faz um seguro de vida e quer estar protegido contra raios, o amigo do “dia de amanhã”, o amigo que comprou um balão para fazer testes de alcoolemia depois dos jantares de grupo, o amigo que acredita que ainda há empregos para a vida toda e casamentos até que a morte os separe. Relaxa, companheiro. Temos de estar sempre prontos para partir e o excesso de bagagem só atrapalha. “I’m not alone, I’ve met a few / Traveling light like we used to do.”
Para os funerais dos que mudaram de ideias
“It Seemed the Better Way”. Pode ser, embora não seja obrigatório, aquele amigo que ao fim de anos de militância no Partido Comunista descobriu as virtudes do ioga e da meditação transcendental, ou o seguidor de uma seita evangélica que se cansou de pagar o dízimo e agora gasta tudo em raspadinhas, ou o fã de heavy metal que agora é mais fado, ou o leitor indefectível de James Joyce que agora prefere um bom thriller de Daniel Silva, ou do capitalista que resolver procurar conforto espiritual num mosteiro no Sul de França. A ideia é esta. “Sounded like the truth / Seemed the better way / Sounded like the truth / But it’s not the truth today”, canta o bardo e com razão. Quando passamos a juventude a dar a outra face chega uma altura em que só temos vontade de dar murros aos que nos ofendem. E se a noite é boa conselheira, a velhice também não é das piores. Perguntem a Leonard Cohen.
Para os funerais dos que se preocupam muito com a opinião dos outros
“Steer your Way”. Desvia-te de tudo o que te magoa.
Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance As Primeiras Coisas, vencedor do prémio José Saramago em 2015