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A foto de Luís Vasconcelos que faz a capa do livro. Amália numa manifestação promovida pelo PS em junho de 1975 no âmbito do chamado “Caso República”. “Amália não fiques à varanda”, gritaram os manifestantes. E a fadista desceu à rua
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A foto de Luís Vasconcelos que faz a capa do livro. Amália numa manifestação promovida pelo PS em junho de 1975 no âmbito do chamado “Caso República”. “Amália não fiques à varanda”, gritaram os manifestantes. E a fadista desceu à rua

A foto de Luís Vasconcelos que faz a capa do livro. Amália numa manifestação promovida pelo PS em junho de 1975 no âmbito do chamado “Caso República”. “Amália não fiques à varanda”, gritaram os manifestantes. E a fadista desceu à rua

A PIDE, o PCP, a propaganda e a revolução: Amália Rodrigues entre o regime e a resistência

Das graças do Estado Novo ao apelo da liberdade: o Observador faz a pré-publicação da biografia política "Amália: Ditadura e Revolução", a propósito dos cem anos da maior voz da canção portuguesa.

“Amália: Ditadura e Revolução, a História Secreta” é a biografia política de Amália Rodrigues, assinada pelo jornalista Miguel Carvalho, que será publicada este 30 de junho, véspera do centenário do nascimento da fadista, 1 de julho (data real, a do bilhete de identidade é 23 de julho). O livro, com cerca de 600 páginas, resultou de um trabalho de investigação feito com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e publicado, numa versão mais reduzida, no ano passado pela revista Visão Biografia.

Pretende ser um “olhar Amália Rodrigues para além da carreira artística, da sua música, do ‘boneco’ e dos caixilhos onde a quiseram meter”, afirma Miguel Carvalho na introdução, e mostrar um lado diferente da fadista, acusada de servir a ditadura e de colaborar com a PIDE.

Com recurso a fontes documentais e entrevistas, “Amália: Ditadura e Revolução” mostra como, pelo contrário, Amália apoiou, muitas vezes com dinheiro, a causa antifascista e tentou influenciar a libertação de presos políticos, nomeadamente a de Alain Oulman, compositor com quem colaborou nas décadas de 1960 e 1970 e que foi responsável por alguns dos seus maiores sucessos.

A investigação de Miguel Carvalho revela também que a cantora foi vigiada pela PIDE por suspeita de apoiar os comunistas. Um dos documentos revelados no ano passado na Visão Biografia, e também incluído neste livro, é um registo dos serviços centrais da polícia política de 1957 com um pedido de bilhete de identidade de Amália Rodrigues e um relatório anterior, de 1939, relativo à “Organização Comunista do Fado”, que referia o nome da fadista.

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Celebrações do centenário de Amália começam em julho

“Se algo se pode concluir acerca de Amália Rodrigues é que ela nunca correspondeu a outra entidade coletiva que não fosse o povo português. Não há uma Amália a preto e branco, uma Amália de trincheira”, diz ainda Miguel Carvalho na introdução.

“Amália não é pertença de nenhuma capelinha, de nenhum regime. Amália não obedece a qualquer moldura onde a queiram meter. Perceber isso, a sua relação íntima com o povo, é a maior homenagem que lhe podemos fazer. Amália, ser imperfeito e controverso como a vida, dispensa canonizações. Monumento artístico e humano, reivindicada contra ou à boleia da sua vontade, não é, ainda assim, intocável”, resume.

O Observador faz a pré-publicação de “Amália: Ditadura e Revolução”, com um excerto que recorda, por um lado, o “espírito livre e independente da fadista” e, por outro, a forma como o Estado Novo se aproximou do fado, e particularmente de Amália, para apoiar-se numa certa imagem de portugalidade, sobretudo em contexto internacional.

A capa de "Amália: Ditadura e Revolução, a História Secreta", de Miguel Carvalho (Dom Quixote)

Era o verão de 1941. O escritor Alves Redol convidara um autor amigo para passear no Tejo a bordo de uma embarcação cujo nome embalava sonhos comuns: Liberdade. Soeiro Pereira Gomes finalizara Esteiros, sua primeira obra, ilustrada por Álvaro Cunhal e dedicada “aos homens que nunca foram meninos”, proibida pela censura. O militante comunista alinha sem hesitação nesses convívios ao sabor das águas com outros intelectuais. Durante as pequenas jornadas de confraternização declamam poesia, cantam ‘A Internacional’ em voz alta e mantêm conversas proibidas longe das margens e dos ouvidos da PIDE.

Organizadas pelo Partido Comunista, graças às suas influências na zona ribeirinha ribatejana, os encontros atraíam personalidades das letras e das ciências para a causa da frente unitária antifascista. Os dirigentes comunistas Álvaro Cunhal e António Dias Lourenço também participaram nesses passeios conspirativos que seduziram, entre outros, Bento de Jesus Caraça, Manuel da Fonseca, Fernando Lopes-Graça, Piteira Santos, Mário Dionísio, Carlos de Oliveira, Alexandre Cabral e Sidónio Muralha. As simpatias ideológicas do grupo não ofereciam dúvidas. Mas um deles ficaria para sempre ligado ao reportório de Amália Rodrigues.

Textos de Sidónio Muralha circularam de mão em mão. Foi lido em associações e clubes de bairro e a socialista Maria Barroso declamou vezes sem conta o Soneto Imperfeito da Caminhada Perfeita como se lesse um panfleto, eletrizando ambientes operários:

“Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas que possam impedir a nossa caminhada
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas…”

“Ela tinha um enorme sentido de independência”, garante José Manuel dos Santos, antigo assessor de Mário Soares e de Jorge Sampaio na Presidência da República. “Ela não tinha fidelidades, nem em matéria religiosa. Não obedecia a uma igreja, partido, movimento ou editora discográfica. Ela é que decidia o que queria. Quando muito, davam-lhe sugestões.”

Sufocado pelo regime e perseguido pela PIDE, Sidónio abraçaria longo exílio, iniciado em 1943. Passou por vários países e fixou-se depois no Brasil. Celebrado autor de livros para crianças, conquistaria Helen Butler, sua última mulher, com poesias breves escritas nos palitos de madeira das caipirinhas. Morreu em Curitiba, em 1982, onde existe uma fundação com o seu nome.

Sidónio Muralha fora apresentado a Amália Rodrigues, possivelmente nos alvores do decénio de 1950. “Quem o levou a ela foi um famoso acordeonista português chamado António Mestre”, conta Vítor Pavão dos Santos. “Radicado no Brasil, onde foi dono de uma casa de fados, falou à Amália do Sidónio, que nunca mais voltara a Portugal e de quem era grande amigo. Ela gostou muito dos versos do poema Amantes Separados e ele depois fez o Raízes para ela”, relata.

Amália gravaria esses dois fados com um intervalo de dez anos, mas cantou-os “em pleno salazarismo”, recordará, décadas volvidas, o biógrafo da cantora. “Era um poeta detestado pelo fascismo, mas Amália sempre cantou o que lhe pareceu belo, nunca teve medo de ser mal vista pelo regime, e disso os exemplos são numerosos.”

A situação política do autor face à ditadura era conhecida da fadista, mas ela sentira-se tocada pelos versos. “Fez duas coisas muito bonitas”, dissera. “Mas depois nunca mais o vi.” As implicações de outra ordem nunca a atrapalhavam. “Inteligente e culta como era, ela sabia essas coisas todas, mas não se intimidava”, reforça Frederico Santiago, investigador do reportório amaliano. “Não estou a vê-la a cantar Sidónio Muralha de propósito. Se assim fosse, não teria cantado outro género de autores. Mas ela não o censurou, o que, na época, já era muito.”

Amália Rodrigues cumprimenta António Ferro, diretor do Secretariado da Propaganda Nacional, depois Secretariado Nacional de Informação, durante o Estado Novo

FUNDAÇÃO ANTÓNIO QUADROS

Estas manifestações de autonomia e isenção política de Amália quanto à escolha dos colaboradores artísticos repetir-se-ão na carreira. Olhada à distância, a opção de cantar Sidónio Muralha naquele tempo é também “importantíssima”, concordariam Rui Vieira Nery e Ruben de Carvalho.

E essa nem sequer fora a única irreverência dos primeiros anos.

Poeta e letrista de canções folclóricas andaluzas, o murciano Ramón Perelló escrevera dois celebrados temas do reportório popular espanhol, também cantados por Amália Rodrigues: “Los Piconeros”, gravado em 1945, e “No Me Tires Indiré”, em 1954. A letra deste último apareceria na íntegra no periódico A Voz de Portugal com referências à fadista, mas o jornal teve o cuidado de ocultar o nome do autor da cantiga.

Órfão de mineiros, ele não era benquisto pela ditadura portuguesa. Celebrado e cantado além-mar, Perelló dirigiu, durante a Guerra Civil de Espanha, um diário de inspiração libertária, convertendo-se num poeta leal aos anarquistas e colaborador da Imprensa comunista. A sua adesão à causa antifascista foi clara e inequívoca. O musicólogo Rui Vieira Nery não valoriza em demasia o facto de Amália cantar Perelló durante o salazarismo. “As coplas chegavam cá em disco e não havia muita noção do percurso individual e político dos artistas espanhóis”, justifica. De resto, a fadista aprendera a maior parte das canções a partir do já referido filme de Florián Rey, Carmen la de Triana (1938), interpretado pela cantora e atriz Imperio Argentina. Poeta e tradutor, insuspeito de simpatias esquerdistas, Vasco Graça Moura defendeu tese diferente em Amália: Dos Poetas Populares aos Poetas Cultivados: “Há uma certa afirmação de coragem política na escolha de algumas canções”, escreve. “Basta pensar que Ramón Perelló foi um conhecido anarquista que se bateu sistematicamente na Imprensa contra o franquismo na Guerra Civil do país vizinho, escreveu poesia de combate antifascista (em que também se referia a Portugal…) e esteve preso durante vários anos como represália pelas posições políticas que tomara.” O autor dava como exemplo um texto de Perelló publicado em 1937 “para se ver que era preciso ter muita coragem em Portugal para cantar um autor do país vizinho que incluía Salazar no ‘trio da benzina’”. Os outros dois eram Hitler e Mussolini. Todos “bêbados de sangue, bêbados de crimes”, escrevera Perelló.

“Ela tinha um enorme sentido de independência”, garante José Manuel dos Santos, antigo assessor de Mário Soares e de Jorge Sampaio na Presidência da República, que a conhecerá às portas da revolução através do amigo, confidente e agente artístico da fadista, João Belchior Viegas. “Ela não tinha fidelidades, nem em matéria religiosa. Não obedecia a uma igreja, partido, movimento ou editora discográfica. Ela é que decidia o que queria. Quando muito, davam-lhe sugestões.” Filho do poeta David Mourão-Ferreira e antigo diretor da Valentim de Carvalho, David Ferreira habituou-se, desde pequeno, a coabitar com o lado A e o lado B da artista: “Há, na Amália, caraterísticas talvez incompatíveis noutra pessoa, mas nela não eram”, elucida. A par do seu espírito livre, “tinha uma visão fatalista, conservadora e individualista. Para ela, o mundo é assim, não vai mudar. E depois há o fado de cada um. A Amália não acredita numa espécie de ‘nós’ redentor”, explica David, enquanto procura referências bibliográficas nas estantes de casa ou se demora no olhar pensativo através da janela, como se precisado dessa irrequietude para melhor esboçar o perfil da cantora.

A memória de garoto do cantor Carlos do Carmo é essa. “As fadistas estavam muito presas aos seus homens. E os homens comandavam. Era uma coisa muito feroz, muito machista”, recorda, dos seus tempos de rapaz. “A Amália, pelo contrário, era livre. Escolheu o seu caminho e até nisso foi inteligente.”

A vida artística é, pois, o território natural de afirmação de Amália Rodrigues, sem limites ou barreiras, sublimado. “Mas quem trata o fado daquela maneira tem uma enorme capacidade de transgressão”, atalha o programador cultural José Manuel dos Santos, cúmplice de tertúlias épicas, madrugada fora, na casa da Rua de São Bento. “Quando hoje se diz que é preciso pensar fora da caixa, é bom que se diga que só se pode pensar fora da caixa quando se está fora da caixa. E a Amália estava fora de todas as caixas, até da caixa do fado. Sempre houve nela uma fabulosa liberdade interior na sua vida e na sua arte. Mas, às vezes, era atacada por uma espécie de sonambulismo e não dava importância a certas coisas.”

Coração independente

É essa mulher livre, divorciada, viajada, emancipada, sem dependências financeiras, que enfrenta a turbulência do decénio de 1950. Amália fuma, usa calças, não pede licença para divertir-se e arrasta uma corte de admiradores e conquistadores. Notívaga, desfruta de companhias masculinas despreocupada de conveniências, maledicências, preconceitos, sem exibicionismos nem alardes, mas confortável na sua identidade. A grandeza artística, estribada na devoção popular ou nas reverências da gente bem, liberta-a e confere-lhe um estatuto invejável.

Ela começara por mudar o fado, passo a passo, por vezes tímida e dengosa, mas sem se deter. “Durante muitos anos, os músicos mandavam nos fadistas”, recordou Ruben de Carvalho, retratando o seu período inicial. “As meninas e os meninos que cantavam faziam parte do serralho particular dos guitarristas e dos ‘violas’. Quem remou contra isso foi o Alfredo Marceneiro, à porrada, e a Amália, toda cheia de miminhos e pastéis de bacalhau. Mas a verdade é que passou a fazer-se como ela queria.”

A memória de garoto do cantor Carlos do Carmo é essa. “As fadistas estavam muito presas aos seus homens. E os homens comandavam. Era uma coisa muito feroz, muito machista”, recorda, dos seus tempos de rapaz. “A Amália, pelo contrário, era livre. Escolheu o seu caminho e até nisso foi inteligente.” A sociedade opressiva, conservadora e beata desse tempo exibe como contraponto o cenário da decadência boémia, fidalga ou remediada, de braço dado com o fado. Assistente de Amália e sua colaboradora durante anos, Estrela Carvas ouviu-lhe as mágoas do percurso, das sombras até rasgar a claridade. “A Amália era muito insegura e a pessoa mais descrente na raça humana que conheci. Viver no ambiente pobre em que ela nasceu, lutar e crescer no país promíscuo de então, em que alguém com uma barriga grande e uma corrente de ouro já achava que era dono disto tudo, deve ter sido horrível.” Mas o sucesso veio, roído até ao osso, trepando a partir do fosso. “Ela foi criada num ambiente em que tudo oprimia, tudo a obrigava a dizer ‘alto, pensa bem’. Vingar no meio em que ela vingou, só tendo uma couraça muito grande…”

Amália seduz, impõe-se, mas também gera ódios e invejas nos antiamalistas.

Amália entre Raul Nery, à guitarra portuguesa, e Santos Moreira, à viola

O sucesso da cantora no fado, “longe de os fazer desanimar, encarniça-os ainda mais no seu torvo desejo de destronar esta rainha por direito natural, que naturalmente se impôs sem tirar o lugar que ele não tivera nunca, elevando-o a um nível onde nunca sonhara chegar”, escreve a revista Eva, em abril de 1950. E pormenoriza: “Sendo Amália Rodrigues plebeia, orgulhosamente plebeia e feliz da sua origem humilde, ela conseguiu o que não conseguiram nunca os nossos fidalgos estilo Marialva: ela aristocratizou o fado – enquanto eles se limitaram a frequentar tascos e vielas para bem poderem senti-lo.”

Amália foge assim do modelo da mítica fadista Severa, na sua trôpega resignação trágica, gerando um torvelinho sem memória nem antepassados. Tornara-se num “encanto exótico”, carregado de “espiritualidade plebeia, misto de doçura e de meiguice, de êxtase e arrebatamento”. Rendem-se a seus pés “faias e príncipes, banqueiros e poetas, diplomatas e boémios, pintores e desportistas, irmanando todos os homens na admiração incondicional” desta nova estrela que arrancara “o fado sujo das vielas” para o implantar “nos salões elegantes e nas embaixadas”, remata a Eva. Para surpresa de alguns, Amália reage com desconforto ou nega a voz a fados ou estrofes onde a mulher rasteja pela fidelidade do marido ou zela pela segurança da relação. Em 1943, quando se deslocara a Madrid, recusara cantar o fado Perseguição, de Maria Alice (casada com o fundador da Valentim de Carvalho). O embaixador português apreciava a música e pedira-lhe que a cantasse, mas Amália detestava-a e disse-lhe que só o fazia caso Pedro Teotónio Pereira alterasse a sextilha onde a mulher aparecia como “sentinela vigilante” da “honra” do marido. “E ele mudou-a para eu cantar.”

Talvez fosse já o ímpeto para fugir a uma lírica vulgar. “O comportamento exigido quando eu era jovem era bem diferente!”, lembrou à jornalista e escritora galega Margarita Ledo Andión, que a entrevistou no quarto em 1982. “Antigamente, uma pessoa que, como se diz por aqui, enganava o marido, era ‘apedrejada’ viva… Mas mesmo assim houve quem arriscasse. É difícil, mas sempre houve alguém com coragem. Eu sempre fui algo obediente, ainda que com as minhas dúvidas”, afirmara, resumindo: “Fui sempre uma pessoa independente, embora não signifique que não tenha sofrido com isso.” Quando se casou pela primeira vez, em 1940, com o guitarrista amador Francisco Cruz, Amália deitara-se tão vestida na noite de núpcias que o marido lhe perguntou pelo guarda-chuva, revelou a própria à investigadora Cecília Barreira. As esposas eram inexistentes fora do lar, seu lugar natural, onde deveriam dedicar-se ao marido e aos filhos. Ela não estava talhada para redundâncias nem irrelevâncias. “Enquanto fadista, encontrava-me muito longe desse estereótipo”, assumirá, nessa conversa. “Ser fadista era na altura, sobretudo nos anos 40, algo de pejorativo. Só nos anos 50 o fado adquiriu a cidadania nacional.”

Em 1953, para gáudio do salazarismo empedernido e de um quotidiano espremido e manso, Amália Rodrigues gravou Uma Casa Portuguesa. A canção alcançará grande êxito, mas persegui-la-á vida fora. Do “conforto pobrezinho” à “existência singela”, a cantiga deu azo à diabolização da fadista e dos seus alegados serviços ao ideário da ditadura, assente no conformismo e letargia cívica.

A cidadania internacional, essa, talvez tenha sido conquistada, em definitivo, com os espetáculos integrados no Plano Marshall, o contrato-programa de financiamento norte-americano à recuperação da Europa do pós-guerra, a que Salazar aderira a contragosto e do qual receberá apenas 30 milhões dos 100 milhões de dólares aguardados.

“Quando escolheram os cantores para representar os vários países só queriam cantores clássicos”, contou Amália ao seu biógrafo. “Mas em Portugal, como não havia grandes cantores clássicos, ouviram uns discos meus e preferiram escolher-me. Foi o Fernando Pessa que foi a minha casa, com uns americanos, para me convidarem.”

A inclusão da fadista, de Raul Nery (guitarra) e Santos Moreira (viola) nos concertos de Berlim, Roma, Trieste, Dublin, Berna e Paris é também atribuída a influências de António Ferro, então a caminho do seu “exílio” suíço no cargo de chefe da diplomacia portuguesa em Berna. “Os espetáculos foram tratados pela organização do Plano Marshall”, situa Rui Vieira Nery. “O meu pai contava-me que eles foram à Alemanha, onde ainda havia um racionamento tremendo, e levaram provisões de Portugal. Foram com as malas cheias de latas de sardinha, café (que era uma coisa preciosa), e os três faziam os jantares no quarto do hotel com as conservas, o queijo, os chouriços, enfim, as coisas que levaram daqui. Até coavam o café numa peúga do Santos Moreira”, sorri o musicólogo.

Na Alemanha, relatara o “viola” à revista Eva, o triunfo tocara o céu. “Fomos para o palco dispostos a interpretar apenas um fado. Estávamos todos muito nervosos, eu mais do que ninguém, embora tentasse dar moral aos meus companheiros. Antes de começarmos, disse para a Amália e para o Nery: ‘Vamos lá humilhar essa gente com o nosso fado.’ No final, saímos logo do palco. Mas tivemos de voltar. As palmas do público eram delirantes. Interpretámos mais dois números e só então nos deixaram ir embora. Em Berlim, após a nossa atuação, apareceram logo uns sujeitos do cinema e outros com propostas para a Amália gravar discos”, relatara.

Para tão estrondoso sucesso contribuiu, segundo Rui Vieira Nery, o facto de a emissora A Voz da América ter retransmitido os espetáculos em toda a Europa. “Há logo ali uma enorme quantidade de ouvintes que vai ficar atenta à Amália pela primeira vez.”

"Quando alguém do Turismo me convidava para ir cantar, quando vinha cá uma personalidade, já eu era Amália Rodrigues, já o povo me tinha feito Amália Rodrigues, nunca o Governo me fez a mim nada"

Em 1953, para gáudio do salazarismo empedernido e de um quotidiano espremido e manso, Amália Rodrigues gravou Uma Casa Portuguesa. A canção alcançará grande êxito, mas persegui-la-á vida fora. Do “conforto pobrezinho” à “existência singela”, a cantiga deu azo à diabolização da fadista e dos seus alegados serviços ao ideário da ditadura, assente no conformismo e letargia cívica. Escrita por Reinaldo Ferreira, poeta e filho do famoso Repórter X, e pelo autor teatral Vasco Matos Sequeira, a cantiga fora interpretada pela primeira vez no salão de festas do Rádio Clube de Moçambique por Sara Chaves e mostrada depois a Amália Rodrigues pelo cantor João Maria Tudela. Terá, porém, nascido à mesa do cosmopolita Hotel Girassol, em Lourenço Marques, hoje Maputo, com intencionalidades mais irónicas do que glorificadoras da pobreza.

O tema provocou desconforto público à própria Amália, que recusou cantá-lo em certas ocasiões. “Eu própria me enterneço com o caldo verde a fumegar na tigela, com o São José de azulejo, com as rosas no jardim, muito amor, a cortina da janela e o sol que bate nela. Acho bonito ”, admitiu, em abril de 1981, na RDP, quando a canção continuava a ser um sucesso na sua voz. “O que eu não acredito é que alguém que não tenha o sol na janela, que não tenha comida para comer, não tenha rosas no jardim, não tenha amor, que fique contente com aquela cantiga. Eu sou infantil, mas é noutro aspeto. Porque eu quando começo a pensar nas coisas, deixo de ser infantil. Eu não acredito que alguém que seja infeliz se contente com aquela cantiga”, ilustrara. “Mal julgado pela intelligentsia bacoca reinante em Portugal, que o tomou por coisa salazarista”, segundo Vítor Pavão dos Santos, o fado acabaria por servir, no dizer de Vasco Graça Moura, “medíocres motivações políticas”.

O empurrão da ditadura

A propaganda do regime esforçou-se por ajustá-la à moldura oficial da submissão feminina, sobretudo através do cinema. Mas quando é evidente que Amália já não pode manter-se “sequestrada” em Lisboa, será o próprio ditador a tomar em mãos a tarefa de promover a “criaturinha”, para consumo externo a bem da nação.

Receoso dos ventos do pós-guerra e da imagem degradante do regime no exterior, Salazar contratou, em 1951, uma agência de relações públicas de Nova Iorque para promover o rosto “benevolente” da ditadura, embrulhando Amália Rodrigues no pacote, conforme demonstrou o investigador na área dos media Vasco Ribeiro.

Os onze anos de atividade da George Peabody and Associates para propagandear Portugal nos EUA resultaram em milhares de artigos de promoção turística e política e notas de Imprensa, entre os quais se incluíam artigos apologéticos sobre Salazar, o Fado e Fátima, além de anúncios e encartes publicitários. Atualizados, os gastos foram superiores a 4 milhões de euros, e a extravagância motivou críticas dentro do próprio regime. “Não restava outra opção a Salazar. Todos os países da ONU (e Portugal não tinha sido aceite) tinham empresas de public relations e publicists a promover a imagem dos Estados, através do turismo”, assegura Vasco Ribeiro.

Outrora revoltado contra o fado de forças desmaiadas, passivo, êxtase de dor e “droga da nossa raça”, António Ferro redescobrira, no estrangeiro, o dom enfeitiçado das guitarras, agora vingança e consolação à distância na voz de Amália Rodrigues, “a maior intérprete do fado, e possivelmente de todos os tempos”, muito além da canção que a tornara famosa.

A agência logrou promover a gravação de um disco de Amália nos EUA com a versão de Coimbra em inglês, então rebatizada April in Portugal. A canção passou em todas as estações de rádio e televisão norte-americanas. Mesmo não existindo evidências da interferência da empresa de relações públicas nessas escolhas, “a música foi, durante largo tempo, cotada entre as três mais populares dos EUA e chegou a ser interpretada por Dinah Shore, Ella Fitzgerald e Louis Armstrong”, esclarece Vasco Ribeiro. O feito permitiu levar Amália ao Eddie Fisher Show, na NBC, em julho de 1953, patrocinado pela Coca-Cola, durante o qual a artista provou a bebida então proibida em Portugal. Eddie Fisher, voz de estrondosos êxitos como Thinking of You e Any Time, seguiu, durante 16 anos, os conselhos do seu manager Milton Blackstone, o qual contratava jovens para gritarem e desmaiarem por ele durante as atuações. Dono de uma agência de publicidade, Blackstone representou bares e cabarés (Copacabana, Toots Shor’s, Diamond Horsehoe, Brass Rail, Café Zanzibar e La Vie en Rose) e tornou-se também, nessa época, empresário de Amália no mercado norte-americano.

Fruto da estratégia de propaganda da ditadura portuguesa, fotografias da fadista aparecerão na revista Parade, em julho de 1953, durante uma visita aos Açores, integradas numa campanha da companhia aérea TWA. Há fotos de Amália a receber flores à chegada, a ver o tacho do cozido das Furnas ser levantado do solo, a contemplar as lagoas açorianas e a passear de barco em Ponta Delgada. A Parade tinha, à época, uma circulação de 5,8 milhões de exemplares. Há ainda registo de artigos sobre Amália em revistas cuja difusão se avaliava em milhões de leitores, casos da Family Weekly e da Newsweek. De resto, o lançamento do primeiro LP da cantora, pela Angel Records, em 1954 (Amalia sings Fado from Portugal/ Flamenco from Spain) teve amplo destaque na Imprensa norte-americana. Ficará para sempre ligado a esta investida do regime e resultará numa das estratégias de maior sucesso da Peabody.

Amália morreu há 20 anos. Porque é que a voz dela era especial?

Amália tinha 30 anos quando, pela primeira vez, pôs os pés em Nova Iorque. Ia por duas semanas, ficou quase quatro meses, e os americanos queriam-na por um ano. “Pagavam tudo, abriam-me uma conta no banco para eu viver lá e propuseram-me gravar um disco com os clássicos americanos”, recordou. A boîte La Vie en Rose foi um dos locais onde se impôs. Situada na zona nobre de Manhattan, exibia o ar minimalista chic dos seus “parentes” da margem esquerda de Paris, com menus de cozinha francesa a preços exorbitantes. Night-club elegante para gente da mesma estirpe, por ali passaram, além da cantora portuguesa, Nat King Cole, Ella Fitzgerald e Eartha Kitt.

Para Amália Rodrigues, a conquista dos EUA devera-se apenas à sua voz e talento. Com inocência ou disfarçada ingenuidade, atribuía o fôlego da carreira por aquelas bandas ao mérito próprio, “sem promoção nenhuma”. Ironicamente, dirá: “A América é um mundo enorme e era preciso que eu tivesse uma pessoa atrás de mim a gastar rios de dinheiro que eu nunca tive. Nunca na minha vida tive alguém que me ajudasse nisto, nos jornais, na rádio ou na televisão.” Uma narrativa da qual até a Imprensa faria eco. “Seu prestígio internacional não foi feito à base de canções com segundas intenções, não foi feito por um hábil agente de publicidade, nem surgiu imposto por necessidade de propagar alguma coisa. O prestígio de Amália surgiu do povo”, sugeriu a revista brasileira Manchete, em 1955. As qualidades artísticas eram, contudo, tão inegáveis como as manobras de bastidores, pagas a peso de ouro pelo regime. “Toda a operação da agência Peabody confundia-se com a atividade da Casa de Portugal em Nova Iorque e com o próprio SNI”, explica Vasco Ribeiro. “Mas acho que a Amália não sabia. Era usada (deixava-se usar?) pelo circuito de poder que frequentava.” A propaganda de um certo Portugal deve também ser creditada a António Ferro.

Mensagem enviada em 1960, depois de uma viagem de Amália Rodrigues ao Brasil, antes de uma atuação no Porto, em 1960

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Desconsolado com Salazar, abraça, obediente, o exílio diplomático. Nomeado ministro plenipotenciário em Berna (Suíça), aí se manteve de 1950 a 1953. “País de relógios, sem poesia e sem moscas”, onde o quotidiano se revela tão distante “como uma vaca leiteira o é de um touro bravo”, no dizer epistolar do amigo Leitão de Barros, o ex-diretor do SNI resigna-se ao destino, apesar de preferir Paris. Ainda assim, a correspondência com o ditador não esmorece. “O banqueiro Ricardo Espírito Santo, que se desloca com frequência à Suíça, a pretexto de fazer esqui, para movimentar as suas contas secretas e que, quando está em Lisboa, visita todos os domingos Salazar em São Bento, é portador de mensagens mais íntimas. Na embaixada, instalada no n.º 50 da Helvetiastrasse, onde nunca falta o bacalhau nem o atum português, Fernanda de Castro [mulher de António Ferro] organiza receções e promove serões fadistas, para os quais são convidados novos e velhos amigos”, descreveu Orlando Raimundo, biógrafo político de Ferro.

Com o fim da guerra, percebera-se a urgência de reinventar a imagem externa da nação. O postal do Portugalinho de quintal, folclórico, pitoresco e provinciano, povoado de gente pobre, “feliz” e “honrada”, nada diziam à Europa libertada da visão totalitária de Hitler, em acelerado progresso e a experimentar a imoralidade, a rutura e o desassossego nos costumes. Tratava-se agora, assinalou a historiadora Carla Ribeiro, de promover um “estilo moderno”, sustentando a imagem de marca do país no discurso histórico da longevidade, da herança universal do Portugal imperial e na “modernidade económica”, através de referências entusiasmadas ao alegado fulgor industrial das pescas, energia elétrica, minas, transportes e comunicações.

Em Berna, Ferro “impõe” a cultura nacional aos suíços e recorre a exposições e concertos de artistas lusos, entre eles o emblemático recital de Amália Rodrigues, em finais de fevereiro de 1952, nas instalações da legação portuguesa. No discurso de apresentação da artista aos convidados, Ferro insiste na visão do fado enquanto “canção de renúncia”, grito de alma “que morre num fatalismo deprimente por vezes negativo e dissolvente”. Essa música deveria, pois, procurar-se na noite de Lisboa, “nos antigos bairros pobres, nos bairros de marinheiros, das pessoas que sofrem e choram o seu destino, na abertura das portas, no fundo dos casebres”, de Alfama à Madragoa, sem esquecer a Mouraria, “com as suas casas de mendigos, cegos, que se escondem na sombra dos antigos palácios e são expulsos dos becos e vidas”. É um retrato de vozes noturnas, de fantasmas vagueando entre as lágrimas da cidade que cantam, segundo ele, “amores infelizes, dores da alma, algumas alegrias um pouco tristes” e a nostalgia de corpos bonitos, do mar, da felicidade e da glória.

Outrora revoltado contra o fado de forças desmaiadas, passivo, êxtase de dor e “droga da nossa raça”, António Ferro redescobrira, no estrangeiro, o dom enfeitiçado das guitarras, agora vingança e consolação à distância na voz de Amália Rodrigues, “a maior intérprete do fado, e possivelmente de todos os tempos”, muito além da canção que a tornara famosa. Amália deixara de ser somente fado para se tornar imagem do país, “insinuante, penetrante, envolvente, algo de extremamente expressivo, que os estrangeiros não entendem, mas adivinham, uma síntese, na sua força instintiva, de algumas reações da nossa alma que continuam a ser profundamente românticas, do charme das nossas ruas sonâmbulas, repletas de gotas de luz e de guitarras”.

“Era capaz de ter ficado toda contente naquela altura, visto que eu vim de uma gente muito pobre que quando falavam num ministro ou falavam no senhor diretor não sei de quê ficávamos todos contentes quando o senhor diretor descia até nós. Isso é que é normal, isso é que é natural. Eu não fui privilegiada. Eu não falo do povo. O rei é que fala do povo. Eu não sou rainha (…) O público e o povo é que me fez.”

No entender de Ferro, os portugueses, ciumentos e egoístas, detestavam vê-la longe de Lisboa ou escutá-la nas versões estrangeiradas, sobretudo castelhana ou brasileira. Mas a fadista impusera-se em várias línguas e a fama internacional levaria ao cume a própria sensibilidade nacional. “A efusão de uma artista como a Amália não está na língua em que ela canta, mas na sua força emocional, nessa música interior que alcança os seus lábios sem nunca deixar a sua alma”, admitiu o diplomata. “O canto da sua garganta combina com o seu rosto. O fado não sai apenas dos seus lábios, mas do seu sorriso, das suas mãos que se apoiam nos ombros, dos seus excelentes acompanhantes num gesto comovente de comunhão, solidariedade, unidade rítmica, dos seus olhos que se fecham – plagio um poeta português –, que se fecham para melhor ver”, descreveu António Ferro, rendido à voz “sempre bela” de Amália, cuja natureza “é o extremo oposto de qualquer mecanização. Vê-la é ouvi-la, ouvi-la é vê-la”. E assim Lisboa desembarcou em Berna. O regime estava de bem com o fado.

Mas não exatamente pelas melhores razões.

Domesticado e submisso, o género encaixava-se na estratégia de exportação da ditadura. Em 1958, respondendo a um pedido de informações de um argentino interessado em produzir um trabalho sobre fado, o SNI elabora um extenso documento no qual enquadra a narrativa oficial sobre o género. Recorreu, inclusive, às citações literárias mais remotas sobre a palavra, enquanto destino, vaticínio, sina, profecia ou “vida de lupanar”, de Castilho a Ricardo Jorge, passando por Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco ou Aquilino Ribeiro. Originário dos ambientes de bordel e navalha, das esperas de toiros e pândegas boémias, o fado penetrara “nos salões aristocráticos e democráticos”. Na versão da propaganda, novas melodias surgiram a cada passo, os “poetas-versejadores” alargaram o âmbito da sua inspiração e “não faltaram vozes apropriadas e vocações exímias se salientaram de entre a inevitável chusma dos medíocres”. Para o SNI, as mulheres “contribuíram poderosamente para a voga e fama” do fado, e não apenas “como cantadeiras”.

Surgidas nas “vielas” e “meios equívocos” e, depois, nos circuitos teatrais e artísticos, as musas virtuosas destacaram-se. “Deve observar-se que a voz adequada ao canto do Fado não se aprende em nenhuma escola ou música, surgindo os cantadores e cantadeiras por toda a parte, sem distinção de classes nem de profissões. Tratando-se de um canto pessoalíssimo e expressivo, compreende-se a importância da personalidade do intérprete, sendo, por de mais, a caraterística do verdadeiro fadista não cantar a mesma coisa sempre do mesmo modo, mas criá-la diferente de cada vez que a repete.” A definição encaixava na perfeição em Amália Rodrigues.

“Bravo, Amália”. Quando ouviram La Rodrigues, os italianos apaixonaram-se

Até ao último suspiro, o Estado Novo, pelo menos a título oficial, nunca deixou de aproveitar o prestígio da fadista em seu benefício, abrindo-lhe as portas que pudesse. Se fosse sem custos, tanto melhor. Um exemplo: a 23 de julho de 1965, César Moreira Baptista pediu aos israelitas apoio à presença da artista naquele território. “Madame Amália, que, pelo seu talento e a sua brilhante carreira artística, é considerada a nossa cantora nacional, vai realizar uma tournée na Europa e Israel”, escreve o então diretor do SNI. “Toda a ajuda que puder ser prestada à Madame Amália Rodrigues durante a sua missão artística, tanto pelas autoridades como pelas organizações culturais das cidades (…) serão altamente apreciadas.”

Nesse período, a imagem internacional do país, bastante chamuscada pelo seu caráter autoritário e pelo colonialismo, pendura-se nos ícones disponíveis. “Eusébio, o Benfica, a Amália, têm sido excelentes embaixadores de Portugal no Mundo. Embaixadas artísticas e desportivas têm prestado ao nosso país serviços que não podem ser menosprezados, reforçando a estima que uns nos consagram e quebrando noutros o gelo da incompreensão que arrefece as nossas relações”, acentua A Capital, em 1969. Requisitada para eventos oficiais no país, Amália não se furtava aos convites.

Em abril de 1970, é a artista principal do espetáculo do Coliseu de Lisboa integrado numa homenagem aos combatentes da Primeira Guerra Mundial, com a presença do presidente da República, Américo Tomás, e membros do Governo. Nesse mesmo mês, atua na gala “Flores para a Fundação Salazar”, espetáculo solidário realizado no Teatro São Luiz, também com a presença do chefe de Estado, cujas receitas revertem a favor daquela instituição. Além de Amália, atuam o brasileiro Ivon Curi, Carmen Sevilla, Duo Ouro Negro, Maria José Valério, Madalena Iglésias, o acordeonista Fernando Ribeiro, a orquestra ligeira da Emissora Nacional, dirigida por Joaquim Luís Gomes, o coro misto da EN e o conjunto de guitarras de António Luís Gomes.

Amália com a irmã Celeste Rodrigues na década de 50

Depois da revolução, embora algo desconfortável na própria pele, Amália Rodrigues enfrentará as críticas ao facto de ter sido estandarte do velho regime, sobretudo para exportação. “É certo que fui [a vários espetáculos]. Mas também foram muitos outros artistas. Foram todos contratados, o que acho normal. Só que estes não o dizem, calaram-se”, indignar-se-á na revista Mulheres – Modas e Bordados. “Há artistas que foram contratados, como eu, para festas, o Dia de Portugal, na Bélgica, ou aqueloutro espetáculo com uma representação artística portuguesa no Olympia, em Paris. Que foi patrocinado pelo SNI e também pelo Governo francês e por outras entidades que levaram toda a gente a França. E toda a gente foi, o que acho, aliás, normal. Mas, no entanto, tudo isto nada tem a ver com uma pretensa colaboração com o Governo. Apenas fui contratada e nada mais. Nunca, de resto, ninguém me disse: ‘Amália, vais fazer propaganda de Portugal e nós subsidiamos-te.’ Nunca tive um subsídio de ninguém nesta terra. Nunca, até pelo contrário! Embaixadores e tudo tratavam-me mal, à exceção de três ou quatro que encontrei lá fora”, sustentou então, recusando a ideia de ter prestado serviços à ditadura.

“Se o regime me aproveitou, eu não senti”, justificaria. “Até me zangava, porque eu ia cantar a um sítio qualquer e via os embaixadores das artistas que estavam comigo a trabalhar presentes para as ouvirem, mandando flores e tudo, e a mim quase nunca me acontecia nada. Quando alguém do Turismo me convidava para ir cantar, quando vinha cá uma personalidade, já eu era Amália Rodrigues, já o povo me tinha feito Amália Rodrigues, nunca o Governo me fez a mim nada. O Governo não fez a Amália Rodrigues. Nem dei porque o Governo a aproveitasse”, insistira, a tentar desfazer equívocos. “Naturalmente, se alguma coisa aconteceu, tiveram talvez a sorte de eu existir na época que existiam. Mais uma vez foi fado, mais uma vez foi destino”, defendia-se, garantindo nunca ter sido solicitada para fazer ou dizer algo conveniente para o país. “Era capaz de ter ficado toda contente naquela altura, visto que eu vim de uma gente muito pobre que quando falavam num ministro ou falavam no senhor diretor não sei de quê ficávamos todos contentes quando o senhor diretor descia até nós. Isso é que é normal, isso é que é natural. Eu não fui privilegiada. Eu não falo do povo. O rei é que fala do povo. Eu não sou rainha (…) O público e o povo é que me fez.”

Com ou sem compromissos, mais ou menos pactos, com mais ou menos defesas, o percurso amadureceu-a, abriu-lhe horizontes e possibilidades antes inimagináveis para a sua arte, talento e condição. Mas Amália repetir-se-á vida fora até à náusea: não, nada fizera por si, nem mexera palha para conquistar tal estatuto. Tudo lhe viera ao regaço, sem esforço, sem “ais” nem ambições, teimara, repetidamente. Como se a vida e o fado lhe acontecessem por inspiração divina ou estivessem marcados na sina.

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