Na Ponte 25 de Abril há parafusos, porcas, cabos, alcatrão, cimento, escadas, torres, carros, comboios e gatos. Gatos? “Há muitos gatos lá na ponte!” Ri-se o homem que acaba de dizer isto, como que divertido pelo espanto do interlocutor. “Primeiro que descobrisse porque é que havia gatos em cima da ponte, nem queira saber. Como parava ali a bicha, os carros estavam dez minutos, um quarto de hora à espera de andar e os gatos saltavam cá para fora. Eu ia para os apanhar e eles pumba!, cá para baixo. Olhava e lá ia ele à frente a nadar.”
António Rosa Lopes não é homem de se entusiasmar a falar, mas de vez em quando a língua lá se solta um bocadinho e vem uma história de rajada. Ou uma gargalhada, para pontuar um episódio mais curioso. Sentado numa mesa de jardim à sombra de um pinheiro manso, vestido com um pólo cinzento, umas calças de ganga e umas havaianas, António Rosa Lopes abre uma pasta que está quase a rebentar pelas costuras. Lá dentro estão as memórias fotográficas daquele que foi a pessoa que mais tempo trabalhou na Ponte 25 de Abril. De 1962 a 2005, ininterruptamente, António subiu e desceu as torres, andou de um lado para o outro no tabuleiro, tomou o pulso a cada centímetro de ponte. É uma menina que, para ele, não tem segredos.
Tinha 22 ou 23 anos quando começaram os trabalhos da ponte. Natural de Avis, já andava pela zona de Lisboa quando “um senhor lá da terra que trabalhava para os americanos” o convidou a trocar as obras do Metro pelas da travessia do Tejo. O ofício que ele tinha aprendido era o de carpinteiro, mas como “havia uma grande necessidade de trabalho” e na ponte não precisavam de quem soubesse mexer em madeira, tornou-se pintor. “Devia ser dos melhores ordenados que havia aí. Pagavam 90 escudos. Era melhor do que na Lisnave.”
Oito meses trabalhou António Lopes até que o nomearam encarregado da equipa de pintores. Os quatro anos seguintes foram nessa condição, a pintar as peças que vinham dos Estados Unidos para montar a ponte como se de um Lego se tratasse. “Algumas peças vinham já em vermelho e outras eram pintadas por nós”, conta António, que apesar de hoje despachar estas frases com bastante rapidez e simplicidade, salienta que o trabalho não era fácil. “Era árduo ter que estar sempre a pintar. Aquilo era muito mau. Íamos comer de luvas, mas a tinta passava na mesma. A higiene era muito má. E as condições de segurança? Nós tínhamos de ter muito cuidado.” Morreram onze pessoas na construção da ponte.
O discreto engenheiro
Para explicar como é que a ponte foi montada peça a peça como um puzzle de grande complexidade, palavra a Luís Canto Moniz, engenheiro que toda a vida esteve ligado à ponte e sobrinho do ministro que insistiu com Salazar para que autorizasse a construção da travessia. “As torres eram feitas em elementos que vinham embarcados e que depois eram cá montados”, explica o técnico, hoje reformado, que inscreveu o seu nome na História daquela estrutura por via do tio. “Eu tinha-me formado um ano ou dois antes. O meu tio falou-me, precisavam de um rapaz que falasse inglês” e conseguisse comunicar facilmente com os americanos da U.S. Steel, responsáveis pela construção da ponte.
Durante as obras, Canto Moniz ficou responsável pela fiscalização da ponte suspensa, a parte mais complexa da enorme estrutura que surpreendeu o país. Não havia muitas pontes suspensas deste género pelo mundo. A Golden Gate, em São Francisco, é frequentemente a mais comparada à 25 de Abril, sobretudo pela cor, mas Canto Moniz prefere falar da ponte de Mackinac, no Michigan, dos mesmos engenheiros que vieram construir a travessia lisboeta.
Anos mais tarde, já a 25 de Abril se chamava assim, engenheiros de Mackinac “vieram a Portugal de propósito para ver as fundações” da ponte de Lisboa e levar os conhecimentos de volta para os Estados Unidos. Canto Moniz, que diz não querer protagonismos e se assume como pessoa discreta, não consegue esconder uma ponta de orgulho ao dizer isto. É o mestre que vem aprender com o aprendiz. Quem não ficaria de peito inchado?
Uma fita para acabar com manias
Depois de a ponte ter sido inaugurada, não quiseram deixar António Rosa Lopes ir-se embora. Primeiro no Gabinete da Ponte Sobre o Tejo, depois na Junta Autónoma das Estradas, foi o homem com a missão de salvaguardar o permanente bom estado da estrutura. “Eu zelava pela obra. O meu interesse não era dinheiro nem nada disso.”
Uns tempos antes daquele 6 de agosto de 1966, quando a ponte abriu ao trânsito, a vida de António cruzou-se com a de outro homem que passou três décadas sobre aquele tabuleiro de alcatrão. Álvaro Fernandes admite que, inicialmente, foi o medo que o levou a subir às alturas da ponte. Até 1966, ele e muitos outros companheiros ganhavam a vida a vender bilhetes para o ferry-boat que saía de Lisboa para Almada. “Diziam que o barco ia acabar, que o barco ia acabar. Soubemos que o Gabinete da Ponte ia abrir inscrições, deram-nos prioridade porque já sabíamos lidar com automóveis.” Foi assim que o primeiro grupo de vinte portageiros foi escolhido. Álvaro era o número dois.
As portagens começaram a ser cobradas logo no dia da inauguração, assim que a imensidão de automóveis abrandou no tabuleiro. “Havia dez classes. A primeira eram dez escudos, a segunda quinze e por aí em diante. A classe nove, para os autocarros, eram cem escudos”, conta Álvaro Fernandes, que teve de ir um mês mais cedo para a ponte para aprender todos os truques do ofício. Uma das coisas que passou a ter sempre à mão foi uma fita métrica, útil para tirar teimas. É que o valor da portagem a pagar era definido pelas medidas que o veículo tinha e nem todos os automobilistas concordavam que o seu carro fosse classe dois.
No dia da inauguração, há exatamente 50 anos, os portageiros foram mais cedo para ajudar a montar a tribuna. Nada de novo, já tinham passado todo o mês anterior a servir de guardas não-oficiais da travessia, para impedir que os mais afoitos ali passassem antes da abertura oficial. No fim, receberam uma espécie de “recompensa”. “Estivemos com o Salazar na sala de convívio, a tomar café com ele.”
A vida na ponte
À semelhança do engenheiro Canto Moniz, também António Rosa Lopes participou nos trabalhos de instalação dos comboios na ponte, entre 1996 e 1999. Foi necessário reforçar as estruturas, porque apesar de o projeto inicial já prever caminhos-de-ferro, “os comboios eram três vezes mais pesados do que nos anos 60”, pelo que “teve de se alterar esse projeto todo”, explica Canto Moniz. “Um comboio com oito carruagens manda um peso que você nem queira saber”, diz Rosa Lopes, para quem a vertente ferroviária “deu muito valor à ponte”, que já era “uma obra digna”.
Também como em 1966, os responsáveis pela ponte não quiseram falhar em nada. Se, aquando da abertura ao tráfego automóvel, a ponte se tinha enchido de camiões-cisterna carregados para testar até onde o aço vergava sem quebrar, o mesmo se fez com um comboio de mercadorias. De há cinquenta anos, a memória de Canto Moniz é semelhante à de Rosa Lopes. “Deu uma deformação que as pessoas que viram até se assustaram um bocadinho”, ri-se o engenheiro, que diz agora que nunca temeu que as coisas corressem mal. “Qualquer pessoa que visse aquilo pensava que a ponte caía. Não, não, aquilo foi muito bem planeado, não caía nada”, comenta António Rosa Lopes.
A ponte não caiu e ainda lá está no mesmo sítio onde os operários a deixaram. Com dificuldades? Sem dúvida. “Um gajo aguenta aquelas condições porque havia muita necessidade”, afirma António. Também a vida nas portagens não era pêra doce. “A princípio foi um bocado custoso. Não tínhamos lá nada, nem ar condicionado nem nada. Eram só aqueles cubículos”, comenta Álvaro. Por fim, as coisas foram melhorando e ambos acabaram por passar a vida na ponte. Seguem-se outros, por mais cinquenta anos. Ou mais, quem sabe. “Desde que ela tenha manutenção, sei lá quantos anos poderá vir a ter. Aquela ponte lá do Porto não está lá há cento e tal anos? Então pronto”, conclui António.