789kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Reportagem no maior hospital pediátrico de Kiev numa altura em que estão a receber crianças que chegam feridas devido à guerra entre a Ucrânia e a Rússia. A Rússia, a mando do seu presidente, Vladimir Putin, invadiu a Ucrânia no passado dia 24 de fevereiro de 2022. Kiev, Ucrânia, 17 de março de 2022. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
i

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A primeira criança a morrer. Os órfãos traumatizados. E a ira dos médicos no Hospital Pediátrico de Kiev

As histórias das crianças vítimas de rockets e disparos em Kiev. Os médicos que passaram a dormir no hospital para as tentar salvar. E o cirurgião que queria matar Putin com as suas próprias mãos.

Reportagem dos enviados especiais do Observador a Kiev

Ao terceiro dia desta guerra, os médicos do hospital pediátrico de Kiev foram avisados de que estava a caminho das urgências um menino de 6 anos em estado muito grave. Seguia no carro com os pais e com as irmãs, possivelmente a tentar sair da capital, quando foi atingido por fragmentos de uma bomba. No pescoço, na coluna e na cabeça.

Entrou nas urgências já em coma, com uma hemorragia que não parava. “Foi registado no nosso departamento como ‘doente sem nome número 1’”, recorda ao Observador o diretor de neurocirurgia, Pavlo Plavskyi.

Os médicos conseguiram reanimá-lo. Foi submetido a três intervenções cirúrgicas. Mas passado três dias não resistiu a um edema cerebral e morreu. Foi a primeira criança a perder a vida (e única até agora) no maior hospital pediátrico da Ucrânia, desde que começou esta guerra.

“Os doentes acordam confusos e estupefactos, a tentar perceber como é que um míssil entrou nas vidas deles. Isto provoca um grande trauma psicológico, que os vai acompanhar no resto das suas vidas”.
Yurii Dmytruk, cirurgião ortopédico do Hospital Pediátrico de Kiev

“O nosso dia mais duro foi quando morreu esta criança”, admite o diretor clínico do hospital, o microcirurgião Valery Bovkun. “Foi logo no início da guerra e foi chocante. Agora já nos estamos a habituar, faz parte do novo normal”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Pavlo, o diretor de neurocirurgia que acompanhou o caso, também ficou emocionalmente abalado: “Antes da guerra, havia sempre uma pergunta difícil de responder: porque é que um bebé tem um tumor cerebral? Agora a questão é ainda mais difícil: porque é que um menino que segue sentado num carro porque a tia acha que devem fugir morre, por causa de uma decisão [de Putin] tomada por razões inacreditáveis? E sem ter culpa de nada: é só um rapaz. Se um doente tem um tumor, tentamos fazer tudo para o salvar. Se tem um ferimento grave, também tentamos fazer tudo. Mas claro que fico mais zangado por ser provocado por uma guerra.”

Reportagem no maior hospital pediátrico de Kiev numa altura em que estão a receber crianças que chegam feridas devido à guerra entre a Ucrânia e a Rússia. A Rússia, a mando do seu presidente, Vladimir Putin, invadiu a Ucrânia no passado dia 24 de fevereiro de 2022. Kiev, Ucrânia, 17 de março de 2022. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A dificuldade de fazer chegar ao hospital as crianças feridas. E os desenhos com corações

Segundo as autoridades ucranianas, morreram 103 crianças desde que a Rússia começou a guerra há três semanas. Muitas das crianças feridas com gravidade nem sequer conseguem chegar ao hospital com vida, devido à dificuldade de circulação provocada pela perigosidade dos confrontos e dos disparos de rockets, pelo recolher obrigatório e pelos checkpoints constantes em todo o país. “Algumas pessoas pedem ajuda urgente por as crianças terem ferimentos, mas não conseguem vir até ao hospital. Ligamos pouco depois e respondem: ‘Desculpa, o bebé morreu.’ Temos tantas chamadas assim…”, revolta-se o diretor do hospital, Vladimir Zhovnir.

A última chamada deste género foi feita para o diretor de neurocirurgia: pedia auxílio para socorrer duas crianças atingidas e que teriam ficado com traumatismos cranianos, a 50 km do hospital. “Passado 50 minutos soube que uma das crianças morreu mesmo antes de chegar a ambulância. O outro doente não pôde ser trazido para aqui, por já ser de noite e haver bombardeamentos. Trazer as crianças feridas até ao hospital em segurança é o maior problema.”

Até esta quinta-feira tinham dado entrada no Hospital Pediátrico de Kiev 15 crianças com ferimentos provocados diretamente pela guerra. “Não foram mais porque muitas conseguiram fugir com as famílias”, justifica Valery Bovkun, o diretor clínico.

Yurii Dmytruk, cirurgião ortopédico, não vai esquecer a mãe e a filha que estavam a tentar fugir para chegar à estrada que as ia levar a Odessa quando foram apanhadas por um bombardeamento. Os destroços de um míssil atingiram-nas nas pernas. Estão vivas, mas continuam internadas e a recuperação vai ser difícil.

Reportagem no maior hospital pediátrico de Kiev numa altura em que estão a receber crianças que chegam feridas devido à guerra entre a Ucrânia e a Rússia. A Rússia, a mando do seu presidente, Vladimir Putin, invadiu a Ucrânia no passado dia 24 de fevereiro de 2022. Kiev, Ucrânia, 17 de março de 2022. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR Reportagem no maior hospital pediátrico de Kiev numa altura em que estão a receber crianças que chegam feridas devido à guerra entre a Ucrânia e a Rússia. A Rússia, a mando do seu presidente, Vladimir Putin, invadiu a Ucrânia no passado dia 24 de fevereiro de 2022. Kiev, Ucrânia, 17 de março de 2022. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Vladimir Zhovnir, diretor do Hospital Pediátrico de Kiev. E o cirurgião ortopédico Yurii Dmytruk

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Os doentes acordam confusos e estupefactos, a tentar perceber como é que um míssil entrou nas vidas deles”, conta Yurii. “Isto provoca um grande trauma psicológico, que os vai acompanhar no resto das suas vidas”.

E o diretor do hospital fala em crianças que perderam os olhos e o nariz, mas o caso que mais o emocionou foi o de uma menina de 6 anos que viu morrer a mãe quando um míssil atingiu a sua casa. A criança sobreviveu com ferimentos e agora, no hospital, todos os dias desenha um coração dedicado à mãe. Com nuvens por cima.

Vova, 13 anos, viu morrer o pai e já foi submetido a três cirurgias

Tem um curativo que lhe cobre quase toda a parte esquerda do rosto. Está sentado na cama a jogar no telemóvel, com um carregador portátil, sumos e um rato de peluche. Vova, um rapaz de 13 anos, é mais um dos jovens sobreviventes da guerra aqui internados.

Seguia de carro para a estação de comboios de Kiev no dia 26 de fevereiro, juntamente com os pais, a tia, uma irmã, um amigo da mãe, o cão e o gato da família. Apesar do recolher obrigatório, passaram dois checkpoints, mas ao terceiro começou um tiroteio que crivou o carro de balas e atingiu todos os ocupantes.

O pai morreu logo no local. Vova foi transportado de urgência para o hospital com ferimentos no pescoço, na coluna e numa perna. Já foi submetido a três cirurgias, restauraram-lhe a dentição, mas ainda não conseguiu voltar a andar.

Reportagem no maior hospital pediátrico de Kiev numa altura em que estão a receber crianças que chegam feridas devido à guerra entre a Ucrânia e a Rússia. A Rússia, a mando do seu presidente, Vladimir Putin, invadiu a Ucrânia no passado dia 24 de fevereiro de 2022. Kiev, Ucrânia, 17 de março de 2022. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR Reportagem no maior hospital pediátrico de Kiev numa altura em que estão a receber crianças que chegam feridas devido à guerra entre a Ucrânia e a Rússia. A Rússia, a mando do seu presidente, Vladimir Putin, invadiu a Ucrânia no passado dia 24 de fevereiro de 2022. Kiev, Ucrânia, 17 de março de 2022. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Vova, 13 anos, viu o pai morrer num tiroteio quando seguiam de carro para tentar chegar à estação de Kiev

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Além da presença da mãe e do acompanhamento médico regular, Vova tem apoio psicológico. E recebe visitas frequentes dos voluntários que fazem de “doutores palhaços” no Hospital Pediátrico de Kiev.

Já se habituou entretanto às sirenes que ecoam em média dez vezes por dia: “Atenção, alerta: ataque aéreo”. Quando surge este aviso pelos altifalantes, todos os doentes e pessoal devem afastar-se das janelas e, se possível, ir para o corredor.

A retirada de 500 doentes para outros hospitais na Ucrânia e no resto da Europa

Na primeira manhã depois do início da guerra, viveram-se aqui momentos muito conturbados: muitos médicos tiveram de ir pôr as famílias a salvo, antes de voltarem ao serviço; muitos doentes procuraram formas de sair das instalações; e a segurança aconselharia a que fossem todos transferidos para o bunker subterrâneo, mas nalguns casos era difícil criar condições para continuarem a receber medicação e suporte básico de vida fora das enfermarias. Havia ainda alguns imunodeprimidos, com poucas defesas, que não podiam ser colocados junto dos outros doentes, a tão curta distância, sem pôr em risco a própria vida.

Nos primeiros dias, enquanto se tentava resolver esses problemas mais urgentes, parte dos 600 doentes era transferida para o abrigo durante a noite, juntamente com o staff, para ter mais garantias de proteção — ainda esta quarta-feira vários vidros do hospital foram estilhaçados, na sequência de um bombardeamento muito próximo.

“Só Bla Bla Bla e mais nada. Têm medo de Putin. Só os pequenos uicranianos não têm medo e estão a  lutar contra Putin. Por isso peço a Portugal e a outros países: não tenham medo de Putin. Parem a Rússia de Putin em tudo. Parem os meios de comunicação dele. Parem o comércio dele. Apliquem embargo ao petróleo dele. Façam tudo contra a Rússia de Putin. Todos os que colaboram com ele estão a matar pessoas inocentes aqui. A seguir pode ser a Polónia, a Alemanha ou Portugal.”
Vladimir Zhovnir, diretor do Hospital Pediátrico de Kiev

Esta quinta-feira, o próprio diretor do hospital ajudou a transportar malas dos últimos doentes que foram transferidos para outros hospitais em Lviv ou noutros países. “O nome do nosso hospital é Okhmadyt. Significa Mãe e filhos seguros. Costuma ser o sítio mais pacífico da Ucrânia. Agora temos a guerra e pode ver os doentes e famílias a serem retiradas para o oeste da Ucrânia, e alguns para outros países. Porque em todo o lado temos bombas, rockets e tiroteios”, justifica Vladimir Zhovnir.

Dos 600 doentes internados antes do início da invasão, sobram agora apenas cem, que estão em situação mais crítica. Evita-se assim o risco de os outros 500 doentes entretanto retirados serem atingidos por um bombardeamento aqui. E cria-se espaço para um expectável crescimento de emergências resultante do agravamento da violência. A retirada dos doentes ajuda a explicar a aparente tranquilidade que se vive para já nos corredores do hospital da capital de um país em guerra.

Reportagem no maior hospital pediátrico de Kiev numa altura em que estão a receber crianças que chegam feridas devido à guerra entre a Ucrânia e a Rússia. A Rússia, a mando do seu presidente, Vladimir Putin, invadiu a Ucrânia no passado dia 24 de fevereiro de 2022. Kiev, Ucrânia, 17 de março de 2022. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A ira dos médicos ucranianos contra os russos em geral e contra Putin em particular

“O nosso hospital não precisa de médicos, nem de medicamentos, nem de dinheiro. Só precisa de paz”, revolta-se o diretor. “Queremos tratar crianças com doenças normais de crianças. Não com ferimentos de rockets ou balas. Preferimos assegurar tratamentos oncológicos do que tratar ferimentos de balas”.

Vladimir Zhovnir acusa a comunidade internacional de “cobardia”: “Só Bla Bla Bla e mais nada. Têm medo de Putin. Só os pequenos ucranianos não têm medo e estão a lutar contra Putin. Por isso peço a Portugal e a outros países: não tenham medo de Putin. Parem a Rússia de Putin em tudo. Parem os meios de comunicação dele. Parem o comércio dele. Apliquem embargo ao petróleo dele. Façam tudo contra a Rússia de Putin. Todos os que colaboram com ele estão a matar pessoas inocentes aqui. A seguir pode ser a Polónia, a Alemanha ou Portugal.”

A ira contra o ditador russo é um sentimento comum a vários médicos ouvidos pelo Observador. Muitos colocaram as famílias a salvo fora de Kiev ou mesmo no estrangeiro. Foi o caso do diretor de neurocirurgia: nos primeiros cinco dias levou a família para o hospital, com o cão e o gato, para evitar que ficassem em casa, num piso muito elevado junto à estação, o que é barulhento e mais perigoso. Depois enviou a mulher e a filha para a Alemanha de comboio. Agora vive todos os dias no hospital, onde se sente mais seguro. E evita correr o risco de ser preciso de urgência e não conseguir chegar, por causa do recolher obrigatório.

Pavlo Plavskyi é também membro da direção da Sociedade Europeia de Neurocirurgia Pediátrica e tinha contactos com alguns médicos russos da mesma especialidade. Um deles enviou-lhe uma mensagem a dizer que vai haver paz. Nem lhe respondeu. ”Não quero falar com eles. Porque os russos estão sentados em casa, a pensar que vai tudo ficar bem. Não estão como nós.”

Reportagem no maior hospital pediátrico de Kiev numa altura em que estão a receber crianças que chegam feridas devido à guerra entre a Ucrânia e a Rússia. A Rússia, a mando do seu presidente, Vladimir Putin, invadiu a Ucrânia no passado dia 24 de fevereiro de 2022. Kiev, Ucrânia, 17 de março de 2022. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR Reportagem no maior hospital pediátrico de Kiev numa altura em que estão a receber crianças que chegam feridas devido à guerra entre a Ucrânia e a Rússia. A Rússia, a mando do seu presidente, Vladimir Putin, invadiu a Ucrânia no passado dia 24 de fevereiro de 2022. Kiev, Ucrânia, 17 de março de 2022. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O cirurgião maxilo-facial Anatoly Timoschenko. E o diretor de Neurocirurgia Pavlo Plavskyi

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O neurocirurgião já perguntou a si próprio o que faria se um soldado russo necessitasse dos seus cuidados de saúde: “Tratarei, porque sou médico. Mas farei tudo para o enviar para outro hospital assim que já não correr risco de vida.”

A ira máxima é destinada a Vladimir Putin. O cirurgião maxilo-facial Anatoly Timoschenko tratou pelo menos cinco crianças com ferimentos graves no rosto, mas não tem grande vontade de falar desses doentes: “Para abreviar, preferia matar Putin pelas minhas próprias mãos.” O diretor clínico Valery Bovkun não iria tão longe se tivesse de prestar cuidados médicos ao líder do inimigo: “Tratamos dele, mas vamos deixá-lo só com um dente — o que vai doer.”

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

Uma parceria com:

Fundação Luso-Americana Para o Desenvolvimento Hospital da Luz

Com a colaboração de:

Ordem dos Médicos Ordem dos Psicólogos
Assine por 19,74€

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine por 19,74€

Apoie o jornalismo independente

Assinar agora