A 26 de Janeiro de 1936, Stalin, acompanhado por três figuras gradas do aparelho soviético – Molotov, Zhdanov e Mikoyan – deslocou-se ao Teatro Bolshoi, em Moscovo, para assistir à ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, de Dmitri Shostakovich. O compositor foi convidado para a récita, mas não para o camarote de Stalin, como seria de esperar. Esta circunstância causou-lhe alguma apreensão, que terá aumentado ao aperceber-se de que Stalin e os seus camaradas tinham saído antes do último acto.
Dois dias depois, o Pravda publicava um artigo que mostrava que a apreensão do compositor era justificada: intitulava-se “Chinfrim em vez de música” e desferia um feroz ataque contra Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk. Foi o primeiro passo de uma campanha implacável contra Shostakovich e toda a música que não se conformava ao modelo do realismo socialista.
Aplausos para uma ópera “pornográfica”
Todavia, antes da récita de 1936, Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk (Liedi Makbiet mtsenskovo ouiezda) tivera uma carreira triunfal. Shostakovich iniciara a sua composição em 1930 e trabalhara na ópera intermitentemente, enquanto outras peças absorviam a sua atenção. O libreto, de Aleksandr Preis (que também colaborara na ópera anterior de Shostakovich, O nariz, a partir de Gogol), adapta o romance homónimo de 1865, de Nikolay Leskov.
[Cena de abertura de Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, com Nadine Secunde (Katerina) e direcção de Aleksandr Anissimov. Barcelona, 2002]
A intriga é sórdida e sulfurosa e não há uma personagem que inspire simpatia: Katarina Izmailova, analfabeta e inculta, é negligenciada pelo marido, Zinovy, e vigiada de perto pelo sogro, Boris, que, numa atitude dúplice, a assedia sexualmente. Aproveitando a ausência de Zinovy em viagem de negócios, Katerina apaixona-se por Sergey, um trabalhador, com fama de Don Juan, que foi recentemente contratado para a quinta e que lhe parece o substituto ideal para o marido que a ignora. O sogro surpreende o par adúltero, chicoteia brutalmente Sergey e, exausto e esfomeado, exige que Katerina lhe prepare uma refeição. Ela assim faz, mas adicionando veneno para ratos ao prato e Boris morre em terrível agonia. Katerina e Sergey retomam os seus enlevos amorosos e quando voltam a ser surpreendidos, desta feita pelo regressado Zinovy, dominam-no e estrangulam-no. Dias depois, um criado acabará por descobrir o cadáver em putrefacção de Zinovy e alerta a polícia, que interrompe a boda entre Katerina e Sergey. No último acto, Katerina e Sergey seguem numa coluna de condenados que se arrasta a caminho da Sibéria, mas enquanto ela continua apaixonada, o volúvel Sergey já redireccionou o seu interesse para a jovem Sonyeka. Após ter sido humilhada por Sergey em frente de guardas e prisioneiros, Katerina, num impulso de fúria, atira-se a Sonyeka e acabam ambas por precipitar-se num lago gelado.
[Excerto de Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, com Ausrine Stundyte (Katerina)]
https://www.youtube.com/watch?v=xd6qjdcScrw
O enredo é pródigo em torpeza, mesmo depois de Shostakovich ter introduzido alterações que fazem Katerina surgir a uma luz mais favorável do que no romance de Leskov: foi suprimido o assassinato do sobrinho de Zinovy às mãos de Katerina, Sergey assumiu responsabilidades acrescidas como instigador ou co-perpetrador dos crimes de Katerina e esta ganhou duas árias em que exprime remorso pelos crimes que cometeu. Também a belíssima música que Shostakovich destinou a Katerina contribui para fazer esta surgir menos como uma assassina do que como uma vítima das circunstâncias. O compositor apaixonara-se pela personagem de Katerina a ponto de reinterpretar a amarga sátira social de Leskov como uma história “sobre o amor […] ou sobre como poderia ter sido o amor se o mundo não estivesse cheio de vileza” (assim descreveria a ópera, anos mais tarde). Foi por esta razão que dedicou Lady Macbeth a Nina Vazar, por quem se apaixonara na altura em que começara a trabalhar na obra e com quem viria a casar-se em 1932.
No final desse ano a ópera ficou concluída e a equipa de O nariz – Samuil Samosud como maestro, Nikolay Smolich na encenação e Vladimir Dmitriev nos cenários e figurinos – lançou mãos à obra. Os ensaios começaram em Março de 1933 e Andrei Bubnov, Comissário do Povo para a Instrução, assistiu a um deles, sem ter levantado objecções. A estreia teve lugar a 22 de Janeiro de 1934, em Leningrado, e foi seguida por 83 récitas nesta cidade e 97 em Moscovo. No ano seguinte a ópera foi ouvida em Cleveland, Nova Iorque, Filadélfia, Estocolmo, Praga, Ljubljana, Buenos Aires, Bratislava, Londres e Zurique, com acolhimento genericamente favorável ou até entusiástico, e o próprio Pravda enaltecera o facto de uma ópera de um compositor soviético ter estreado na Metropolitan Opera.
[Uma produção de 2015 de Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk pela English National Opera (cantada em inglês)]
Também houve reacções adversas, como a de William Henderson, crítico do New York Sun, que classificou Lady Macbeth como uma “ópera de alcova” e Shostakovich como “o mais proeminente compositor de música pornográfica da história”. Henderson reprovou que, a fim de ilustrar os transportes amorosos entre os dois amantes, “o compositor tenha escrito música de um realismo e de um animalismo cuja brutalidade ultrapassa tudo o que já se ouviu. […] Conseguiu a proeza de escrever trechos que, ao retratar fielmente o que se passa no palco, se tornam obscenos […] Para coroar este feito, deu ao trombone um efeito jazzístico que expressa a saciedade [sexual] e esta frase ordinária, tornada dez vezes mais ofensiva pelo seu inequívoco propósito, regressa na última cena para nos dar a entender quão farto está o homem de aturar a amante. A cena é pouco mais do que uma versão insuflada das coisas imundas que se rabiscam nas paredes dos lavabos”.
“Chinfrim em vez de música”
Os comentários acerbos de Henderson pouca mossa terão produzido em Shostakovich. Já o artigo do Pravda de 28 de Janeiro de 1936, embora não diferisse por aí além de alguns dos pontos de vista de Henderson, deixou o compositor com os nervos em franja.
“O ouvinte fica, desde o primeiro momento, assarapantado por um caudal de sons deliberadamente dissonantes. Fragmentos de melodia, embriões de frases musicais surgem à superfície, submergem, emergem novamente e desaparecem no meio do bramido […] No palco, o canto é substituído pelo berreiro. Se, por acaso, o compositor tropeça numa melodia simples e compreensível, logo trata, como que aterrado por tal calamidade, de mergulhar numa selva de confusão musical, por vezes atingindo a cacofonia total […] A música grasna, grunhe e rosna, estrangula-se a si mesma de forma a representar as cenas eróticas da forma mais naturalista possível. O ‘amor’ é vilipendiado da forma mais ordinária ao longo de toda a ópera […] Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk tem disfrutado de grande sucesso junto do público burguês no estrangeiro […] A sua música neurasténica, irrequieta e ruidosa espicaça os gostos pervertidos do público burguês”.
A apreciação a Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk reprovava ainda Shostakovich por “[nunca ter considerado] a questão do que o público soviético pretende e espera da música”, apontava “o claro perigo desta tendência na música soviética”. Terminava com uma advertência ominosa: “É um jogo de esperteza habilidosa que pode acabar muito mal”. Shostakovich, que já tinha sido denunciado em 1929 por a sua música “[sair] da estrada principal da arte soviética”, fora demitido das suas funções docentes e vira o seu amigo Misha Kvadri, um jovem compositor a quem dedicara a sua Sinfonia n.º1, ser preso e fuzilado, não precisava de ameaças mais explícitas para perceber o risco que corria.
A autoria do artigo tem sido atribuída a David Zaslavski – um dos mais importantes jornalistas do Pravda, que funcionava como um Ministro da Cultura na sombra e, mais tarde, colaboraria na campanha de difamação de Dr. Jivago, de Pasternak – ou a Andrei Zhdanov – que assumiria plenos poderes na orientação da cultura russa a partir de 1946 – mas terá sido “encomendado” e aprovado por Stalin. Julian Barnes vai mais longe e sugere que poderá ter sido o próprio Stalin a escrevê-lo, baseando a suspeita na invulgar frequência de erros gramaticais (nenhum revisor ou editor se atrevia a corrigir um texto de Stalin).
A 6 de Fevereiro, surgiria novo artigo no Pravda, desta feita atacando o bailado O ribeiro cristalino (1935), apesar de Shostakovich ter tido o cuidado de o escrever da forma mais anódina possível, para evitar que tivesse o destino dos bailados A época de ouro (1930) e A cavilha (1931), que tinham sido proibidos pouco depois da estreia. As principais acusações a O ribeiro cristalino era estar alheado da realidade da vida rural soviética e ser demasiado simplista (um paradoxo, já que as suas outras composições tinham sido acusadas de serem demasiado exigentes para o público). A campanha contra Shostakovich culminou na interdição de Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk e de várias outras obras. Shostakovich arquivou metodicamente todos os artigos que o denegriam num álbum de recortes com o seu quê de masoquismo.
O ruído do tempo
Shostakovich aguarda de pé, junto ao elevador; junto a si tem uma pequena mala com roupa interior, cigarros e artigos de higiene pessoal. “Todas as noites seguia a mesma rotina: esvaziava os intestinos, beijava a filha que dormia, beijava a mulher acordada, tirava-lhe das mãos a pequena mala e fechava a porta da rua. Quase como se saísse para o turno da noite. E de certo modo saía. E depois ficava de pé à espera, a pensar no passado, a temer o futuro […] A mala encostada à perna estava ali para o tranquilizar […] fazia parecer que era ele quem controlava os acontecimentos, que não era vítima deles. Os homens que saíam de casa com uma mala na mão voltavam, por tradição. Os homens arrancados da cama em pijama quase nunca voltavam”. Começara por deitar-se vestido, mas depois optara pela espera no átrio, junto ao elevador: “Pela cidade, outros [homens] faziam o mesmo, para pouparem os que amavam à visão da sua detenção”.
É assim que Shostakovich entra em cena em O ruído do tempo, de Julian Barnes, agora publicado na Quetzal, com tradução de Helena Cardoso, um retrato intimista, melancólico e pungente da vida de Shostakovich sob o terror stalinista. A narrativa articula-se em torno do dia 28 de Janeiro de 1936 – “o dia mais memorável da sua vida” – quando, na estação de Arkhangelsk, onde fora apresentar o seu Concerto para piano n.º1, Shostakovich leu no Pravda o artigo “O chinfrim sonoro”. A comprovação de que a sua música desagradara profundamente a Stalin foi manifestando-se nos dias seguintes, num crescendo de intimidação e repressão. Shostakovich poderia já o ter suspeitado antes, mas foi em 1936 que ficou ciente de que na URSS só havia “dois géneros de compositores: os que estavam vivos e assustados e os que estavam mortos”.
O romance oferece uma penetrante reflexão sobre a natureza da tirania stalinista e da luta de um criador para encontrar um equilíbrio entre a preservação da vida a e a preservação da integridade artística, num jogo viciado em que a Arte está praticamente indefesa face ao Poder. Barnes mostra-nos Shostakovich perplexo com a súbita atenção que “o Poder passara a dar à música e a ele próprio. O Poder sempre estivera mais interessado na palavra que na nota: os escritores, e não os compositores, tinham sido proclamados engenheiros da alma humana. Os escritores eram condenados na primeira página do Pravda, os compositores na terceira. Separados por duas páginas. o que não era pouco: podia ser a diferença entre a vida e a morte”.
[O maestro letão Andris Nelsons analisa as relações entre Shostakovich e Stalin]
Antes de Lady Macbeth
Em criança, Shostakovich fora um entusiasta da Revolução de Outubro – as suas primeiras obras, compostas para o piano aos 9-10 anos, foram um Hino à liberdade (c. 1916) e uma Marcha Fúnebre pelas vítimas da revolução (c. 1917).
Não se filiara no Partido (fá-lo-ia só na década de 60 e a contragosto) e o apreço pela Revolução podia ter perdido ardor com a progressiva revelação na verdadeira natureza do regime soviético, mas, ainda assim, a sua Sinfonia n.º2, de 1927, composta aos 20 anos, para celebrar o 10.º aniversário da Revolução de Outubro, tem por título Dedicada a Outubro e termina com um coro exultante e rudimentar: “Outubro! O mensageiro da ansiada madrugada! Outubro! Trabalho, alegria e canções! Outubro! Felicidade nos campos e nas oficinas!”.
A Sinfonia n.º3 O 1.º de Maio, de 1930, também fecha com um coro triunfal sobre um pífio poema de Semyon Kirsanov, celebrando o Dia do Trabalhador. Ambas as sinfonias, assim como a precoce e fulgurante n.º1 (composta aos 19 anos, como prova de fim de curso do Conservatório de Leningrado), fervilham com irreverência e ideias inovadoras, como se Shostakovich entendesse que o derrube da velha ordem também deveria passar pela música.
Depois de Lady Macbeth
Quando, no dia 28 de Janeiro de 1936, Shostakovich leu o artigo no Pravda, estava a meio da Sinfonia n.º4. Completou-a em Maio mas teve a prudência de a guardar na gaveta – só estrearia em 1961. Em seu lugar, apresentou a Sinfonia n.º5, despachada em apenas três meses e que representa uma jogada temerária, atendendo às circunstâncias.
O compositor Vladimir Iokhelson teorizara que “o realismo socialista caracteriza-se, acima de tudo, por um profundo optimismo. Toda a experiência histórica do proletariado é optimista na sua essência. De modo que podemos afirmar que o optimismo é uma característica indispensável neste estilo”. Como poderia um pessimista como Shostakovich conformar-se ao estilo oficial do regime? No combate desigual entre Arte e Poder, Shostakovich refugiou-se na ironia – nas palavras de Barnes, “num mundo ideal, um jovem não deveria ser uma pessoa irónica. Nessa idade, a ironia impede o crescimento, atrofia a imaginação. É melhor começar a vida com um estado de espírito animado e sincero, acreditar nos outros, ser franco acerca de tudo e com toda a gente. E depois, quando compreendemos melhor as coisas e as pessoas, desenvolver o sentido da ironia. A progressão natural da vida humana é do optimismo ao pessimismo; e o sentido de ironia ajuda a moderar o pessimismo […] Mas este mundo não era ideal, e por isso a ironia crescia de maneiras súbitas e estranhas”. A irrupção da ironia faz da Sinfonia n.º5 um ponto de inflexão na música de Shostakovich.
[II andamento da Sinfonia n.º5 pela Filarmónica de Leningrado e Mariss Jansons]
Por um lado a n.º5 conforma-se a alguns preceitos do “realismo socialista”, nomeadamente no tom optimista e bombástico do final, adopta uma linguagem mais conservadora e surge acompanhada por um mea culpa do compositor: “Nas minhas obras anteriores nem tudo tem o mesmo valor. Admito que houve alguns falhanços. Na Sinfonia n.º5 esforcei-me por que o ouvinte soviético perceba o meu esforço em caminhar na direcção da inteligibilidade e da simplicidade”. Por outro lado, o ouvinte atento aperceber-se-á do carácter trocista da marcha no I andamento ou da valsinha no II. O III andamento, Largo, está repassado de uma profunda tristeza, tipicamente shostakovichiana e o tom triunfal do IV andamento soa a falso – Barnes compara-o a “pintar um sorriso de palhaço num cadáver” – pelo que, feitas as contas, não há na obra sinais de arrependimento ou recuo.
O que valeu a Shostakovich foi que o público da estreia, a 21 de Novembro de 1937, com a Filarmónica de Leningrado dirigida por Evgeny Mravinsky, brindou a sinfonia com mais de meia hora de aplausos e o Poder parece ter ficado satisfeito com a “retractação”. Um artigo anónimo viu na n.º5 “a resposta criativa de um artista soviético a críticas justas”, uma frase que acabaria por ser (erradamente) atribuída ao compositor, que a teria escrito na página de rosto. Shostakovich não dotara a sinfonia de programa, mas o Poder forneceu o seu: retrataria a conversão do compositor de adepto de música “ordinária, formalista e neurótica” num porta-estandarte do realismo socialista.
[início do IV andamento da Sinfonia n.º5 pela Filarmónica de Berlim e Yukata Sado, em 2011]
Shostakovich vs. Stalin
A Sinfonia n.º5 faz parte de um duplo CD que é o segundo da série Under Stalin’s shadow (Deutsche Grammophon), um projecto da Orquestra Sinfónica de Boston (BSO), sob a direcção do maestro letão Andris Nelsons (n. 1978, Riga), que está à frente da BSO desde a temporada de 2014-15 e assumirá a direcção da Gewandhaus Leipzig em 2017-18 (substituindo Riccardo Chailly).
Inclui ainda as Sinfonias n.º8 e n.º9 e uma suíte extraída da música de cena composta em 1932 para um encenação satírica de Hamlet e que, como a maior parte da música para teatro e filme de Shostakovich é uma obra menor.
O primeiro volume, saído em 2015, tem a magistral Sinfonia n.º10 (e a Passacaglia de Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk) e foi distinguido com um Grammy para melhor interpretação de música orquestral, confirmando os pergaminhos shostakovichianos da Sinfónica de Boston, que foi responsável pelas estreias norte-americanas de várias obras do compositor.
[Allegro da Sinfonia n.º10 pela Orquestra Sinfónica de Boston e Andris Nelsons, a 16 de Abril de 2015, no Carnegie Hall]
Tudo indica que além da série Under Stalin’s shadow, que incluirá as Sinfonias n.º5 a 10, que correspondem ao período 1936-1953, em que Shostakovich lutou contra a vigilância e as directivas de Stalin (e, aproveitando o quadricentenário da morte de Shakespeare, a música de cena para um Hamlet de1954 e um Rei Lear de 1940), Nelsons e a Sinfónica de Boston têm intenção de gravar as 15 sinfonias do compositor.
O conceito de Under Stalin’s shadow, não é novo, pois já presidira ao documentário The war symphonies: Shostakovich against Stalin (1997), do realizador Larry Weinstein, que se foca no período 1936-45 e que abrange as Sinfonias n.º4 a 9 (que, no filme, são interpretadas pela Filarmónica da Rádio Holandesa e pela Orquestra do Kirov/Mariinsky, sob direcção de Valery Gergiev).
As Sinfonias n.º8 e n.º9
As circunstâncias da composição e recepção das Sinfonias n.º8 e n.º9 (que não são mencionadas no livro de Julian Barnes) são mais um elucidativo episódio da luta entre Arte e Poder personificada por Shostakovich e Stalin.
A 5 de Março de 1942 estreara em Kuybishev a Sinfonia n.º7 Leningrado, parcialmente composta na cidade que lhe dá título, durante o implacável cerco imposto pelas forças nazis e no qual Shostakovich desempenhou funções de bombeiro.
A n.º7 seria tocada em Leningrado a 5 de Agosto, num concerto em condições periclitantes, mas com uma carga simbólica tremenda. A obra espalhou-se rapidamente pelos países aliados e trouxe celebridade global ao compositor – surgiu na capa da Time de 20 de Julho de 1942 com o uniforme de bombeiro – e converteu-se num símbolo da resistência indómita à barbárie nazi.
É, de longe, a mais célebre sinfonia de Shostakovich, e também a mais vulgar, apoiando-se num humor rudimentar e em efeitos fáceis. Volta a exibir um final ruidoso e optimista, mas, como o próprio Shostakovich explicaria, o tom exultante do último andamento da n.º7, tal como o do último andamento da n.º5, não é para ser levado a sério: “é forçado, produzido sob pressão […] é como se alguém te espancasse com um pau e dissesse ‘a tua função é regozijares-te, a tua função é regozijares-te’, e tu ergues-te, a tremer, e lá vais balbuciando ‘a minha função é regozijar-me, a minha função é regozijar-me’”.
Ao contrário do que a lenda forjada pela propaganda soviética sugere, Shostakovich passou pouco tempo na Leningrado sitiada: a 1 de Outubro de 1942 fora evacuado, com a família, para Kuybishev e seria aí que terminaria a n.º7. Entretanto, a guerra mantinha entretido o aparelho repressivo soviético com assuntos bem mais prementes do que o controlo da produção musical aos ditames do realismo socialista e Shostakovich aproveitou a desatenção para criar a mais tenebrosa das suas sinfonias: a n.º8, que estreou a 4 de Novembro de 1943. Anos mais tarde, descrevê-la-ia nestes termos: “Quis recriar o clima interior do ser humano esmagado pelo gigantesco martelo da guerra. Tentei relatar as suas angústias, os seus sofrimentos, a sua coragem e a sua alegria. Todos estes estados psíquicos ganharam um recorte mais nítido quando iluminados pelo braseiro da guerra”.
[Allegretto da Sinfonia n.º8, pela Filarmónica de Berlim, dirigida por Andris Nelsons, em 2010]
Até na estrutura a sinfonia desafia os cânones: reparte-se em cinco andamentos, o primeiro dos quais é um Adagio de 25-26 minutos. O III andamento, Allegro non troppo, é o que deixa impressão mais marcante: avança maquinalmente, num ostinato brutal, com regularidade implacável, indiferente aos “gritos” aflitivos e insistentes das madeiras. Uma trompete ergue-se, como símbolo da vulnerabilidade humana apanhada no gigantesco mecanismo triturador, e há um clímax final, que desagua na marcha fúnebre do Largo. Sim, será um eloquente retrato da guerra, mas não seria desajustado ver na n.º8 também a denúncia do regime stalinista e dos seus gulags, troikas e torturadores.
[III andamento, Allegro non troppo, Sinfonia n.º8, pela National Symphony Orchestra de Washington, dirigida por Mstislav Rostropovich]
O regime podia ter momentos de distracção, mas não dormia, e os cães de guarda do realismo socialista acabaram, inevitavelmente, por dar-se conta de que a Sinfonia n.º8, em vez de exalar um optimismo galvanizante destinado a erguer a moral do país num altura em que a onda nazi começava a recuar, era antes sombria, desesperada, grotesca, dilacerada. Vladimir Zakharov, um compositor de música coral simplória que fora co-fundador da Associação Russa de Músicos Proletários e obteria três Prémios Stalin, foi nomeado secretário do Sindicato dos Compositores em 1948 e, por instigação de Andrei Zhdanov, desferiu um ataque contra a Sinfonia n.º8: “Os nossos sinfonistas criaram uma cortina de ferro entre eles e o povo. Estes compositores são algo de estranho e incompreensível para o povo soviético. Há quem discuta se a Sinfonia n.º8 é boa ou má, mas essa discussão não faz sentido. Do ponto de vista do Povo, a Sinfonia n.º8 não é sequer uma obra musical; é uma composição que nada tem a ver com arte”.
1948 marcaria a segunda vaga de ataques contra Shostakovich, Prokofiev e Khachaturian, a pretexto da estreia da ópera A grande amizade, de Vano Muradeli, cujos “desvios” teriam colhido inspiração na malfadada Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk.
Entretanto, a 3 de Novembro de 1945, estreara a Sinfonia n.º9. Aguardava-se que fosse uma celebração pomposa e estridente do triunfo da URSS e Stalin na II Guerra Mundial. Em vez disso Shostakovich apresentou uma obra breve (dura 25-26 minutos, tantos quantos os do I andamento da n.º8), ligeira e fútil, com alusões ao classicismo vienense de Haydn. De acordo com o (não muito fiável) Testemunho recolhido por Solomon Volkov, Shostakovich terá comentado: “Queriam que eu compusesse uma fanfarra, uma ode, uma majestosa Nona Sinfonia […] Não creio que Stalin alguma vez tenha duvidado do seu génio e da sua grandeza. Mas quando a guerra contra Hitler terminou, ultrapassou os limites e pôs-se a inchar como a rã que queria ser do tamanho de um touro e esperava que eu consagrasse a sua apoteose”.
[Allegro da Sinfonia n.º9, pela Orquestra do Kirov e Valery Gergiev]
A frivolidade do I andamento é cuidadosamente estudada e, a todo o momento, resvala para o ridículo, para a zombaria e para o grotesco, enquanto a melancolia e amargura dos andamentos II e IV são genuínas e tipicamente shostakovichianas. Enquanto na Sinfonia n.º5 ainda havia margem para ambiguidades, a n.º9 foi um claro gesto de desafio que valeu a Shostakovich a inclusão na lista negra: a execução das suas obras foi interdita e foi privado dos seus cargos e fontes de rendimento. Viu-se reduzido a compor obras de circunstância e bandas sonoras para filmes – “música má para filmes muito maus”, como escreve Barnes. Só voltaria a escrever outra sinfonia após a morte de Stalin, em 1953.
[Andris Nelsons apresenta o projecto Under Stalin’s shadow]
Shostakovich por Nelsons
A leitura das Sinfonias n.º5, 8 e 9 pela Orquestra Sinfónica de Boston e Nelsons é extraordinariamente límpida e de frases cuidadosamente cinzeladas, o que torna mais evidente o carácter postiço da frivolidade e triunfalismo de alguns trechos. A clareza de articulação da Sinfónica de Boston é potenciada por uma captação sonora (realizada em 2015-16) de excepcional detalhe e definição (ainda mais admirável por se tratarem de registos ao vivo – nada o denuncia, de forma que é com surpresa que se ouvem os aplausos irromper no final). A abordagem analítica e detalhada de Nelsons nada tem de frio ou distante e a angústia, a inquietação, o sarcasmo e o desespero são perfeitamente audíveis, embora possa preferir-se uma abordagem mais visceral – o Allegro non troppo da n.º8 não atinge a inexorabilidade maníaca que Bernard Haitink e a Concertgebouw Orchestra lhe imprimem.
Esta conjugação de virtudes faz antever que a série Under Stalin’s shadow se torne num marco da interpretação das sinfonias de Shostakovich, mesmo que não faltem gravações de referência como as de Haitink (Decca) ou Rudolf Barshai (Brilliant Classics) – ambas disponíveis em edições económicas – ou as dos velhos mestres russos, como Kondrashin, Mravinsky ou Rozhdestvensky.
[entrevista com Nelsons e excertos de sinfonias de Shostakovich]
O Beethoven vermelho
Enquanto as obras essenciais de Shostakovich, pelas quais é hoje reconhecido como compositor de primeiro plano, eram rotuladas pelo todo-poderoso Zhdanov como “combinações caóticas”, “estranhas ao povo soviético e aos seus gostos artísticos”, as suas obras de circunstância – as bandas sonoras para filmes, a música de cena, as cantatas patrióticas – eram aplaudidas pelo regime e valeram-lhe numerosas distinções: a Ordem de Lenin (em 1946, 1956 e 1966), o Prémio Lenin (em 1958), vários Prémios Stalin (1941, 1942, 1946, 1950 e 1952), a Ordem da Bandeira Vermelha do Trabalho (1940) e os títulos de Artista do Povo da Federação Russa (1948) e de Artista do Povo da URSS (1954). Em 1966 seria condecorado como Herói do Trabalho Socialista.
A verdade é que o regime soviético não tinha outro compositor que pudesse apresentar ao mundo como “o Beethoven vermelho”: Stravinsky exilara-se quando da Revolução e mantivera a mais azeda e fria relação com o regime, que, por sua vez, via nele um traidor e a encarnação do formalismo burguês; Prokofiev também tinha sido repreendido pelos seus “desvios” e obrigado a retractar-se em público; Khachaturian era de estatura nitidamente inferior como compositor e, de qualquer modo, também fora condenado pelo “Decreto Zhdanov” de 1948 (as vítimas deste decreto seriam oficialmente reabilitadas em 1958); Nikolai Myaskovsky foi muito influente como professor de composição no Conservatório de Moscovo entre 1921 e 1950 (Khachaturian e Shchedrin foram seus alunos), produziu grande quantidade de sinfonias de escorreita factura e recebeu cinco Prémios Stalin, mas não só lhe faltava a centelha do génio como também ele foi acusado de “individualismo, decadência, pessimismo, formalismo e complexidade [excessiva]”.
Restava uma hoste de gente dócil mas medíocre, como “Tikhon Nikolayevich Khrennikov: um compositor com alma de funcionário. Para a música, Khrennikov tinha um ouvido médio mas, quando se tratava do poder, tinha ouvido absoluto” (no original está “perfect pitch”, cuja tradução é “ouvido absoluto”, não o “tom perfeito” que surge na edição portuguesa). “Desde meados dos anos 30 que [Khrennikov] andava a atacar artistas com mais talento e originalidade do que ele”, o que terá levado Stalin a nomeá-lo primeiro-secretário do Sindicato dos Compositores Soviéticos, em 1948, passando a “chefiar o assalto aos formalistas e cosmopolitas desenraizados”. Conseguiu a proeza de manter-se no cargo até ao colapso da URSS em 1991, o que só pode explicar-se por possuir um ouvido apuradíssimo para captar as mais subtis nuances da Voz do Dono.
A vida depois da morte da bête noire
Prokofiev faleceu no mesmo dia que Stalin, a 5 de Março de 1953, pelo que nunca saberemos quanto do relativo conservadorismo da sua produção tardia representa uma inflexão espontânea da sua estética e quanto decorre da submissão aos ditames do realismo socialista. Mas Shostakovich teve oportunidade de provar, durante o relativo degelo da era pós-Stalin, que a sua capacidade criativa estava intacta. Disso dão prova os dois concertos para violoncelo, compostos em 1959 (o n.º1 op. 107) e 1966 (o n.º2 op. 126), e que estão entre as mais importantes obras compostas para o instrumento, no século XX ou em qualquer outra época.
Estão ambos num CD Erato em que o violoncelista Gautier Capuçon é acompanhado pela Orquestra do Mariinsky (o antigo Kirov), de S. Petersburgo, sob a direcção de Valery Gergiev, seu maestro titular há quase três décadas e um dos maiores especialistas no repertório russo/soviético.
[início do I andamento do Concerto para violoncelo n.º1 por Gautier Capuçon com a Orquestra do Mariinsky e Valery Gergiev]
Ambos os concertos foram dedicados ao violoncelista Mstislav Rostropovich e estreados pelo dedicatário. A amizade com Rostropovich iniciara-se quando este fora seu aluno de orquestração no Conservatório de Moscovo e duraria até à morte de Shostakovich. O violoncelista deu conselhos ao compositor durante a gestação dos concertos, mas não detectou a presença no IV andamento do Concerto n.º1 de citações de “Suliko”, uma canção georgiana que estava entre as favoritas de Stalin e a que, nas mãos de Shostakovich, vê a sua natureza passar de sentimental a demente – o tirano podia estar morto, mas o compositor ainda tinha contas a ajustar com ele.
[IV andamento, Allegro con motto, do Concerto para violoncelo n.º1, por Mstislav Rostropovich e a Orquestra de Filadélfia, com direcção de Eugene Ormandy, num registo de 8 de Novembro de 1959, naquela que, quase 60 anos depois, continua a ser uma das versões favoritas da crítica]
A maior liberdade criativa disfrutada por Shostakovich nestes anos teve por contraponto um declínio da saúde (que culminou numa crise cardíaca em 1966), como se a angústia em que vivera durante décadas tivessem acelerado o seu envelhecimento. Tal não o impediu de compor um magistral Concerto para violoncelo n.º2, mais sombrio e menos esfuziantemente virtuosístico do que o n.º1, que tem a particularidade de dar papel de relevo à percussão. O III andamento, por onde desfilam os mais variados e originais ambientes, é um dos pontos culminantes de toda a obra de Shostakovich.
Ambos os concertos foram gravados ao vivo, em 2013 e 2014, mas, tal como nas sinfonias por Nelsons, nada o deixa adivinhar, tão límpido e livre de ruídos extra-musicais é o resultado. A orquestra soa, todavia, muito recuada em relação ao violoncelo, o que retira força às suas intervenções, para o que também contribui uma direcção que privilegia a elegância e a contenção. A aspereza e acidez dos concertos resultam esbatidas, o que aliado aos tempos tendencialmente lentos, faz com que a interpretação de Capuçon e Gergiev, embora de muito alto nível, não seja das mais recomendáveis para quem aprecie um Shostakovich mais adstringente e contrastado.
[Final do III andamento, Allegretto, do Concerto para violoncelo n.º2, por Mstislav Rostropovich e a Orquestra Sinfónica Académica Estatal da URSS, com direcção de Evgeny Svetlanov]
Finale
“Lenin achava a música deprimente. Stalin pensava que entendia e apreciava a música. Khrushchev desprezava a música. O que é pior para um compositor?” – a pergunta é colocada na mente de Shostakovich por Barnes.
“O que podíamos construir contra o ruído do tempo? Só essa música que está dentro de nós – a música do nosso ser – que é transformada por alguns em música real. Que, ao longo das décadas, se for suficientemente forte e verdadeira e pura para afogar o ruído do tempo, se transforma no murmúrio da História”. A música contida nestes discos de Nelsons e Capuçon/Gergiev faz-se ouvir claramente acima do ruído do tempo e mostra que não foi vã a luta de Shostakovich para preservar a sua integridade artística.