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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

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A palavra de Sérgio no Coliseu

A política e a revolução, as memórias e o futuro, todas as gerações. Na primeira noite do mestre Godinho no Coliseu dos Recreios houve toda a liberdade cantada. Esta quinta-feira, há mais.

Comecemos pelas ruas, pelos cafés, pelos tascos de hora de almoço. Da pequena esplanada da pastelaria improvisada na esquina da rua, ao tasco que tem os clientes assíduos à hora de almoço, as pessoas falam de política, da situação política em que o país se encontra. Quem é de culpar pela crise política e pelas eleições antecipadas, se haverá capacidade de governo estável sem maioria absoluta, arremessa-se o jugo da corrupção sem se considerar todas as variáveis em jogo. Mas há, acima de tudo, algo de verdadeiramente importante nisto tudo: as pessoas falam, as pessoas querem saber, as pessoas participam.

A leitura do primeiro de dois concertos de Sérgio Godinho em Lisboa, de regresso ao Coliseu dos Recreios, só pode fazer-se à luz deste ambiente nacional de rescaldo das eleições legistalivas. Sérgio Godinho tem 78 anos e mais de 50 de carreira, os tais que a democracia celebra este ano, que são também o número de deputados agora eleitos pela extrema-direita – a que diz mudar o livro sagrado da democracia chamado Constituição caso chegue ao poder, implementando assim uma IV República.

Falta meia hora para o concerto e, na praça do Martim Moniz, contígua à do Rossio, que dá acesso às Portas de Santo Antão do Coliseu, um homem passa apressado sem parecer ter para onde ir, vestido de capa de Super Homem, máscara de Batman e orelhas de burro. A noite e a cidade andam assim, desenfreadas, pressagiosas, com uma aura de loucura.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Dentro da sala de espectáculos do Coliseu, deparamo-nos com cinco grandes Sérgios, uma fotografia por cada década de carreira, dependurados por tiras no fundo do palco. À frente, em cima, em letras garrafais, feitas de néon vermelho, encontra-se a palavra “Sérgio”. Simplesmente “Sérgio”. É o Sérgio nome de autor a dar-nos as boas-vindas antes da entrada em palco do Sérgio homem. Os lugares são sentados, plateia incluída, e a sala encontra-se praticamente lotada.

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[Já saiu o quarto episódio de “Operação Papagaio” , o novo podcast plus do Observador com o plano mais louco para derrubar Salazar e que esteve escondido nos arquivos da PIDE 64 anos. Pode ouvir o primeiro episódio aqui, o segundo episódio aqui e o terceiro episódio aqui]

São 21h41, as luzes apagam-se e entram os músicos, logo seguidos por Sérgio Godinho – calças pretas e camisa preta, de fora. Este será um concerto de mote político, um concerto cujo alinhamento se definirá pela linha mais ou menos visível da reivindicação, como o foram as canções de Sérgio de antes de 1974. A idade traz sageza e, com ela, leveza. O sentido de humor está inerente ao primeiro tema escolhido, O Rei do Zum-Zum, do álbum de 2006 Ligação Directa:

“Já que estou quase a ser famoso
Desta fama não me livro
Não quero só dar nas vistas
Nas capas coloridas das revistas”

Mas esta letra pode também referir-se à necessidade de ribalta de certas figuras políticas, quando canta:

“Eu quero entrar em grande
Na grande cidade
Não me vou deixar morrer
Antes da idade
Uma coisa é aparecer outra é celebridade”

Há muitos septuagenários e sexagenários, também quem vai passando pelos cinquentas e quarentas, que terão primeiro ouvido muito Sérgio Godinho por via dos pais ou tios. E há jovens. A discografia em causa é daquelas que se herda. Há letras que são hinos, qualquer idade os canta.

A crítica social e a sátira serão apontamentos sempre presentes ao longo do espetáculo, a partir de um palco tornado casa, que fez de toda a audiência os seus convidados na sala de estar. Há até uma mesa de apoio no palanque, munida de um candeeiro de abat-jour vermelho. Ao lado, há uma cadeira. Acompanhado por seis músicos, teclas, percussão, bateria, guitarras e baixo, Sérgio Godinho prosta-se de pé, microfone na mão, ao centro da boca de palco. Não bate com o pé, não meneia a anca, apenas lhe sai a voz, aveludada pelo tempo, mas sempre dotada de corpo, de imponência. Não há, sugere-nos a linguagem corporal deste mago da cantautoria portuguesa, quaisquer artifícios a distrair-nos da sua pessoa. O foco, a responsabilidade, está apontado – de forma consciente – a si.

À segunda canção, as luzes do palco ficam todas vermelhas – sempre o vermelho, vermelho de cravo – e Sérgio canta:

“Não protestes
não desfiles
não contestes
não refiles
já joguei ao boxe, já toquei bateria
p’ra ver se me livrava desta energia
nada feito, que arrelia”

Trata-se da letra da canção Já Joguei ao Boxe, Já Toquei Bateria, que pertence a Canto da Boca, álbum de 1981, disco que conheceu um grande êxito comercial – e do qual vieram a sair clássicos como Com um Brilhozinho nos Olhos. A contestação dos versos transmutam-se em euforia, naquela onda energizante maior que o corpo, incontida, do querer fazer, do querer participar. E é nesta altura que Sérgio cumprimenta o público, referindo que está ali para cantar cantigas mais antigas, cantigas mais novas, mas, também, para festejar os 50 anos do 25 de Abril. E recebe logo o primeiro grande aplauso da noite.

O público. Que público terá vindo ouvir Sérgio, depois destas eleições legislativas que estão a mudar o rumo do país? Em que os perigos se encontram à espreita, porque dissidentes dos direitos e liberdades por que Sérgio e muitos outros tanto lutaram há mais de 50 anos? Há muitos septuagenários e sexagenários, mas está também presente uma boa malha de quem vai passando pelos cinquentas e quarentas, que não viveram Abril, mas que terão primeiro ouvido muito Sérgio Godinho por via dos pais ou tios. E há jovens. A discografia em causa é daquelas que se herda. Há letras que são hinos, qualquer idade os canta.

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Segue-se Foi aos 25 Dias de Abril, um tema gravado para o público infantil, aquando das celebrações dos 25 anos da Revolução dos Cravos, e Foi a Trabalhar (do disco De Pequenino se Torce o Destino, de 1976), uma ode à valorização dos trabalhadores, acompanhado de imagens de vídeo a preto e branco sobre a força laboral da classe operária:

“Levanto-me, acordo cedo
Vou para um trabalho
Que para mim não tem segredos
A minha vida não é para atirar ao lixo”

“Só merece o meu desprezo quem abusa
Da minha força e da minha competência”

Porque liberdade é ter opção, é poder dizer não. É ter, para isso, condições de vida condignas: ter um teto, não ter fome. É Sérgio quem o diz, é Sérgio quem o canta, somos nós que aplaudimos.

“Aprende a nadar, companheiro
Aprende a nadar, companheiro
Que a maré se vai levantar
Que a maré se vai levantar
Que a liberdade está a passar por aqui”

Este é outro hino que toda a gente canta: Maré Alta, do disco Sobreviventes, de ’72. Sérgio diz tratar-se talvez da letra mais curta que já escreveu. E perscruta a audiência, sem qualquer pudor. “De dizer que a liberdade é um território sagrado/ O chão que pisamos é livre.” Ouve-se um novo — e extenso — aplauso.

“Vou sentar-me um bocadinho para vocês não ficarem cansados”, diz Sérgio com humor. E dirige-se à cadeira, de onde conta a história da letra da canção Mariana Pais, 21 Anos, do disco de 2018 intitulado Nação Valente, que tem no leque de compositores um dos seus mais antigos colaboradores: José Mário Branco. “Os meus sonhos mordem pão de trigo/ E mordem pão-de-ló.”

Antes de cantar um medley feito de títulos de canções de Sérgio, A Garota Não — voz grande, encorpada e igualmente doce — conta que eles funcionam como uma espécie de auscultação médica dos nossos pulmões.

A canção que se segue, explica Sérgio, é “uma espécie de vinheta da prisão”, ele que passou também pela cadeia por motivos políticos. Tem o cuidado de referir que houve gente que “esteve lá dentro” bem mais tempo do que ele. Na Prisão faz uso da sátira para denunciar o saque que se faz à identidade daqueles que ousam dissidir:

“Hoje é dia de visita
Rapariga
Pinta a boca e ata a fita
Hoje é dia de visita
Meu rapaz
Põe a camisa bonita”

Nova música, nova denúncia às condições miseráveis de trabalho que existem um pouco por todo o mundo. Domingo no Mundo (do álbum de nome homónimo, de 1997) Sérgio dedica-a a todas as crianças vítimas de trabalho infantil.

“Acorda rapaz o dia rompe
Através do sono escuro
Abriga o teu corpo de onze anos
Tens que ir trabalhar no duro”

O tom, irónico, é de festa, de chamada à colação. Haja alegria no trabalho.

Sérgio não esqueceu os refugiados e os migrantes e dedicou-lhes Dancemos o Mundo, do álbum O Irmão do Meio, de 2003. Ao som desta música, um casal jovem, ambos de óculos, ele alto e ela baixa, levantam-se da plateia e começam a dançar, muito agarrados.

Para cantar, em jeito de medley, três “micropoemas de Alexandre O’Neill”, poeta de que gosta muito, Sérgio reúne a família à sua roda. Os músicos trazem pequenos instrumentos, móveis, e colocam-se em meio círculo à volta do patriarca, sentado, ao centro.

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Ao Conjunto António Mafra, Sérgio vai buscar o tema Domingo, “Segunda, Terça, Quarta, Quinta, Sexta, Sábado!/ Domingo! Vai a malta passear./ Sete dias na semana, e um só p’ra descansar”. E entram em cena os portuenses Canto Nono, compatriotas de Sérgio, “viv’ó Porto, carago”, diz. Cantam Etelvina, com os convidados a servirem de coro, em vários tons, elas mais soprano, eles mais grave. Sérgio ainda canta outro clássico, Que Força É Essa (do primeiro álbum, Os Sobreviventes, de 1971), em que o público acompanha a letra de cor; O Charlatão, uma canção do primeiro álbum de José Mário Branco, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, igualmente de 1971; e O Coro das Velhas, “cá se vai andando co’a cabeça entre as orelhas” (editado pela primeira vez em 1984, no disco Salão de Festas). Saem os Coro Nono.

Um dos grandes momentos da noite é o da entrada em cena de outra convidada, A Garota Não. A imponência daquela voz, grande, encorpada, e igualmente doce, a cantar Balada da Rita, “Disseram-me um dia, Rita. Põe-te em guarda/ Aviso-te, a vida é dura. Põe-te em guarda” (Kilas, o Mau da Fita, 1980), silenciou a sala. Esta Garota tinha dito que era a sua primeira vez a pisar aquele palco, para, antes de cantar um medley feito de títulos de canções de Sérgio, contar que eles funcionam como uma espécie de auscultação médica dos nossos pulmões. Sérgio retribui e canta, de pauta à frente, o tema Dilúvio, do disco 2 de Abril, de 2022, o tal que revelou a graça das canções de A Garota Não.

Estamos perto de duas horas de concerto, “estamos a entrar na reta final”, e há tempo para cantar os incontornáveis: “É que hoje fiz um amigo/ E coisa mais preciosa no mundo não há” (Com um Brilhozinho nos Olhos, também de Canto da Boca). E dois encores, planeados, que o senhor Sérgio – de copo de vinho tinto empunhado e a brindar à audiência – tem 78 anos e no dia seguinte dá novo concerto. Mas é no primeiro encore que veio o segundo grande momento da noite, o arrepio de ouvi-lo cantar Os Vampiros, “Eles comem tudo eles comem tudo/ Eles comem tudo e não deixam nada”, da autoria de – e em homenagem a – José Afonso. “Viva o Zeca! Viva!”, grita-se em uníssono. O fim, um apoteótico controlado, passe o paradoxo, foi um grito bem alto de Liberdade (À Queima Roupa, 1974): “A paz, o pão, habitação/ Saúde, educação/ Só há liberdade a sério quando houver/ Liberdade de mudar e decidir”, tudo temas sensíveis, num final esperado mas, ainda assim, surpreendente. E termina-se, com a lembrança bem clara, de que cada momento presente está sempre a tempo de ser o primeiro dia do resto da nossa vida. Palavra de Sérgio.

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