Pedro Nuno Santos tem vindo a tentar moderar o rótulo de esquerdista, substituindo-o agora, na moção que entregou esta quinta-feira, pela “social-democracia moderna”. Em 2004, na sua primeira moção, José Sócrates, vindo da ala moderada do PS, tentava não assustar socialistas, garantindo a via da esquerda, mas uma “esquerda moderna”. A adjetivação é a mesma e a urgência do apelo ao centro (onde se jogam as vitórias eleitorais) também. E no caso de Pedro Nuno resulta numa moção a tentar encaixar tudo ao mesmo tempo: a fidelidade com compromissos internacionais e o PCP; a estabilização das leis laborais e o BE; a devolução de tempo de carreiras congelado a professores e uma dívida reduzida (ainda que sem obsessões).

Logo à cabeça do texto da moção que leva ao Congresso do PS (“Seis missões para um Portugal Inteiro”) e que foi entregue esta manhã na sede nacional do PS, Pedro Nuno Santos compromete-se com um “PS de continuidade e de renovação“. A defesa do legado de António Costa está lá e encabeça cada capítulo desta moção, com um enquadramento elogioso das políticas seguidas e o aproveitamento dos resultados alcançados nestes oitos anos de governação socialista. A valorização do que vem dessa era começa na memória da geringonça, “uma alteração histórica na relação de forças políticas” no país que “não limitou a atuação do PS”, argumenta para os seus adversários (sobretudo dentro do partido, José Luís Carneiro) que colocam a sua vontade de reeditar os acordos de esquerda como ameaçadores da autonomia do PS. “Este é um legado do ciclo de liderança de António Costa que deve ser protegido“, conclui.

Para esses até argumenta com a centralidade que o partido ganhou com essa experiência: “Garantiu-lhe, sim, o lugar de partido central no sistema político e na defesa da maior construção coletiva da nossa democracia, o Estado Social”. E assume, na moção, os compromissos que a frente que o ataca diz que podem estar em risco com uma nova geringonça, sobretudo quando há uma guerra na Europa: com a NATO e com a União Europeia. Promete dar “continuidade à linha de política externa que o partido ajudou a definir após o 25 de Abril, e que inseriu Portugal simultaneamente no espaço europeu e no espaço atlantico“, referindo mesmo, em matéria de defesa, a “responsabilidade” do país contribuir “não só para a defesa do seu território, mas também para a segurança e defesa dos países da UE e dos seus parceiros na NATO”.

Depois, afirma também de forma clara que o PS “honrará a sua vocação de partido pró-europeu e empenhar-se-á, com os seus congéneres europeus, em apresentar pessoas e ideias que permitam prosseguir o caminho rumo a uma Europa mais inclusiva, solidária, sustentável, num ambiente internacional imprevisível e de constante mudança.” Mais adiante, já no capítulo da política orçamental que pretende seguir, Pedro Nuno Santos celebra a saída do país do procedimento de défice excessivo, uma sanção europeia, conseguida através da “redução da dívida pública (de 131% do PIB para 103% em 2023)”, sublinha, reconhecendo que isso “melhorou significativamente a imagem extrena do país, traduzida em várias subidas de rating da República” — uma métrica que sempre irritou o PS (na era Passos) mas que agora serve os seus interesses.

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E Pedro Nuno Santos tem um interesse ainda maior nesta narrativa. Depois de ter ficado cunhado como o radical “jovem turco” que, em 2011, pedia que o país não pagasse a dívida, tem agora um trilho novo a aprofundar: a defesa das contas públicas controladas, incluindo a dívida. Embora Pedro Nuno queira que isso seja feito através de um “novo equilíbrio entre a redução da dívida e o investimento público e o estímulo à economia”.

“A estratégia de descida da dívida é essencial, mas ela não pode ser vista como uma prioridade isolada”, afirma a dada altura deste mesmo capítulo. “Necessita sempre de ser avaliada e ponderada face a outros objetivos e necessidades que o país enfrenta”, continua, avisando que “uma política de excedentes orçamentais acelera a redução da dívida pública, mas pode reduzir excessivamente o espaço orçamental que o governo precisa para fazer o investimento público em infraestruturas e em serviços públicos e para apoiar as famílias e as empresas”. No curto tempo de comentador televisivo já tinha deixado esta mesma crítica ao Orçamento do Estado para 2024 — o mesmo que agora diz que tenciona cumprir tal como está, depois de o ter aprovado na última quarta-feira.

OE para 2024 “continuará a ser executado a partir de março”, garante Pedro Nuno Santos

Foi também nessa fase recente da sua vida que fez saber que um dos usos para o excedente deveria ser a recuperação do tempo de serviço congelado em carreiras da Administração Pública, nomeadamente os professores. Esta semana, na votação do OE para 2024, apresentou uma declaração de voto a dizer que só votava contra a proposta do PSD, que defendia a recuperação integral desse tempo, por causa da disciplina de voto. Agora consuma na sua moção a “recuperação faseada do tempo de serviço congelado” das carreiras da Administração Pública. Nesta área defende também a “simplificação dos procedimentos de recrutamento, pela capacitação contínua e pelo desbloquear das pré-reformas voluntárias como forma de rejuvenescer os trabalhadores públicos”.

Esta é uma franja de eleitorado decisiva e que a história não muito distante do partido conta como pode tornar-se decisiva, com Sócrates a não conseguir repetir a maioria absoluta em 2009 depois de fortes manifestações e oposição da classe ao modelo de avaliação que criou. Os últimos anos de Costa foram também especialmente tensos com os professores e a a luta pela recuperação dos 6 anos e 6 meses de tempo de serviço congelado esteve, em certa medida, no centro dessa contestação.

Não mexer na lei que fez travou a renovação da geringonça

No mercado laboral, o candidato socialista assume um “compromisso muito forte com a completa implementação da Agenda do Trabalho Digno e com o permanente diálogo com os parceiros sociais no sentido de identificar e corrigir os desequilíbrios do mercado de trabalho”.

Já quanto a novas mexidas, uma reivindicação à esquerda que até esteve no fim da geringonça, o candidato socialista que esteve no meio desse furacão, mantém a linha de António Costa (e de Bruxelas, avessa a recuos nesta área). “É preciso evitar a tentação de fazer alterações sucessivas à legislação”, afirma na sua moção num capítulo sensível para a solução de apoio parlamentar que defende. Afinal, em 2019, os acordos não foram reeditados precisamente por causa da recusa do PS em retirar algumas das últimas marcas da troika da legislação laboral e por Costa ter avançado com o alargamento do período experimental e dos contratos de muito curta duração e ainda por causa da questão da caducidade da contratação coletiva — cara aos comunistas.

Na altura, a então líder do BE, Catarina Martins, disse que o acordo não se tinha repetido devido à “indisponibilidade do PS para qualquer mexida na legislação laboral”. E a sua sucessora Mariana Mortágua fica agora a saber que não contará com Pedro Nuno nesta matéria, já que o candidato diz que foram feitas “reformas importantes” na  legislação laboral, “mas é preciso garantir que a lei é cumprida”. Reduz o que há a fazer ao “reforço dos meios da inspeção do trabalho, tanto do ponto de vista dos meios humanos, como da modernização da atividade inspetiva”.

Quanto a salários, o PS de Pedro Nuno continua a defender o caminho do aumento do salário mínimo nacional “numa perspetiva plurianual”, ainda que não se comprometa com metas concretas para cada um dos anos da legislatura que aí vem — há muita coisa que o candidato remete para um posterior programa eleitoral.

Já nas pensões, também admite — tal como o seu adversário no PS e o seu adversário no país — alterações ao Complemento Solidário para Idosos. No caso, aproxima-se de José Luís Carneiro e, tal como ele, diz que “importa rever os critérios de acesso ao Complemento Solidário para Idosos, numa perspetiva de cidadania e emancipação, reconhecendo de modo pleno o direito individual de acesso” — a atribuição está depende de condição de recursos onde pesa o rendimento dos filhos.

Em matéria de impostos, há um reconhecimento do aumento da carga fiscal. E ainda que explique — tal como o Govenro tem sempre feito — que é “mais influenciado pelo crescimento das contribuições sociais (que cresceram 53%, fruto do aumento do emprego) do que dos impostos diretos (cresceram 33%) ou dos indiretos (cresceram 39%)”, também diz que é preciso mudar alguma coisa. E aponta para os impostos indiretos, referindo que é essa “que mais impacta no rendimento disponível das famílias com mais baixos rendimentos. Ao mesmo tempo, devem ser encontrar formas de reduzir a fatura fiscal da energia, de modo a combater a pobreza energética, acrescenta ainda nesta área.

Na habitação, área que tutelou e onde tem hoje como ministra uma das figuras mais próximas de si (Marina Gonçalves), Pedro Nuno surge a defender que se aumente a oferta pública. Reconhece o que foi feito — e pelo qual também responde — mas diz que esse “esforço” “não se pode nem limitar nem no tempo nem no quadro de investimento do PRR”. “O investimento na requalificação, no alargamento e na diversificação do parque público deve ser um desígnio duradouro”, defende.

Transformar tecido produtivo, ter nova estratégia para as empresas públicas. E nada da “cicatriz” TAP

A mudança mais estrutural que propõe é na abordagem económica, que aposta na “transformação do perfil produtivo da economia nacional“. É através desta mudança que, diz, vai ser possível “pagar salários mais elevados e ter capacidade para oferecer oportunidades atrativas para os jovens qualificados”.

Pedro Nuno Santos defende que o país só escapará à “chamada armadilha dos países de rendimento intermédio” se “intensificar a sofisticação e complexidade dos bens e serviços produzidos”. Ainda que elogie que as exportações tenham chegado a metade do PIB, diz que “é necessário que elas ganhem uma maior intensidade tecnológica”. É isso que vai permitir às empresas nacionais “competir com concorrentes que produzem bens e serviços mais sofisticados, de tirar proveito das oportunidades criadas pelo avanço tecnológico, de aumentar os níveis de produtividade, e de pagar melhores salários”. Esta “transição”, como lhe chama, “dificilmente será conseguida sem uma intervenção pública mobilizadora”.

E uma das principais responsabilidades que coloca nas mãos do Estado, nesta frente, é o investimento em infraestruturas, uma área que conhece bem já que foi ministro até ao início deste ano. “O país carece de investimento em todos os modos de transporte: ferroviário, rodoviário, marítimo-portuário e aeroportuário”, refere o texto da moção que defende como “necessário manter um ritmo crescente e previsível de investimento, sem quebras abruptas”. Propõe mesmo uma “nova estratégia para as empresas públicas“, na coordenação do investimento e construção de clusters industriais, com um regime jurídico diferente do que foi “criado em 2013 durante o programa da troika introduziu um regime apertado de controlo financeiro sobre as empresas públicas.”

Não há mais referências à relação do Estado com as empresas, nomeadamente em empresas renacionalizadas e cuja privatização está pendente, caso da famigerada TAP. É o calcanhar de Aquiles do seu tempo de governação, quer pelo polémico processo de reestruturação que fez na companhia, como pelo processo de saída de Alexandra Reis da administração (com uma indemnização de 500 mil euros que avalizou) e ainda por todas as críticas (incluindo do próprio primeiro-ministro) à relação que o Ministério liderado por si mantinha com as tutelas, a TAP incluída. Mas esta “cicatriz” (termo que na apresentação da candidatura aplicou à mazelas que traz do seu passado político) não tem qualquer menção no texto com que se apresenta ao partido, nem mesmo quando terá de ser do próximo Governo a decisão relativa à sua privatização — e Pedro Nuno Santos já disse que é contra a venda a privados da maioria do capital.

O seu pé atrás face aos privados salta à vista, aliás, no capítulo dedicado à saúde, onde Pedro Nuno Santos critica o aumento da oferta do setor privado. “Quando a classe média deixa de recorrer ao SNS, este perde sustentação política e, em última instância, financeira”, argumenta o socialista que defende o reforço dos “instrumentos de regulação das relações entre o setor público e o setor privado”, bem como a existência de “critérios claros” para a participação dos privados no sistema nacional de saúde.

Pés de lã em terreno pantanoso. Na Justiça só “amplo debate” sobre seleção de magistrados

Tendo em conta o contexto em que caiu o Governo de António Costa, o capítulo da Justiça reveste-se de especial interesse e Pedro Nuno Santos não é muito detalhado na área, num toca e foge do candidato que já avisou que não quer passar os próximos quatro meses a discutir um processo judicial. Ainda assim, a sua moção de orientação nacional defende um “amplo debate a propósito do sistema de seleção, formação e governo dos magistrados e da magistratura, assim como dos demais agentes da Justiça, refletindo as preocupações da sociedade civil”.

Também fala na necessidade de “valorizar as carreiras, formação e conteúdos funcionais dos oficiais de Justiça, conservadores de registo e oficiais de registo” e na necessidade de ter uma justiça mais célere — pedidndo reflexão sobre a “excessiva privatização da Justiça”. Nesta área, onde Pedro Nuno Santos vai mais longe é mesmo na defesa da “introdução do direito de queixa constitucional (ou recurso de amparo), de modo que as pessoas e empresas possam aceder diretamente ao Tribunal Constitucional“.

Joga pelos mínimos numa área onde o PS tem especiais problemas nesta altura, movendo-se entre as vozes de senadores que defendem uma oposição acesa à ação judicial e a outra frente, que recomenda uma maior discrição nesta altura concreta.