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Foi há 20 anos, no já longínquo ano de 2004, que os 1-UIK Project — a dupla de Branko e Kalaf, que serviu de embrião para os Buraka Som Sistema — lançavam o seu único álbum, Strategies And Survival, onde cruzavam linguagens eletrónicas, hip hop e jazz num híbrido que já indiciava experimentação, criatividade e a busca por um som próprio, com o apoio de uma série de instrumentistas. Duas décadas voltadas, Branko é hoje um artista em nome próprio mais do que consolidado, que apresenta esta sexta-feira, 15 de março, o seu álbum Soma, o quarto do seu percurso a solo, que tem sido uma jornada de consistência e continuidade.
Um dos aqruitetos daquilo a que tem chamado, como vários outros, o “som de Lisboa”, Branko apostou num disco “plural” e construído de forma “coletiva e social”, por oposição ao seu trabalho anterior, OBG (2022), criado de forma solitária durante a pandemia. “Foi um álbum 90% produzido aqui sozinho, sentado em frente do computador”, explica o músico de 43 anos ao Observador, quando nos recebe no estúdio da sua editora Enchufada, na zona de Campo de Ourique, em Lisboa. “Por isso, agora senti a vontade de regressar à proximidade social, queria voltar a sentir as pessoas.”
Um disco da mente de Branko, mas feito a muitas mãos
Em fevereiro do ano passado, Branko reservou o célebre estúdio Namouche, em Lisboa, para três dias de jam sessions com instrumentistas. “São alguns dos músicos mais importantes da cidade e que de uma forma quase subconsciente contribuem muito para aquilo que são as balizas ou as definições nisto que nós chamamos de som de Lisboa já há algum tempo.”
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João Gomes, Francisco Rebelo, Ivo Costa, Djodje Almeida, Danilo Lopes da Silva ou Iúri Oliveira foram alguns dos principais convocados por Branko que, em vez de assumir uma posição de maestro, preferiu aproveitar o instinto natural destes músicos experientes. Foram chamados para improvisar sobre cerca de 15 dos seus instrumentais.
[“Found My Way”, com Carla Prata:]
“Foi algo sem regras, zero pensado sobre o que é que tinha de ser”, explica. “Ninguém teve acesso aos beats nem a qualquer informação antes. Estamos a falar de pessoas como o João Gomes, que tocou com o General D, fez parte de Cool Hipnoise, dos Fogo Fogo… O seu instinto está pronto para ele tocar de uma certa forma. Então, a minha ideia era captar mesmo esse subconsciente: que riff é que tu fazes se ninguém te estiver a mandar tocar nada, se ninguém te pedir absolutamente nada? Senta-te, ouve nos headphones e tocamos ao mesmo tempo durante 20 minutos.”
Depois de muitas horas de gravações, Branko sentou-se no estúdio para um longo processo de “corte e costura”. Qual artesão do som, foi moldando e juntando as peças para construir as canções. A junção de diversos instrumentos deu corpo a várias secções, linhas de baixo ou de guitarra tornaram-se parte essencial de um refrão ou de um outro. “Foi preciso passar de um processo de improvisação para uma estrutura mais pop, de canções.”
Ainda assim, Branko quis aproveitar a componente mais orgânica dos instrumentos, a “sensibilidade” impressa por cada um dos instrumentistas, para acrescentar identidade e não se colar aos cânones da música de dança, com os seus “ritmos certinhos e mecanizados”. “Tentei um pouco contrariá-lo, deixei os pequenos atrasos ou acelerações, tentei que a minha programação estivesse mais ligada ao lado orgânico dos instrumentos. Foi um processo de humanização do beat. Ao longo destes 20 anos, uma coisa na qual aprendi a confiar foi no meu gosto e em seguir o meu instinto. Não sei grandes escalas, não sei fazer progressões de acordes incríveis, mas sei o que me soa bem e o que me soa mal.”
A base dos seus instrumentais foi feita de forma também muito instintiva, sem racionalizar muito durante o processo criativo. “Normalmente, quando crio músicas, tento sempre começar com uma intenção, uma ideia, uma história, a pensar num propósito final. Confesso que, neste caso, como estava a produzir para os instrumentistas, tentei não pensar assim tanto quanto isso. Agarrei-me duas ou três semanas ao computador e estive só a criar ideias. Foi uma das alturas de maior criação, sem pensar muito. Porque sabia que a intenção iria ser acrescentada depois: a viagem, as coordenadas musicais geográficas… E depois foi pensar como levá-lo para um universo pop, para uma vocalização, e quem é que faria sentido participar nessa parte.”
As vozes que se somaram ao álbum
Cada canção, conta, acabou por pedir naturalmente as vozes que entrariam no disco. “Já tinha muitas ideias instrumentais bastante desenvolvidas, mais do que se calhar costumo ter quando colaboro com alguém, porque normalmente gosto de escrever com as pessoas na sala e começar as composições com elas, porque é uma forma interessante de nos encontrarmos num espaço que não é nem de um nem do outro. Aqui, quando comecei a trabalhar com as vozes, já tinha quase sempre os instrumentais bastante mais desenvolvidos. Foi mesmo uma questão de escolher as pessoas que faziam sentido ou que eu imaginaria a encaixar nesse registo.”
Convidou Dino D’Santiago e June Freedom para Mood 111, Teresa Salgueiro para Cinzas, partilhou Found My Way com Carla Prata, juntou Yeri & Yeni e Carlão para Fortuna, convocou Jay Prince para Slide, Bryte para Agenda, BIAB para Nuvem e os Tuyo para Leve.
Estes dois últimos casos foram o resultado de uma temporada que Branko passou no Brasil em novembro de 2022, ainda antes das jam sessions. No caso de Teresa Salgueiro, explica que era alguém com quem queria colaborar há muito tempo. Aliás, nos sets em vídeo que gravou durante a pandemia, em diversos locais espalhados pelo país, fez uma versão de um tema dos Madredeus em que a voz era o elemento protagonista.
“Acima de tudo, há ali uma textura e um timbre de voz que é quase um género musical por si só”, diz Branko sobre a voz de Teresa Salgueiro. “É uma coisa tão especial e única que tu ouves e, dois segundos depois, já te identificaste. Então sempre tive essa vontade e foi um convite que lancei sem grandes expectativas e que foi aceite. Foi um processo super simples e incrível, trabalhar com a Teresa num tema. A minha ideia era dar uma certa continuidade ao trabalho que fiz com o Vinte Vinte [em que colaborou com Ana Moura e Conan Osíris], de pensar em vozes que se encontram num registo da música tradicional portuguesa. Não é necessariamente reinventar ou repensar as coisas, é só compor — com os elementos que temos hoje em dia à disposição — canções que poderiam ser intemporais na história da música portuguesa.”
A colaboração com a dupla de Yeri & Yeni, duas gémeas com origens em Cabo Verde mas criadas na Linha de Sintra, aconteceu após as jovens cantoras terem enviado de forma espontânea uma gravação sua por cima de um tema antigo de Branko, Lost Arps, integrado numa compilação da Enchufada.
“Bem, está a acontecer este processo criativo, isto tem de aparecer de alguma forma no disco”, recorda Branko. “Tinha um tema com uma estrutura meio kizomba mas que me soava antigo, quase nostálgico. Acabei por lhes enviar essa ideia e correu super bem. Depois, achei que faltava uma pessoa que pudesse complementar e que trouxesse mais algum conteúdo, e que também tivesse uma voz que fosse ao mesmo tempo nostálgica e moderna. Tinha de ser o Carlão. Acabei por evocar Os Tais, quando tínhamos trabalhado numa estrutura similar em 2015. As participações foram muito nesse sentido, naquilo em que conseguiríamos valorizar o instrumental ou a ideia que já estava trabalhada originalmente.”
Por outro lado, interessava-lhe trabalhar com músicos com raízes lusófonas — como Carla Prata e Jay Prince, de origens angolanas, mas também June Freedom, de ascendência cabo-verdiana — que estivessem a operar no mercado britânico ou norte-americano, estabelecendo pontes com pessoas que evocam as suas culturas, que estão ligadas a Portugal, mas que trabalham numa indústria mais globalizada, algo que Branko sempre procurou fazer, e que também concretizou nos Buraka Som Sistema.
“Quis muito ligar-me a pessoas que não estivessem em Portugal e que estejam a viver ou a desenvolver a sua carreira fora do universo de expressão portuguesa. As origens da Carla são angolanas, mas o facto de estar a desenvolver a carreira dela em Inglaterra traz-lhe uma perspetiva super interessante para conseguirmos trabalhar juntos. Ou seja, tentei colaborar com pessoas que estivessem em vários universos, da mesma maneira que sinto que eu estou em diferentes universos.”
Para si, que tem vasta experiência internacional, ainda que a solo mais integrado num circuito ligado à música de dança, são estas pontes e parcerias criativas que podem fazer a diferença para gerar um ecossistema musical nacional mais sofisticado e ligado ao resto do planeta. “Por muito que este nosso cantinho esteja bem mais aberto ao mundo hoje em dia, continua a ser um espaço que, a nível de funcionamento da indústria e da respetiva projeção para o mundo, não é muito eficaz. Acho que isso se está a transformar com esse ajuste à indústria global e com artistas a trabalharem cada vez mais com management ou agenciamento lá fora.”
Nesta dúzia de temas que formam Soma, que conjugam um lado digital com outro mais orgânico, e que por isso talvez resultem numa sonoridade mais “abrangente”, Branko procurou ainda construir pequenos extras que a geração de “quem cresceu a ouvir música no final dos anos 90 e início dos 2000 valoriza”. “Os Neptunes faziam muito isso, tens dois minutos e meio de música e no final tens 30 segundos completamente diferentes. Achei interessante fazer coisas desse género, obviamente por causa de todo o conteúdo musical que tinha acumulado das sessões.”
Os heróis lusófonos que urge construir
Continua a olhar para a música que faz como uma “criação local pensada para ser apresentada globalmente”. “Isso nunca mudou muito, ao longo destes 20 anos. Sempre preferi comunicar e juntar pessoas de vários sítios. Mesmo a nível de público, se tenho 100 mil pessoas a acompanhar-me, apesar de obviamente ter um foco maior em Portugal prefiro que essas 100 mil pessoas estejam espalhadas por vários sítios.”
Esta ideia de uma cultura lusófona pujante está também muito assente na ligação ao Brasil, sendo que Soma tem uma costela brasileira e Branko tem ido regularmente ao maior país de língua portuguesa para encetar colaborações e inspirar-se pela música borbulhante que ali nasce.
“Além disso, nestes últimos anos, Lisboa tornou-se uma cidade com mais acesso à cultura brasileira no geral. Isso é inegável e é muito bom de sentir, nas ruas e na música um pouco por todo o lado, sejam DJs, percussionistas… Pessoas com quem me cruzei nos últimos anos que estavam ativamente a fazer coisas no Brasil e que vieram para cá. Lisboa ganhou muito com isso. E acabou por criar uma série de pontes com a própria cultura no Brasil, por encurtar um bocadinho o Atlântico e aproximar os dois países. Inevitavelmente, é muito através de tu conheceres, de visitares, de saberes, que consegues ultrapassar uma série de estigmas culturais e se isso estiver a acontecer cada vez mais nas duas direções é muito importante e pode, acima de tudo, oficializar a ideia do que é esta cultura que fala em português. Tem a sua expressão máxima na música brasileira, mas a música brasileira também começa a ouvir a música de Cabo Verde, de Angola e muita dessa aproximação acontece via Lisboa, porque é um epicentro que junta tudo isto.”
[“Slide”, com Jay Prince:]
Para si, é importante “criar heróis” neste fio condutor de cultura lusófona, até porque é assim que se combatem os preconceitos e as intolerâncias. “Temos de olhar para os Cool Hipnoise como heróis revolucionários, para o General D e para o Paulo Flores da mesma forma, que se possa celebrar a cultura como o Brasil faz com a sua música há muitos anos. Fazem falta esses heróis e talvez a maior de todas seja a Sara Tavares, que infelizmente morreu no ano passado, e é importante que a narrativa desta heroína se mantenha no nosso dia a dia.”
O novo álbum ao vivo
Ao vivo, Soma será oficialmente apresentado a 24 de março no festival Sónar Lisboa, num concerto durante a tarde no Parque Eduardo VII. Embora nos últimos anos se tenha posicionado menos como DJ e mais como artista em nome próprio, partindo em digressão pelos cine-teatros portugueses em horário normal de concerto, só agora é que isso se irá materializar com uma formação mais alargada em palco. Vai atuar com Danilo Lopes da Silva e Ola, que também fizeram parte das gravações do disco, e que vão tocar os novos temas mas também reinventar os mais antigos, dando-lhes uma roupagem nova através dos instrumentos e das vozes.
Além disso, para assinalar o lançamento já este fim de semana, entre 15 e 17 de março, haverá uma curadoria de Branko no bar e restaurante Antù, em Alfama, com DJ sets, conversas e uma série de outras atividades em torno do álbum.
“Nasceu um pouco do aborrecimento de lançar discos na era digital. Ficas agarrado ao telefone a fazer refresh e a ver o que está a acontecer no Spotify, à espera que os números aumentem. E a criação do disco foi um processo tão coletivo e social que me fez sentido transportá-lo para um espaço em que podes comprar merch exclusivo, comer algumas coisas inspiradas nas canções, ver uma exposição de fotografia que ilustra vários momentos do processo criativo e ouvir algumas conversas que apresentam a dinâmica que foi chegar a este resultado final.”
No fundo, é mais um elemento para se juntar à vasta Soma de Branko. 20 anos depois, continua a olhar em frente, a construir novos caminhos musicais que fundam culturas e unam pessoas, a levar a música local ao global, a contribuir para a soma das partes, num processo cujos resultados são tão artísticos quanto sociais.