A inflação e a forma como este Orçamento do Estado (OE) responde (ou não) ao impacto da guerra na Ucrânia e à subida dos preços dominaram a primeira audição da proposta orçamental, na qual Fernando Medina admitiu que haverá perda de poder de compra para algumas famílias, apesar das medidas adotadas para o contrariar.
O ministro das Finanças repetiu várias vezes a ideia de que os funcionários do Estado vão ter mais do que os 0,9% de atualização salarial prevista para 2022 (e que o Governo se recusa a rever num cenário de mais inflação), invocando o descongelamento de carreiras e as progressões que fazem subir a massa salarial 2,5% com benefícios para mais de 85% dos funcionários do Estado. E destacou as medidas para atenuar o impacto na inflação — sobretudo nos combustíveis — que também beneficiam os trabalhadores do Estado. Mas admitiu que isso não é suficiente para travar a perda de poder de compra para alguns.
“Não posso. Seria errado e não seria verdadeiro dizer que as pessoas não têm diminuição do poder de compra”. Essa avaliação depende muito do cabaz de produtos que compram, daí que o Governo tenha muita atenção aos apoios diretos aos rendimentos mais vulneráveis. O valor dessa perda depende muito do cabaz de consumo de cada família, notou o ministro.
“Não é possível definir um valor em concreto. O que posso dizer é que o OE tem respostas claras e adequadas para fazer face aos mais vulneráveis”, afirmou em resposta a André Ventura do Chega.
Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, insistiu na pergunta, depois de enunciar que este é o mesmo Orçamento de outubro (que, na visão da deputada, já não era bom) com 4% de inflação em cima. Os salários sobem 0,9% e a massa salarial sobe 3,6% (com novas contratações), mas a receita cresce 7%. Muito mais do que a parcela retirada para ajudar as famílias.
“Qual é a perda real da massa salarial, e não me responda com progressões de carreira [argumento repetido várias vezes pelo ministro das Finanças]. É uma pergunta direta que exige resposta. Qual é a perda?”, insistiu a deputada bloquista.
Fernando Medina clarificou que o aumento da massa salarial é de 2,5%, uma variação superior aos 0,9% referidos pela deputada, mas respondeu sublinhando que existe uma “diferença na orientação política muito clara”. E perguntou a Mariana Mortágua se quer desistir de mitigar os efeitos da inflação e ainda se quer um aumento dos salários mais altos em alternativa à redução do imposto petrolífero. “Devemos desistir desta medida? Não tem impacto nos trabalhadores do Estado?”
Ou seja, na argumentação do ministro das Finanças as duas opções — atualizar salários acima dos 0,9% e mitigar impacto da subida dos preços — não são conciliáveis. “Não foi essa a nossa opção”.
Mortágua qualificou como um “exercício feio” alegar que para aumentar mais os salários é preciso deixar cair outras medidas porque “coloca os funcionários públicos contra todos os outros trabalhadores quando todos têm direito a ser aumentados pela inflação”.
A deputada do Bloco de Esquerda lembra que algumas das medidas referidas pelo ministro, como o desdobramento de escalões do IRS ou o aumento extraordinário das pensões, “já estavam no Orçamento” chumbado em outubro, pelo que “não foram criadas para reduzir o impacto da inflação a 4%”.
É um bom truque de retórica, mas que não resolve o problema de fundo: os funcionários da administração pública são aumentados a 0,9%, o aumento dos preços é 4% e a pergunta que faço é qual a perda do poder de compra real dos salários da administração pública?”
Medina respondeu que há outras medidas não referidas pela deputada criadas para mitigar a inflação. “Se achar que são irrelevantes a senhora deputada diga e faça proposta alternativa”, desafiou. O pacote de resposta à guerra tem um impacto orçamental de 1,3 mil milhões de euros que não estava na proposta de outubro e inclui medidas como a suspensão do aumento da taxa de carbono ou a redução do ISP (imposto sobre os produtos petrolíferos) equivalente a descida do IVA. “É irrelevante para os trabalhadores portugueses e para os trabalhadores da administração pública?”
Também Bruno Dias, do PCP, foi à carga com a inflação, defendendo que a proposta de OE já apresentada (e chumbada) em outubro não respondia aos problemas colocados na altura, como o aumento dos preços que já se colocava. “Talvez agora as pessoas percebam porque é que era tão importante para o PCP o aumento dos salários”, disse, assumindo a palavra “invasão” para classificar a causa da guerra na Ucrânia. “Nem a guerra na Ucrânia começou a 24 de fevereiro, já durava há oito anos, nem os problemas de que estamos a falar começaram com a invasão da Ucrânia em fevereiro”, frisou.
Deputado do PCP Bruno Dias refere-se à guerra na Ucrânia como “invasão”
O PSD, pela voz de Joaquim Miranda Sarmento, chegou a colocar em causa a estimativa do Governo para a inflação e 2022 — 3,7% para o índice de preços no consumidor e 4% no índice harmonizado de preços no consumidor (o que é usado para comparações internacionais). “Imaginemos que entre 1 de abril e 31 de dezembro os preços não aumentavam mais. Ainda assim a taxa de inflação seria 4,3% e não 3,7%”, aponta.
Medina respondeu-lhe: as estimativas do Governo seguem as instituições internacionais, e no que toca à inflação também o FMI aponta para os 4%. Além disso, voltou a frisar que as mesmas instituições também olham para a inflação como um “fenómeno marcadamente circunscrito na fonte e limitado na sua duração”.
Medina recusa “fetiche” da redução do défice
A dívida pública portuguesa e a redução do défice foram várias vezes mencionados pelos deputados — ora para criticar o excesso de dívida, ora para apontar as revisões em baixa do défice, uma meta que alguns partidos consideram demasiado ambiciosa numa altura em que famílias e empresas pedem mais ajudas. Mas Medina recusou que haja algum “fetiche” com o défice. Já sobre a dívida pública, reconheceu que é o “calcanhar de Aquiles” de Portugal.
O ministro das Finanças defendeu que o Governo recusa perder este ciclo de crescimento para aproveitar e baixar os dois indicadores. “A redução do défice não é nenhum fetiche, nem botão na lapela. É trabalhar com uma restrição que o PCP não reconhece”, mas que existiria mesmo sem estarmos na moeda única, defendeu, em resposta ao deputado comunista Bruno Dias.
Na intervenção final, o ministro deixou muitos recados sobretudos para a esquerda. “Há os que acham que deveríamos continuar como se nada estivesse a acontecer”, em particular no que toca a subida das taxas de juro e regras orçamentais.
Num país que não tem moeda própria negligenciar os custos da dívida pública seria um erro de enormes proporções que teria impacto muito significativo em empresas e famílias e que levaria os que hoje ignoram esse impacto a ser os primeiros a pedir ao Estado que tomasse medidas. E num momento em que a condições para agir seriam menores”, disse.
Fernando Medina voltou a rejeitar as críticas de que este Orçamento represente um regresso da austeridade. Aliás, a Duarte Pacheco, do PSD, chegou a atirar: “Vejo mal a crítica de que este é um Orçamento de alguma pinga de austeridade quando vejo nas propostas do PSD um certo saudosismo dessa austeridade de má memória”.
Mas Ventura voltou ao tema, repescando uma expressão que Medina usou durante a apresentação do orçamento do Estado — quando disse que “em nenhum dicionário do mundo” este Orçamento é considerado como “austeridade”. O líder do Chega leu o que disse ser uma definição de um “dicionário internacional” sobre austeridade. “Até nos dicionários internacionais a palavra austeridade surge associada a Portugal, Grécia e Itália”, apontou.
Num contexto de guerra na Ucrânia, Medina foi ainda questionado sobre a redução de 800 mil euros no orçamento da Defesa. O ministro justificou com o facto de o Governo ter menos um membro para o setor. “É um valor que não tem materialidade”, refere, e lembra que o fundamental está na lei de programação militar que terá um ciclo de aumento importante ao longo dos próximos anos. Medina garantiu ainda cobertura do Estado para as missões portuguesas no quadro da NATO.