Pep Guardiola defende que é “o melhor médio do mundo, de longe”. Luis de la Fuente chama-lhe “o computador perfeito”. Os adversários dizem que é “um Rolls Royce”, os colegas de equipa queriam que fosse eleito o melhor do mundo. Esta segunda-feira, Rodri ganhou a Bola de Ouro e fez um favor a todos aqueles que o apoiavam sem que ele precisasse de dizer uma palavra.
Aos 28 anos e numa temporada onde não vai voltar a jogar, depois de se ter lesionado no joelho há cerca de um mês, Rodri foi considerado o melhor jogador do mundo numa cerimónia envolta em polémica – e boicotada pelo Real Madrid, que não se fez representar no Théâtre du Châtelet, em Paris, quando percebeu que Vinícius Júnior não seria o protagonista da noite.
O médio espanhol, que começou a carreira no Villarreal e fez uma temporada no Atl. Madrid antes de seduzir Pep Guardiola, vê assim coroada uma temporada em que conquistou a Premier League e a Taça de Inglaterra com o Manchester City e ainda venceu o Euro 2024 com Espanha. Para trás fica a residência universitária onde vivia quando se estreou na La Liga, o Opel Corsa que conduzia para os treinos e a licenciatura em Gestão de Empresas; para a frente fica a ideia de que voltará ainda mais forte.
De dia, estudava na universidade e vivia na residência. À noite, jogava na La Liga
Rodri, que é naturalmente o diminutivo de Rodrigo Hernández Cascante, nasceu em junho de 1996 em Madrid. Aos seis anos já estava a entrar na formação no Rayo Majadahonda, o clube que ficava mais perto da casa da família, e aos 11 chamou a atenção do Atl. Madrid. Acabou por ser dispensado anos depois por “falta de força física” – algo que hoje em dia até parece uma piada de mau gosto.
Tal como já explicou várias vezes, Rodri é quase sempre o elemento mais “normal” do balneário. E foi precisamente em busca dessa normalidade que, ao longo da adolescência, fez um acordo tácito com os pais: se quisesse mesmo perseguir o sonho do futebol, se quisesse mesmo ser jogador profissional, nunca poderia abandonar os estudos. E foi para agradar aos dois lados, tanto ao próprio desejo como à exigência familiar, que se inscreveu na Universidade Jaume I quando deixou Madrid para integrar a formação do Villarreal.
Começou por ficar nas instalações da Academia do clube, mas quando completou 18 anos acabou por decidir mudar-se para a residência oficial da universidade. Estudava Gestão de Empresas e entre as aulas de contabilidade e o estudo para os exames colocava os treinos, os jogos fora e em casa e a ideia clara de que a licenciatura servia apenas para deixar os pais descansados.
“À noite tinha muita graça, porque estamos a falar da universidade. À sexta-feira à noite toda a gente vai sair. Mas antes fazem o ‘pré jogo’, como se diz nos EUA. Ficam nos quartos minúsculos a ouvir música e a beber umas cervejas, 20 pessoas dentro de um quarto, uns sentados na cama, outros no chão, por todo o lado. Eu era como qualquer outro, eles nem sabiam que eu jogava futebol, e aparecia com a minha água com gás até ser hora de eles irem para as discotecas. Depois desaparecia”, contou o internacional espanhol ao The Players’ Tribune, recordando o tempo em que ainda atuava na equipa B do Villarreal.
Começou por fazer os quinze minutos entre a residência e o centro de treinos de bicicleta, com uma curta viagem de elétrico pelo meio, mas conseguiu poupar três mil euros para comprar um Opel Corsa que acabou por facilitar-lhe a vida. Estreou-se pela equipa principal do Villarreal em dezembro de 2015, numa vitória contra o Huesca na Taça do Rei e com apenas 19 anos, e quatro meses depois já estava a atuar na La Liga contra o Rayo Vallecano. Tudo enquanto ainda estudava e vivia na residência universitária.
Conheceu a namorada de sempre na universidade, Laura, e garante que foi a relação que ainda mantém que o ajudou a ter sempre os pés bem assentes na terra. “Aqueles foram os anos mais divertidos da minha vida. Não sei porquê, mas quando voltava à universidade o meu cérebro ‘mudava’ para o meu outro mundo. A escola colocava a pressão do futebol em perspetiva. Conheci a minha namorada na residência, ela estava a estudar Medicina. E não queria saber das minhas pressões, não queria ouvir nada sobre um empate contra o Celta Vigo. Manteve sempre os meus pés no chão. Dizia-me para ter calma, porque era só futebol”, acrescentou Rodri.
Esteve três temporadas no Villarreal, somando 84 jogos e dois golos, e não esquece uma noite em que se concentrou tanto a estudar para um exame que deixou o telemóvel de lado e não se lembrou de que jogava contra o Valencia daí a umas horas. Foi sozinho para a concentração da equipa, porque já não apanhou o autocarro a tempo, e garante que foi nesse dia que aprendeu o que é ser “um profissional”. “Não apenas um jogador de futebol, mas um profissional. Aprendi através do erro. Uma nova peça do puzzle”, indica.
Como tantas vezes acontece, o passado que outrora não o quis bateu-lhe à porta. À beira do verão de 2018, o Atl. Madrid pagou cerca de 20 milhões do Villarreal e resgatou-o cerca de cinco anos depois de o ter dispensado por algo que agora era uma das suas principais características.
As lições com Diego Simeone e o match perfeito com Pep Guardiola
Ainda assim, esteve apenas um ano no Atl. Madrid. 47 jogos e três golos, assim como a conquista de uma Supertaça Europeia, foram mais do que suficientes para o elevar ao estatuto de um dos melhores médios do mundo. Mas Rodri, que é um daqueles jogadores que absorve todo o conhecimento que o rodeia, não esquece o que aprendeu com Diego Simeone.
“Foi no Atl. Madrid que percebi o que realmente significa ser competitivo. Quando estava no Villarreal era muito bom com a bola nos pés, mas continuava a ser algo macio. Com Diego Simeone aprendi o que significa ser o vilão. Ser um canalha dentro de campo. Fazer desarmes a sério. Fazer com que a outra equipa se sinta miserável durante 90 minutos. Essa peça do puzzle também foi importante”, explicou o jogador de 28 anos, que trocou os colchoneros pelo Manchester City de Pep Guardiola no verão de 2019.
Custou mais de 60 milhões de euros aos citizens, algo que na altura foi uma transferência recorde para o clube inglês, e entrou num balneário onde estavam Fernandinho, David Silva, Kevin De Bruyne, Sergio Agüero. Pelo meio, depois de representar praticamente todos os escalões das camadas jovens, já se tinha estreado por Espanha, cumprindo a primeira internacionalização pela mão de Julen Lopetegui num particular contra a Alemanha.
Não demorou muito a tornar-se crucial para Pep Guardiola, participando em mais de 50 jogos logo na temporada de estreia, e lembra-se de ter chegado a Inglaterra já com a noção de que iria subir vários níveis de exigência depois de ter perguntado a Sergio Busquets como é que o treinador catalão trabalhava. Ainda assim, e apesar de já estar muito longe da residência universitária onde conheceu a namorada, não deixava de ser o Rodri de Madrid – e mantinha os hábitos que provocavam gargalhadas de Agüero ou Otamendi.
“Eles gozavam comigo a toda a hora. Não só pela minha roupa, mas porque eu ligava à minha namorada sempre que entrava no autocarro depois de cada jogo. Sou jogador de futebol, ela é médica, estamos habituados a ter uma relação à distância. Ligava-lhe depois de todos os jogos, fosse uma vitória ou uma derrota. Não tinha filtros. Na primeira vez, o Agüero e o Otamendi puxaram-me à parte e disseram ‘mano, não podes falar assim no autocarro, o Pep ouve-te, toda a gente te ouve!’. Mas eu ligava depois de todos os jogos. Sem filtros”, recordou.
A superioridade doméstica que o Manchester City vive há várias épocas, assim como a capacidade de chegar perto de todas as grandes decisões, tornou ainda mais difícil a derrota na final da Liga dos Campeões de 2021. A equipa de Pep Guardiola perdeu com o Chelsea graças a um golo solitário de Kai Havertz e falhou a primeira oportunidade de conquistar o troféu que o museu ainda não tinha — e Rodri pegou na desilusão daquela noite no Estádio do Dragão para se motivar para uma noite bem diferente, dois anos depois, em Istambul.
“Está aqui. O que é que eu faço?
Remata forte — booomba,
Ok, calma. Provavelmente vais ter uma oportunidade durante o jogo todo.
Acerta na baliza.
Estás no jardim.
Atira à baliza.
Está aqui. Atira.”
Aos 68 minutos da final da Liga dos Campeões contra o Inter Milão, Rodri aproveitou um cruzamento de Bernardo Silva e não deu hipótese a André Onana. Carimbou ali a conquista do troféu mais importante do Manchester City, inscrevendo o próprio nome na história do clube inglês, e não tem vergonha de revelar que uma das coisas que lhe passou pela cabeça durante os microssegundos em que decidiu rematar foi “booomba“. Dias depois, foi considerado o melhor jogador da temporada na Liga dos Campeões.
A glória do Euro 2024 e uma lesão quase profética
Um ano depois da noite história de Istambul, na sequência de uma temporada em que o Manchester City voltou a conquistar a Premier League mas não foi além das meias-finais da Liga dos Campeões, Rodri tinha um novo desafio pela frente. Apesar de já ter estado no Euro 2020 e no Mundial 2022, surgia no Euro 2024 como um dos verdadeiros líderes de uma Espanha comandada por Luis de la Fuente que tinha toda a ambição de voltar a ser campeã europeia.
Participou em seis dos sete jogos, abriu a goleada contra a Geórgia nos oitavos de final e foi um elemento crucial na caminhada espanhola até à conquista do Campeonato da Europa, acabando por ser eleito o melhor jogador da competição. Na cabeça, porém, só tinha o momento em que teve de assistir à final do Mundial 2010, que Espanha venceu contra os Países Baixos, num pequeno monitor de computador portátil enquanto participava num campo de férias no Connecticut, nos Estados Unidos.
“Percebes que deixaste feliz um país inteiro, não apenas uma cidade. Pessoas tão diferentes, gerações tão diferentes. Uma nova geração inteira, a experienciar aquela alegria pela primeira vez. Quantos desses miúdos é que correram como loucos na noite em que o Lamine marcou contra França? Ou quando o Mikel marcou na final contra Inglaterra? Milhares. Milhões”, sublinha.
A conquista do Euro 2024, assim como o estatuto de imprescindível para Pep Guardiola no Manchester City, deixava Rodri à porta da Bola de Ouro. Ainda assim, mal terminou o Campeonato da Europa e arrancou a nova temporada, depressa se percebeu que a batalha do médio espanhol, pelo menos a curto-médio prazo, seria outra.
“Acho que estamos a aproximar-nos desse cenário, de uma greve de jogadores. É fácil perceber que é uma coisa generalizada, podem perguntar a qualquer jogador que todos irão dizer o mesmo. Se tudo continuar assim, vamos chegar a um momento em que não teremos outra opção. Mas vamos ver”, disse Rodri ainda em setembro, na antecâmara do primeiro jogo da Liga dos Campeões, já depois de Alisson e Koundé terem discursos semelhantes nas respetivas conferências de imprensa. Dias depois, no empate contra o Arsenal, rompeu o ligamento cruzado anterior do joelho e soube desde logo que não voltará a jogar na atual temporada.
De forma algo anacrónica, alguém que não vai pisar os relvados durante toda a época que ainda agora começou subiu esta segunda-feira ao palco do Théâtre du Châtelet, em Paris, para receber a Bola de Ouro. Rodri, o miúdo que escolheu o futebol para sonhar enquanto os pais o faziam estudar, é o melhor jogador do mundo.