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Lisboa é, em si, um privilégio. Trabalhar com vista para o Tejo e a uma curta distância, percorrível a pé, de uma das suas margens uma oportunidade à qual não se resiste. Para Valentim Quaresma, autor com um pé no mundo das artes plásticas, outro do design de moda, mais do que irrecusável, a proposta foi irónica. “Daqui só saio para um atelier com vista para o rio”, vaticinou há meses, quando a residência de dois anos no Palácio da Ajuda se aproximava do fim. Agora, está “viciado” na nova casa e isso nota-se.
Valentim é um dos cinco artistas que atualmente ocupam os dois espaços cedidos pela VIC Properties no empreendimento Prata Riverside Village, na zona do Braço de Prata, em Lisboa. O projeto tem o nome de Lugar da Arte. A ponte entre autores à procura de um teto para trabalhar e a gestora deste condomínio de luxo projetado pelo italiano Renzo Piano, vencedor de um Pritzker em 1998, foi o P’la Arte, movimento cívico criado em plena pandemia. Mais do que diagnosticar necessidades no meio artístico, sobejamente afetado pelas consequências económicas da Covid-19, a plataforma pôs um plano em marcha e o seu principal motor foi, desde o primeiro dia, Carlos Moura-Carvalho.
“O vírus mexeu com tudo e vi muita gente na área das artes sem refeições, sem espaço para trabalhar, sem nada. Talvez os artistas sejam mais sensíveis ou não estejam tão preparados para enfrentar as adversidades, então muitos entraram em parafuso”, explica o jurista, atualmente ao serviço do Ministério da Cultura, ao Observador. Os movimentos cívicos surgiram nas redes sociais ainda durante o confinamento e Carlos, primeiro no SOS Arte e depois no P’la Arte, tomou a dianteira.
“É muito importante aproximar a arte das empresas e mostrar que os artistas cumprem horários, cumprem contratos. Tem sido essa a nossa ajuda: contribuir para a credibilização. É difícil porque continuam a ser cometidos muitos erros de ambas as partes e, por isso, existem desconfianças mútuas”, explica.
O modelo aqui é simples: dos dois espaços comerciais, localizados no piso térreo de um dos prédios da urbanização, foram cedidos, a custo zero, pela VIC Properties ao abrigo de um protocolo com a plataforma P’la Arte. Este tem a duração de humano, poderá ser renovado, da mesma forma que os ocupantes se comprometem a desocupar o espaço, caso a empresa gestora venha a precisar de lhe dar outro fim. Ganham os artistas, que na maioria viram a tarefa de procurar um novo local para trabalhar dificultada pela atual crise, e ganha o bairro que vê a arte aproximar-se dos seus moradores, tornando esta nova (e ainda árida) da cidade um ponto de interesse cultural.
Ana Fonseca: “O artista não é nenhum bicho”
Por muito exíguo que fosse, Ana Fonseca sempre teve um espaço para trabalhar. Formada pela Chelsea College of Arts Foundation e pela Middlesex University, ambas instituições londrinas, é a primeira a reconhecer que, em Portugal, a relação entre artistas e entidades privadas é bem menos profícua. “Há resistência dos dois lados. Por parte das empresas porque o artista é aquele ser inusitado. O objeto de arte é fascinante, mas tratar com o artista é uma incógnita. Do lado dos artistas é porque muitos já passaram por situação em que, de uma maneira ou de outra, foram explorados”, assinala a artista plástica.
Aqui, no atelier que agora divide com mais três pessoas, sente o olhar exterior como nunca antes sentiu. Voltada para o rio, a fachada envidraçada do edifício permite que a luz natural seja uma constante dentro do espaço mas também deixa os artistas mais expostos. “As pessoas entram e perguntam”, conta, lado a lado com aquele que é o seu principal projeto atualmente — Exótico Europeu, uma inversão do olhar do velho continente sobre o resto do mundo. “É uma heroína para salvar a Europa. Inspirada na Joana d’Arc, mas tresloucada como o D. Quixote”, continua, enquanto segura numa máscara de esgrima, já adaptada para representar a guerreira.
Abrir o atelier ao público é o próximo passo — pequenas visitas organizadas para cimentar a boa vizinhança. “O artista não é nenhum bicho e é possível ver aqui uma oportunidade de negócio. Não admira que tenha sido um empreendimento de luxo a acolher um projeto de arte, o público-alvo gosta de parte. Além disso, de fora, as pessoas conseguem ver como é que estes artistas trabalham — que não trabalham só às três da manhã, que às nove horas também estão cá — e ver as peças a nascer. Isso é importante”, remata Ana Fonseca, em conversa com o Observador.
O que a trouxe até aqui foi uma sucessão de eventos mais ou menos clássica. Ana dividia um atelier na zona do Beato com mais duas pessoas — uma saiu meses antes da pandemia chegar a Portugal, a outra abandonou o barco às primeiras consequências do surto. “O senhorio não foi nada simpático, quis seguir o contrato à risca e eu fiquei a pagar a renda sozinha, aliás, ainda estou a pagar, falta-me um mês”, recorda. Com cerca de um quinto do rendimento (o trabalho no serviço educativo também caiu a pique), não lhe restou alternativa senão deixar o espaço e procurar uma solução.
No Braço de Prata, um pouco mais a Oriente, acabou por reencontrar um velho amigo. “Dividi atelier com o Valentim entre 2007 e 2009 e foi extraordinário. Dividir o atelier com um cúmplice faz toda a diferença, até a lavar os vidros das janelas nos divertimos”, partilha. O espaço, outrora vazio, está agora repleto de vida a criatividade, de projetos em curso, materiais e texturas tão diversas como metais, tecidos, papel de cenário, tintas e arames. Isso e metros quadrados que abrem espaço para uma espécie de montra, onde Ana e Valentim expõem algumas peças, e para ideias que no futuro poderão trazer performance ao luxuoso bairro do Braço de Prata.
“Não se pode estar a depender do Estado”. O discurso de Ana, ela própria fundadora de um dos movimentos cívicos criados para apoiarem o setor, o SOS Arte, não é de desresponsabilização, mas o constatar de uma série de problemas crónicos que afetam as artes plásticas e que só pioraram com a atual crise. “As soluções podem ser encontradas a vários nível e claro o Governo tem várias nas mãos: a lei do mecenato, o estatuto do artista plástico, a precariedade dos recibos verdes, falsos e não falsos, a segurança social. Agora, o que é que está ao nosso alcance e pode fazer diferença na vida de um artista? Arranjar-lhe um espaço”.
Carlos Moura-Carvalho: “Os artistas plásticos são mais frágeis”
“Os artistas plásticos são os mais frágeis”, aponta Carlos Moura-Carvalho. Sem a representação de um sindicato ou de uma associação e com um processo criativo muitas vezes solitário, foram os artistas plásticos que atraíram a atenção de Carlos e da mulher, Susana Prudêncio, que pela primeira vez se deixou envolver num movimento cívico. A P’la Arte ganhou forma no Instagram no início de julho. Um passo importante que permitiu a divulgação do inquérito através do qual a plataforma sinaliza os artistas que precisam de um espaço de trabalho.
Atualmente, são 17, depois de uma segunda ronda de questionários, concentrada na Grande Lisboa. Os primeiros começaram a chegar ao Braço de Prata há cerca de um mês e meio. São cinco e ainda há lugar para mais um, que dividirá o atelier mais pequeno, onde já se está a instalar a escultora Sofia Castro. No total, a P’la Arte já reuniu dados de mais de 300 pessoas e entidades — uns precisam de um espaço, enquanto outros querem colaborar com o movimento.
A próxima paragem é o Mercado de Alvalade, onde a própria junta de freguesia disponibilizou uma sala com quase 80 metros quadrados que albergará os ateliers de dois artistas ainda a selecionar. Em cima da mesa está também uma colaboração com uma gestora de espaços de cowork, também em Lisboa.
O foco da P’la Arte é a capital, o que não quer dizer que a preocupação com a classe artística portuguesa não chegue a outras zonas do país. Na última semana, a Câmara Municipal do Porto abriu as candidaturas seis espaços destinados a artistas visuais no centro histórico da cidade. Os contratos são de três anos e os alugueres, embora não sejam gratuitos, têm valores simbólicos que vão dos 50 anos 100 euros por mês.
No Prata Riverside Village, a última conquista da plataforma foi a cedência de um terceiro espaço, este destinado a uma exposição que reuniu peças de três jovens artistas — Fernão Cruz, Sara Mealha e o britânico Thomas Langley. “F+S+T=X” pode ser visitada até 1 de setembro (de quinta-feira a domingo, entre as 16h e as 19h) e não passa ao lado das seis semanas de confinamento das quais nem os artistas se livraram.
Sofia Castro: “Sem atelier, o meu trabalho não podia evoluir”
Entre todos os autores que aqui assentaram arraiais, Sofia Castro foi a última a chegar. Para já, é a única a ocupar o segundo espaço disponibilizado pela VIC Proporties. Aguarda um companheiro de atelier, da mesma forma que ainda está a trazer material e a arrumar “grosseiramente” tudo o que até aqui estava em casa. “Isto estava tudo na minha casa. A minha grande limitação era essa: sem atelier o meu trabalho não evoluía. Estava habituada a estar na cozinha. Os meus filhos jantavam e eu ficava num canto a trabalhar. Agora, imaginem o que é estar numa cozinha a dourar”, explica Sofia ao Observador.
Procurar um espaço nos últimos meses tornou-se impossível, daí que a oportunidade de ocupar alguns metros quadrados no Braço de Prata tenha sido agarrada com unhas e dentes. “Não pego naquelas mãos há 20 anos”, aponta. As mãos são só dois dos vários membros de manequim empilhados no topo de uma estante. É essa a empreitada em standby, que agora quer arrancar cheia de ritmo, enquanto ainda percebe qual o comportamento da luz natural e, claro, de quem passa.
A exposição e a partilha do espaço não a incomodam, por muito “solitário” que seja o “trabalho artístico”. São barreiras que Sofia foi quebrando, afinal já passou por ateliers coletivos e também já esteve no papel de professora. “Gosto de partilhar o que estou a fazer e até mesmo de ativar essa curiosidade em torno do que é um atelier, que é sempre um espaço de magia”, refere. A magia de que fala começará a acontecer em breve, com a artista a trabalhar gessos, a desenhar e a aplicar folha de ouro, entre outras técnicas, nesta espécie de montra virada para o rio.
Valentim Quaresma: “Arranjei um armazém, pus tudo lá para dentro e fui para casa”
É Medeia quem tem ocupado os dias do artista e designer de joias desde que chegou ao novo atelier, há mais ou menos um mês e meio. O mesmo sítio que o viciou, possibilita-lhe agora ir trabalhando em vários projetos em simultâneo, os que no fundo sempre foram as suas frentes — a arte na forma de escultura, as coleções de moda que apresenta sazonalmente na ModaLisboa e os figurinos para teatro. Depois de Édipo, levado a cena no último verão, a nova produção do Museu de Lisboa no Teatro Romano chega em setembro.
Do palácio para a beira-rio, Valentim Quaresma ainda aproveita os finais de tarde para arrumar o que vai trazendo e para impor alguma ordem ao caos de uma mudança às pressas. Em março, altura em que apresentou a coleção outono-inverno 2020/21 na ModaLisboa, terminou uma residência de dois anos no Palácio da Ajuda. O atelier do Chiado ficou para trás e a procura de um novo espaço estava a ser complicada. “Entretanto, começou a pandemia. Arranjei um armazém, pus tudo lá para dentro e fui para casa. De repente, vi o mundo a desabar — lojas a fechar, encomendas canceladas, nacionais e internacionais. Acabou tudo”, conta o criador ao Observador.
Ainda durante o confinamento, reorganizou prioridades. Para casa tinha levado alguns materiais que lhe permitiram desenvolver projetos há muito parados. A moda tinha parado, Valentim investiu na arte. “E podia fazê-lo sem metas, porque as exposições também tinha sido todas canceladas”, completa. Os programas de estágio, na maioria internacionais, ficaram suspensos. Agora, Quaresma conta com ele mesmo e com uma única costureira de fora do atelier a quem delega a confeção das peças.
Ao mesmo que cria mais de uma dezena de figurinos, dá seguimento às peças para uma exposição no Espaço Exibicionista, entretanto remarcada. A moda parece ser o único setor que não dá sinais de reanimação. “Está tudo parado. Não sei o que vai acontecer à coleção de inverno, se vou conseguir escoá-la ou não. Por um lado, isto foi bom para repensar essa parte, porque também estava a ir por um caminho que já não me estava a apetecer. Quero usar mais a criatividade, não fazer tanto investimento e reutilizar mais materiais. Sei que vai haver ModaLisboa, vai ser muito giro”, revela.
Mas o designer não está sozinho. Além de Ana, uma velha amiga e companheira de atelier, o espaço é partilhado com dois jovens artistas — André Marques, também do universo da moda, e Lázaro Bonixe. Recém-chegado, explora novas possibilidades numa bancada de joalheiro. Laminar e fundir são etapas do trabalho que não pode fazer aqui, limitação largamente compensada pela assistência do mestre Valentim Quaresma.
A partir de experiências com insetos e resinas o artista de 22 anos está agora a criar a sua primeira coleção. “Isto é o princípio”, ouve-se do outro lado do atelier. A voz da razão é também a da experiência e a exclamação e causa tanto vale para as ambições do aprendiz, como para as do próprio Lugar da Arte. Se bem que, para um começa, a vista não é nada má.