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Adele, Rolling Stones, Steven Tyler (Aerosmith), Twisted Sister, R.E.M., Elton John, Queen, Pavarotti, George Harrison (Beatles), Neil Young. A lista é longa. Inesgotável, talvez. Estes são alguns dos principais artistas e bandas que protestaram e impediram Donald Trump, candidato do Partido Republicano às actuais presidenciais americanas, de utilizar as suas canções nos comícios e eventos públicos. Não são a excepção, mas a regra. Nos últimos meses, são cada vez mais os artistas que exigem distância face à campanha republicana.
Trump não é o primeiro candidato republicano a ser rejeitado massivamente pelos artistas pop cujas canções escolheu usar. Muito longe disso – quem não se lembra de George W. Bush? Mas é difícil encontrar paralelo com campanhas eleitorais anteriores: contra Trump, muitos dos artistas já não se contentam em estar à margem da sua campanha, fazem questão de entrar no jogo contra o candidato republicano. Veja-se o caso dos U2. Em concerto, a banda irlandesa montou um vídeo para simular um diálogo entre o candidato e o vocalista Bono, para ridicularizar Trump. Mas outros exemplos brotam nas redes. Como a iniciativa da banda indie rock Death Cab for a Cutie e da artista Aimee Mann, que se juntaram para, nestes últimos 30 dias de campanha eleitoral, lançar uma música por dia de artistas unidos contra Donald Trump.
A dimensão da resistência ao republicano nos meios musicais não tem precedentes. De tal modo que virou tema para os programas humorísticos norte-americanos. Há tempos, John Oliver perguntava: afinal, ainda há canções que Trump possa utilizar? A pergunta diz tudo sobre o isolamento do candidato. Só que a resposta (verdadeira) é que sim, ainda há canções por usar, mas desde que a sua campanha se mantenha circunscrita à música country – onde os republicanos sempre encontraram amigos e apoio. É pouco. Aliás, é muito pouco se compararmos com a campanha do Partido Democrata.
Bernie Sanders, enquanto candidato nas primárias do Partido Democrata, precisava de puxar a sua imagem pública para cima – menos conhecido do que Hillary, o seu maior desafio era apresentar-se aos democratas e ao país. E, nesse exercício, a música desempenhou um papel determinante. Sanders conseguiu juntar as canções (e por vezes apoios assumidos) de Simon & Garfunkel, Neil Young, David Bowie, Killer Mike, Lil B e cantou em palco ao lado dos Vampire Weekend, chegando assim a todo o tipo de eleitorado – os mais novos, os mais velhos, os mais tradicionais e os mais jovens e hipsters. Ou seja, a música fez parte da estratégia que lhe valeu uma popularidade improvável no arranque da sua candidatura.
Já com a nomeação pelo Partido Democrata, a campanha de Hillary Clinton evidenciou outras necessidades: era fundamental apostar numa mensagem de perseverança e de afirmação do papel das mulheres na sociedade americana. As escolhas musicais de Clinton estão, de resto, completamente alinhadas com esse objectivo, tendo recorrido a três canções de artistas solo e todas mulheres – “Fight Song”, de Rachel Platten, “Brave” de Sara Bareilles, e “Roar” de Katy Perry. Inspiração, elevar a voz das mulheres, orgulho e amor-próprio, força para enfrentar as adversidades. A mensagem é clara. O único inconveniente prático é que, face à (ausência de) qualidade musical nas canções, após centenas de eventos de campanha já ninguém consegue escutá-las sem querer atirar-se da janela, nomeadamente a de Rachel Platten – pelo menos, é o que por aí se diz e nem os membros da equipa da campanha de Hillary ousam desmentir. A saturação é unânime e, como acontece geralmente nos EUA, tornou-se viral – com dezenas de comentários humorísticos no twitter e nos media. Seja como for, cada uma das três canções agrega dezenas de milhões de escutas e visualizações no Youtube – valha o que valer, a mensagem chegou a muita gente.
A música tem impacto numa campanha eleitoral?
Estará na música a fórmula secreta para vencer eleições presidenciais nos EUA? Não exageremos nem façamos da música o que ela não é. Não basta escolher a música certa para somar mais votos do que o adversário – até porque não existe isso de “a música certa”. Mas ajuda saber encaixar a música numa estratégia eleitoral. Garante simpatias e apoios, entusiasma e dissemina melhor a mensagem ou o slogan de uma campanha. No fundo, potencia e agiliza uma candidatura, tornando-a mais eficaz. Ou, se tudo isso falhar, menos conseguida.
É claro que, hoje, a relação entre música e política é particularmente explícita. Mas vale a pena dar um passo atrás para perceber que nada disto começou ontem e que, até se chegar ao ponto actual, muitas experiências foram feitas. Sim, o que hoje assistimos é o aprofundar (através dos media) de uma tendência antiga. E, nos EUA, para onde iremos olhar, ela é tão antiga quanto a primeira eleição presidencial, que elegeu George Washington em 1789. Afinal de contas, não há razão para estranhar: a música inspira, transmite mensagens, gera afinidades entre o eleitorado e um candidato. E, enquanto linguagem universal, tornou-se uma poderosa ferramenta política, que nenhum candidato pode dispensar num país desenvolvido e com 300 milhões de habitantes, dos quais (hoje) a parte mais jovem vive ligada às redes sociais – e só olhará à política se a política lhe entrar pelo Youtube. Barack Obama, como veremos, sempre o entendeu e tirou proveito disso. Que a sua despedida da Casa Branca seja assinalada com um festival (com artistas convidados por si) é, de resto, a prova.
Todos lembramos um ou outro caso de utilização da música em campanhas eleitorais. Em Portugal, ficou colada à memória a imagem de Guterres, em 1995, eleito pela primeira vez Primeiro-ministro ao som de “Conquest of Paradise”, de Vangelis. Só que, nos EUA, esta relação música-política vai muito mais longe do que nos habituámos: escolhas musicais escrutinadas à lupa, apoios e/ou críticas de artistas populares, guerras legais pela utilização de canções em comícios, a ascensão dos candidatos a estrelas pop. Não é por acaso, como explicam Benjamin Schoening e Eric Kasper, autores do livro Don’t Stop Thinking About the Music, que analisa as escolhas musicais nas campanhas eleitorais das presidenciais americanas até 2008 – e que inspirou este texto. Entre George Washington e Barack Obama estão mais de dois séculos de canções de campanha. E esta é a história de como a música ganhou voz nas eleições presidenciais americanas e como cada um dos grandes partidos a soube (ou não) usar em seu proveito.
1789–1972: onde tudo começou e como aqui chegámos
A primeira associação entre a Presidência dos EUA e música não nasce em campanha eleitoral. Aconteceu no pós-campanha. Assim que se formalizou a eleição do primeiro Presidente dos EUA, George Washington, foi composta a canção “Follow Washington”, uma espécie de hino da Presidência que tocava nos eventos em que este participava. Foi, de certo modo, o início de uma relação longa com a música.
Foi em 1800 que, efectivamente, a música entrou numa campanha eleitoral, através de canções patrióticas que, apenas pontualmente, se referiam aos candidatos. Foi o pontapé de saída para o que, 40 anos mais tarde, se fixou como padrão do que viria a ser a relação entre música e campanhas eleitorais nos EUA: o lançamento de uma canção, “Tippecanoe and Tyler Too”, como forma de promoção do candidato William Henry Harrison – apropriando-se da melodia de uma canção popular, os seus apoiantes reescreveram as letras para promover o candidato. Ele até ganhou mas, 32 dias depois de se sentar na cadeira de presidente, morreu de pneumonia. Ficou para a história como o presidente com mandato mais curto, mas também devido ao carácter inovador da sua campanha eleitoral.
Desde então, a sofisticação na utilização da música cresceu, sem surpresa, ao ritmo da evolução tecnológica. O impacto da rádio (sobretudo a partir da década de 1920) e, mais tarde, da televisão (1940) revolucionou as campanhas eleitorais e, no caso da música, esta deixou de ser um exclusivo dos comícios e preencheu uma necessidade de comunicação para massas – por exemplo, introduzindo repetidamente o nome dos candidatos nos tempos de antena. Contudo, o grande salto foi dado mais tarde, já na década de 1970, em plena afirmação da era pop, quando os candidatos passaram a usar canções feitas em vez de compor as suas próprias canções. A partir de então e até hoje, a regra seria a de conciliar a mensagem das canções às candidaturas, sem interferir nas melodias ou nas letras.
https://www.youtube.com/watch?v=Ho92k2CKNh0
Em 1972, o candidato democrata George McGovern foi o primeiro a fazê-lo. É certo que foi arrasado nas urnas por Richard Nixon – o republicano recolheu mais de 60% dos votos e maioria esmagadora no Colégio Eleitoral (520 contra 17). Mas, para além da derrota, McGovern deixou na história a primeira utilização reiterada de uma canção popular como hino de campanha eleitoral, levando mais longe aquilo que, antes dele, outros já tinham começado a ensaiar. A escolha recaiu sobre “Bridge Over Troubled Water”, retirada do disco com o mesmo título (1970), o último da dupla Simon & Garfunkel. A opção explica-se sobretudo pela popularidade da canção e do disco – ambos no top de vendas no arranque da década. E, quando os indicadores apontavam à sua derrota, McGovern até pediu à dupla que lhe fizesse um pequeno concerto num comício em Madison Square Garden (Nova Iorque) – o que aconteceu. Mas o interessante é, também, olhar à mensagem da canção e como ela serviu a candidatura de McGovern. As letras remetem para o valor que um amigo pode representar na vida, servindo de apoio nos momentos difíceis – ou como “ponte sobre águas turbulentas”. McGovern queria que os americanos o vissem como esse amigo, a pessoa que os iria ajudar a ultrapassar as adversidades. Mas os americanos dispensaram-no.
1984–1988: As campanhas na revolução da pop
Foi preciso esperar até 1984 para que candidatos de ambos os lados (Mondale vs. Reagan) seguissem o exemplo de McGovern e apresentassem canções já produzidas e inalteradas nas suas campanhas. De um lado, o democrata Walter Mondale apoiou-se na fama do filme “Rocky” (1976) e aproveitou o tema “Gonna Fly Now” que, embora maioritariamente instrumental, traduz grandiosidade e inspiração. E, obviamente, era uma canção extremamente popular à época – atingiu o primeiro lugar do top Billboard em 1977. Mondale tinha duas mensagens para passar, e apostou na música para as transmitir. Por um lado, associar-se à cidade de Filadélfia, cuja música e filme recordam, e que era um ponto-chave para a sua candidatura; por outro lado, retratar Mondale como o underdog (i.e. o menos favorito) que vence a adversidade contra todas as probabilidades. A música encaixou bem nessa estratégia. Mas não chegou para tornar a sua campanha vencedora.
Ronald Reagan obteve uma vitória esmagadora (525 votos no Colégio Eleitoral, contra apenas 13 a favor de Mondale). Uma parte do sucesso da sua campanha foi associada à mensagem glorificadora dos EUA, com que a população se identificou. A sua escolha musical serviu, de resto, esse propósito – “God Bless the USA”, de Lee Greenwood. Um hino à América, num registo de música country, que no Verão desse ano estava na moda e ecoava por todo o lado. Refira-se que a estratégia de Reagan foi particularmente inovadora. Por um lado, pela primeira vez, uma canção de campanha não teve como objectivo a apresentação ou a descrição das virtudes do candidato, mas sim enaltecer todo um país, numa mensagem mais abrangente que agradou a mais franjas da população (incluindo as forças armadas) e coincidiu com a ideia de recuperação da vitalidade americana que Reagan queria fazer passar. Por outro lado, Reagan pretendeu associar-se a estrelas da música pop em eventos públicos, para promoção da sua própria popularidade. Só que, à excepção de Michael Jackson numa ocasião, todas rejeitaram. A solução que o republicano encontrou foi simples: se não as podia ter ao seu lado, falava delas e citava letras das suas canções nos discursos, deixando subentendida a sua identificação com essas estrelas da música – mesmo sem a autorização das mesmas.
O contexto da época puxava para essa identificação. Recorde-se que os anos 80 moldaram a cultura pop, principalmente na música. Surgiu a MTV, lançaram-se os grandes festivais com causas humanitárias (Live Aid, USA for Africa, Band Aid), nasceram as super estrelas da pop – Whitney Houston, U2, Madonna, Prince, Michael Jackson. E morreram outras tantas, para comoção global, mostrando o poder que os artistas musicais detinham na sociedade americana – Bob Marley, John Belushi (Blues Brothers) ou Bon Scott (AC/DC). Reagan foi o primeiro candidato à Presidência dos EUA a perceber o que estava em causa: já não bastava escolher uma canção ajustada à estratégia eleitoral, era desejável ter os artistas do seu lado, para explorar o poder da sua popularidade.
Na campanha presidencial de 1988, já tudo isso era uma evidência. A velocidade daqueles tempos era outra – o período de transmissão televisiva contínua de um discurso de um candidato passou de 42 segundos para menos de 10 segundos. Ou seja, já não havia tempo de antena nas televisões para mensagens complexas e longas. O que havia a dizer tinha de ser directo, rapidamente apreendido e orelhudo o suficiente para que os espectadores fixassem. Ora, às candidaturas pedia-se que ajustassem as suas estratégias a essa nova realidade. Mas isso não sucedeu com a devida eficácia.
As eleições presidenciais de 1988 opuseram George Bush (republicano) a Michael Dukakis (democrata). Do lado republicano, a equipa de Bush receou arriscar e optou por “This Land is Your Land”, de Woodie Guthrie, uma canção folk dos anos 40 que toda a gente sabia de cor e com uma mensagem positiva sobre igualdade de oportunidades. O objectivo era aproveitar o refrão e a familiaridade da canção para passar a mensagem com rapidez. Curiosamente, a mesma canção havia sido escolhida, em 1968, por Robert Kennedy, nas primárias do Partido Democrata (quando foi assassinado). Do lado democrata, Dukakis escolheu Neil Diamond e a sua “America” (1981), canção que atingiu o top de vendas quando foi lançada e que passava uma mensagem assumidamente patriótica – mas, prestando atenção às letras, havia ali uma ligação directa à imigração, o que tornava a escolha musical menos óbvia. Dukakis acabou derrotado com uma diferença de cerca de 7 milhões de votos.
1992–1996: Bill Clinton, o saxofonista da pop
Foi necessário esperar por 1992, e por Bill Clinton em particular, para que a revolução da cultura pop invadisse as presidenciais americanas. Primeiro, o candidato do Partido Democrata escolheu como canção oficial um single de Fleetwood Mac, lançado em 1977 (e bem sucedido comercialmente), “Don’t stop (thinking about tomorrow)”. O título e refrão serviram de slogan na campanha: não pare de pensar no amanhã. Ou seja, a conciliação entre estratégia eleitoral e escolha musical foi total: cuidar do futuro era fazer as escolhas certas – e, na perspectiva da campanha de Clinton, isso significava votar nele. Segundo, Clinton soube explorar a música para promover a sua popularidade em diversas circunstâncias. Ele, que desde jovem toca saxofone, foi convidado para o The Arsenio Hall Show e, surpreendentemente, apareceu em palco de óculos escuros e a tocar “The Heartbrake Hotel” de Elvis Presley, acompanhado pela banda residente. Para quem assistiu, foi o delírio e, há quem o defenda, foi também o momento mais marcante da campanha de Clinton, que o apresentou ao eleitorado mais jovem e às minorias. Foi, de resto, apenas a primeira aparição do género, pois Clinton não resistiu a repetir o espectáculo no “Tonight Show with Johnny Carson”, onde tocou “Summertime”. A sua popularidade explodiu.
Do lado adversário, pelo Partido Republicano, George Bush procurava a reeleição, apostando na mesma estratégia que usara em 1988: refugiou-se na música country, um género onde os republicanos recolhem apoio maioritário, e nas canções patrióticas já experimentadas – “This Land is Your Land” e “God Bless the USA”. Bush recusou adequar a sua campanha eleitoral à cultura pop e isso prejudicou-o face a um candidato que fez da modernidade uma imagem de marca. No final, a vitória de Bill Clinton foi tranquila: 69% do Colégio Eleitoral estava do seu lado.
Em 1996, Clinton recandidata-se. Depois do fracasso em reeleger Bush, seria de pensar que os republicanos revissem a sua estratégia eleitoral. Mas não. Contra Clinton, o Partido Republicano lançou Bob Dole, senador do Kansas. E a equipa que trabalhou na sua candidatura insistiu no universo da música country e, para além disso, decidiu retomar o hábito (abandonado desde os anos 1960) de reescrever as letras das canções para servirem de ode ao candidato. A canção escolhida foi “Soul Man” (1967), um grande sucesso de vendas da dupla Sam & Dave, cujas letras foram alteradas para a versão de campanha “Dole Man”. Problema (para além do óbvio mau gosto)? Um dos membros da dupla não achou graça nenhuma e tentou impedir o uso da canção. A polémica estalou e forçou os republicanos a desistirem da canção. O fiasco foi total.
Do lado democrata, não houve espaço para amadorismos. A equipa de Bill Clinton escolhera “Beginnings”, dos Chicago, para acompanhar o slogan de campanha à volta da ideia de futuro e de transição para o século XXI: o novo milénio traria um espírito de recomeço e de mudança que era necessário explorar. A banda não só autorizou como apoiou a utilização da sua canção. A eficácia da máquina de campanha de Clinton foi, mais uma vez, invejável. Nova vitória.
2000–2004: Bush, o homem da country contra o mundo
Novo milénio. O acompanhamento mediático das candidaturas tornara-se cada vez mais absorvente e às campanhas exigia-se o aprimorar de tácticas, com vista a, em diferentes palcos, cativar vários eleitorados. As sondagens anunciavam o que acabou por acontecer: uma eleição entre George W. Bush (republicano) e Al Gore (democrata) que seria discutida até ao último voto. Isso produziu duas consequências na campanha. Primeiro, temendo os riscos da inovação, ambas as candidaturas optaram por estratégias conservadoras, minimizando a probabilidade de algo correr mal. Segundo, pela primeira vez as candidaturas escolheram mais do que uma canção oficial, de modo a alargar o leque do eleitorado que se sentiria identificado com uma das escolhas – para públicos distintos, géneros musicais distintos.
Do lado republicano, George W. Bush recorreu a três canções: “We the People” de Billy Ray Cyrus, “Right Now” de Van Halen e “I won’t back down” de Tom Petty. Cada uma com uma ideia específica. A primeira, para apelar à dimensão emocional e patriótica associada ao “sonho americano”, dirigido sobretudo à classe trabalhadora. A segunda, para apontar ao futuro e atribuir ao voto uma tomada de posição para a próxima década – recorde-se, uma ideia explorada por Bill Clinton em 1996. A terceira, afirmando as capacidades de resistência e tenacidade, para descrever o candidato Bush e transmitir confiança ao eleitorado. Mas, como se havia tornado tradição nas campanhas republicanas, a selecção rapidamente gerou polémica. Desde logo, Billy Ray Cyrus havia oferecido a sua canção a ambas as candidaturas, o que foi várias vezes lembrado e justificou críticas. Mais grave foi que Tom Petty, autor de outra das canções, sempre assumira posições políticas liberais e não gostou nada de se ver associado à candidatura de Bush. Protestou e, receando a má publicidade, a equipa de Bush desistiu da sua reprodução nos eventos. A prudência nas escolhas não evitou um tiro no pé.
Do lado democrata, o candidato Al Gore recorreu a duas canções principais. A primeira foi “Let the Day Begin”, dos The Call, um grupo relativamente desconhecido do grande público. A mensagem que preenchia era dirigida à classe trabalhadora americana, procurando a identificação com todo o tipo de profissionais, desde o canalizador ao professor e ao médico, em igualdade de circunstâncias. A segunda canção, “You ain’t seen nothin’ yet” (1974) de Bachman-Turner Overdrive (BTO), foi escolhida por causa do seu título e refrão, remetendo para uma tomada de posição e elevar de expectativas face ao candidato Al Gore. Curiosamente, e contrariando a experiência das campanhas de Bill Clinton, Al Gore não recorreu a música pop que chegasse facilmente a massas e, pelo contrário, escolheu inclusive artistas menos populares. No final, perdeu a eleição para Bush, depois de contagens e recontagens de votos que arrastaram a declaração do vencedor durante uns longos 36 dias.
A derrota serviu de emenda ao Partido Democrata. Em 2004, com o candidato John Kerry a tentar travar a reeleição de George W. Bush, os democratas apostaram forte na campanha e tentaram repetir parte da estratégia vencedora de Bill Clinton, em 1992. Isso foi, desde cedo, visível na escolha das três canções que enquadraram os eventos de Kerry. Primeiro, “No Surrender” de Bruce Springsteen, o The Boss que a América idolatra e que Kerry usou para difundir a ideia de força e resistência do seu cáracter. Segundo, “Fortunate Son” de John Fogerty, o antigo líder da banda country rock Creedence Clearwater Revival. E, por fim, “Beautiful Day” dos U2, as estrelas maiores do universo pop, que ajudaram Kerry a exibir confiança no presente e no futuro. Vale a pena lembrar que, no contexto de 2004, essa mensagem positiva era particularmente importante. Com os EUA em dois palcos de guerra e desgastados com a ameaça do terrorismo, as eleições eram muito à volta da identificação do candidato que melhor conseguiria puxar os americanos para cima. Daí que a participação dos U2 na campanha do Partido Democrata fosse tão importante: a associação de Kerry à banda e ao seu vocalista Bono passava uma mensagem poderosa. Afinal, Bono é mundialmente conhecido por, através da música e da sua notoriedade, defender grandes causas humanitárias e frequentemente colocar um pé na política. E, assim, ao emprestar a sua imagem a Kerry, emprestou-lhe igualmente a sua popularidade nesse campo – uma mais-valia para a imagem do candidato.
George W. Bush, ao contrário de John Kerry, não tinha de se apresentar ao eleitorado – ele concorria à reeleição. Como tal, jogou pelo seguro e apostou (novamente) em canções de estrelas da música country: “Only in America” de Brooks & Dunn, apontada ao imaginário do sonho americano, e “Wave on Wave” de Pat Green. Sim, na Europa, estes nomes dizem-nos pouco ou nada. Mas, nos EUA, Brooks & Dunn são a dupla de maior sucesso de sempre na música country e só Simon & Garfunkel a ultrapassou em vendas. A abordagem, desta vez sem tiros no pé, foi conservadora e simples. No final, serviu o seu propósito. Bush ganhou.
2008–2012: Obama, a estrela entre as estrelas pop
As eleições presidenciais de 2008 assinalaram uma nova era na comunicação política. O Facebook, criado em 2004, ganhara um espaço próprio. E o Youtube, surgido em 2005, tornara-se uma ferramenta de comunicação indispensável. A interactividade directa com os eleitores era a nova regra. E, para as campanhas eleitorais, havia que penetrar nesses espaços de modo a, através deles, levar a sua mensagem mais longe do que alguma vez fora possível levar. Quem o percebeu imediatamente, nas primárias democratas, foi Hillary Clinton, que agora em 2016 se posiciona em bom plano para ser a próxima presidente dos EUA. A equipa de Hillary optou por pré-seleccionar um conjunto de canções e submetê-las à escolha dos apoiantes da candidatura, de modo a que a mais votada ascendesse a hino da campanha eleitoral. Entre as hipóteses, “City of Blinding Lights” dos U2, “I’m a Believer” dos Smash Mouth, “Ready to Run” das Dixie Chicks e a vencedora “You and I” de Céline Dion. A estratégia valeu críticas a Hillary, é certo, nomeadamente por ter sido seleccionada uma artista canadiana (em vez de americana). Mas, mais importante do que as críticas, a estratégia inovadora atraiu muita atenção sobre a sua candidatura – sobretudo entre os frequentadores das redes sociais.
Já se sabe, não chegou para ganhar as primárias do Partido Democrata – Barack Obama foi o escolhido pelo partido para se candidatar à Presidência. E a sua campanha, no que à conciliação entre mensagem e música diz respeito, não poderia ter sido melhor preparada. O hino principal da campanha foi retirado do reportório de Stevie Wonder, “Signed, Sealed, Delivered I’m Yours”. A mensagem era directa e simples: Obama quis mostrar que estava ali, que estava preparado e que votassem nele para ele se entregar ao trabalho. A esta canção, a equipa de Obama juntou uma série de outras que, encaixadas em vários géneros musicais, alargaram o alcance popular da sua candidatura. “City of Blinding Lights” dos U2 (que Hillary pré-seleccionara nas primárias), “The Rising” de Springsteen (que Hillary também usara pontualmente), “Think” de Aretha Franklin e “Beautiful Day” dos U2 (em que John Kerry se apoiou nas eleições de 2004).
Com este conjunto de canções, Obama passou várias mensagens e exibiu particular eficácia em dois aspectos. Primeiro, afirmou uma escolha na tradição do Motown e da herança de integração racial. Segundo, todas as canções são interpretadas por artistas ideologicamente identificados com a linha e com os valores do Partido Democrata, traçando indirectamente uma equiparação entre a popularidade dos artistas e a popularidade dos ideais do partido democrata. De resto, essa equiparação foi levada tão longe que a campanha de Obama editou um CD oficial com 18 canções (apenas vendido nos comícios e cujas receitas se destinavam a financiar a campanha), onde figuravam artistas tão variados como Kanye West, John Legend, Sheryl Crow ou Stevie Wonder – e alguns, inclusive, contribuíram com canções inéditas.
O que faltava? Gerar simpatia junto de vários tipos de eleitorado/ouvintes. E, numa entrevista à revista Rolling Stone, foi precisamente isso que Obama fez ao divulgar a playlist do seu iPod. Mais eclético era impossível: Stevie Wonder, Elton John, Rolling Stones, Sheryl Crow, Yo-Yo Ma, Bob Dylan, Miles Davis, John Coltrane, Ludacris, Jay-Z, entre outros. Nenhum público mainstream ficou de fora.
O que correu bem na gestão musical da campanha de Obama foi proporcional ao que correu mal na de John McCain pelo Partido Republicano, onde a tradição de tiros no pé se impôs. Começou na opção musical (utilizada apenas no arranque da campanha) de “Thunderstruck”, canção de grande sucesso dos AC/DC. Sim, aquele ritmo hard rock põe uma audiência a vibrar. Mas a letra da canção remete para noites loucas, repletas de condução em excesso de velocidade, de strippers, de sexo e de todo o tipo de promiscuidades que não se quer associar a um candidato presidencial. Um desastre. Depois, a sua equipa de campanha seleccionou “Johnny B. Goode”, de Chuck Perry, aproveitando o título conter o nome do candidato (John) McCain e o tema associado à concretização do sonho americano. Problema? O Johnny retratado na canção é um iletrado, o que não corresponde à imagem que um candidato quer projectar dele próprio. Outro desastre. Tentativa 3: “Raisin’ McCain”, composta por John Rich, e “McCain-Palin Tradition”, composta por Hank Williams Jr., ambas escritas propositadamente para a campanha e para o candidato. Desta vez, não havia o risco de uma letra inconveniente. Só que as canções foram forçosamente menos apelativas ao eleitorado, por lhe serem desconhecidas. Mais uma vez, os republicanos não souberam usar a música para adequadamente projectar a sua candidatura.
Em 2012, isso mudou. Para melhor. Com Mitt Romney à frente do leme da candidatura do Partido Republicano, a campanha libertou-se do monopólio do country. O hino de campanha foi entregue a “Born Free” de Kid Rock, cuja letra recupera muitos dos temas queridos à direita republicana nos EUA – a liberdade, o individualismo, a autonomia de decisão. E, no que a celebridades da música diz respeito, Romney conseguiu juntar estrelas do rock (Meat Loaf, Gene Simmons dos Kiss, Ted Nugent), do rap (Vanilla Ice) e, claro, da country. Do lado democrata, Obama, que corria para a reeleição, juntou mais estrelas da pop à lista de apoiantes – Miley Cyrus, Katy Perry, Cyndi Lauper – e apostou no apoio de Springsteen, cujo tema “We take care of our own” assumiu o protagonismo nos comícios. E, como se sabe, ganhou a eleição para o segundo mandato que, em breve, terminará.
So what: quatro notas finais sobre a música nas campanhas eleitorais dos EUA
Haveria muitos ângulos e curiosidades a destacar nesta longa história da música nas campanhas presidenciais americanas. Mas fixemos quatro ideias principais.
A primeira é que a estratégia eleitoral e as escolhas musicais variam imensamente de candidato para candidato. Bill Clinton e Barack Obama foram, de longe, aqueles que melhor usaram o poder da música a seu favor, nas suas várias dimensões (mensagem, popularidade, abrangência), porque isso se enquadrava com a sua personalidade. Outros candidatos sentiram maior dificuldade em fazê-lo precisamente porque nem o seu perfil nem a sua candidatura estavam direccionados para tal.
A segunda é que, independentemente do candidato, a proximidade de muitos artistas ao Partido Democrata facilitou sempre mais, aos seus candidatos, a conciliação entre estratégia eleitoral e escolha musical, além de permitir aos candidatos aproveitar a popularidade desses artistas para cativar eleitorado (sobretudo o mais jovem). Nesse sentido, o Partido Republicano viu-se, muitas vezes, reduzido nas suas escolhas à música country, onde efectivamente encontra maior adesão.
A terceira é que, com a afirmação das redes sociais, a tentação das campanhas foi a de alargar a sua acção a mais canções, mais artistas e mais conteúdos, de modo a que todas as franjas do eleitorado e respectivos gostos musicais ficassem cobertos. E, de resto, tornou-se cada vez mais importante ter o mundo da música do seu lado – não só em termos de apoios, mas também para travar iniciativas mediáticas contra a sua candidatura (Donald Trump que o diga).
Por fim, a quarta: por mais que se escrutine e aprecie as escolhas musicais nas campanhas das presidenciais dos EUA, nada permite ultrapassar o facto de a música não ganhar eleições. Ela é uma das variáveis em jogo, que oferece maior ou menor coesão a uma campanha eleitoral. Só isso – as coisas são como são. Mesmo que, com o evoluir da tecnologia, a música tenha um papel cada vez mais de primeira linha – sobretudo actualmente. Mas, mesmo hoje, não há milagres: uma boa playlist não salva um mau candidato.