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Nenhuma das profecias de Houellebecq manifestadas em "Submissão" se cumpriu e, ainda assim, trata-se de um dos livros mais importantes do século em curso

AFP via Getty Images

Nenhuma das profecias de Houellebecq manifestadas em "Submissão" se cumpriu e, ainda assim, trata-se de um dos livros mais importantes do século em curso

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A "Submissão" de Michel Houellebecq, dez anos depois

A visão do futuro da Europa transformada em livro pelo autor francês pode parecer falhada. Mas, analisado ao detalhe, há algo de profético no livro publicado em 2015. Ensaio de Patrícia Fernandes.

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“Com certeza também os romanos tinham tido, imediatamente antes da queda do império, a sensação de serem uma civilização eterna; ter-se-iam, também eles, suicidado?” (p. 228)

Cassandras e profecias

No dia 7 de janeiro de 2015, dois muçulmanos atacaram a sede da revista satírica Charlie Hebdo, causando a morte a doze pessoas. O massacre, reivindicado pela Al-Qaeda do Iémen, gerou inúmeras discussões sobre os limites que devem ser impostos à liberdade de expressão, nomeadamente jornalística e satírica, e muitas outras sobre as possibilidades reais de integração da comunidade muçulmana na Europa – e são temas que continuam na ordem do dia. Curiosamente, foi também nesse dia que Michel Houellebecq lançou o seu sexto livro e, provavelmente, o mais polémico: Submissão.

Entendido por muitos como uma tentativa de profecia, podemos afirmar hoje, dez anos volvidos, que o livro falhou nesse propósito. Afinal, não tivemos nas eleições de 2022 a vitória de um partido muçulmano nem a iminência de uma guerra civil em França. O país não se tornou num estado islâmico, nem a União Europeia parece mais próxima de se tornar numa réplica do Império Romano, expandindo-se para lá do mar Mediterrâneo. Também a sociedade francesa não se reorganizou em torno de princípios patriarcais, com a poligamia a ser sancionada pelo estado. Nenhuma das profecias de Houellebecq se cumpriu e, ainda assim, trata-se de um dos livros mais importantes do século em curso.

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Talvez o problema se encontre naqueles que interpretaram o livro de Houellebecq como profético ou na ideia de que a literatura possa ser lida como profecia. Afinal, quando um escritor pretende criar uma obra de arte tenta gerar, em primeira instância, um objeto formal capaz de dar origem a uma experiência estética. Mas é verdade que esta experiência depende dos talentos do autor e a dificuldade, no caso de Houellebecq, é que os seus talentos dificultam uma apreciação meramente formal: eles consistem numa admirável capacidade de interpretar o mundo que o rodeia – o espírito do tempo, diríamos noutro tempo – e numa admirável audácia de o descrever com sinceridade. Ao contrário de uma personagem do livro que é descrita como inteligente, mas convencional por pensar sobre todos os assuntos “exatamente o que era conveniente pensar” (p. 164), Houellebecq é capaz de, como poucos, escrever sem qualquer preocupação com as conveniências.

A capa da edição portuguesa de "Submissão" Michel Houellebecq, publicada em abril de 2015 pela Alfaguara, com tradução de Carlos Vieira da Silva

Aproxima-se, nesse sentido, de Philip Roth, os dois mais preocupados em escrever com verdade o que pensam sobre o mundo do que com os juízos que os outros possam fazer sobre o modo como os dois pensam o mundo. E, no caso de Michel Houellebecq, o mundo que encontramos nos seus livros é um mundo desprovido de sentido. Como o autor diz em Plataforma:

Até ao final, continuarei a ser um filho da Europa, um filho da inquietação e da vergonha; não sou depositário de qualquer mensagem de esperança. Não sinto ódio pelo Ocidente, quando muito um enorme desprezo. Sei apenas que, sendo como somos, exalamos um imenso fedor a egoísmo, a masoquismo e a morte. Criámos um sistema em que, pura e simplesmente, é impossível viver; um sistema que, ainda para mais, continuamos a exportar.”

É possível que Houellebecq seja, assim, um pessimista irritante, excessivamente centrado no lado mais negativo da nossa natureza, das nossas sociedades, dos nossos tempos. Mas qual é, para sermos sinceros, o interesse dos otimistas irritantes?

Os mitos quebrados

O pessimismo irritante de Houellebecq incide, em particular, sobre os mitos – ou, como diria Platão, as nobres mentiras – que sustentam a crença no sistema, e revela como esses mitos se encontram em processo de desgaste. Enquanto os mitos recebem um apoio fortemente maioritário, as instituições funcionam e o mito perdura, mas a partir do momento em que os descontentes vão aumentando – à medida que as margens vão engrossando –, a desconfiança cresce e os comportamentos irracionais multiplicam-se. Irracionais, claro, aos olhos daqueles que permanecem dentro do mito e que não conseguem compreender o número crescente da população que vota em partidos antissistema ou professa ideias inaceitáveis. Como diz Houellebecq:

Provavelmente é impossível, para as pessoas que viveram e prosperaram num determinado sistema social, imaginarem-se na pele daqueles que, nunca tendo podido esperar nada desse mesmo sistema, encaram a destruição do sistema sem especial receio.” (p. 53)

Falando a partir do mito, carecem de ferramentas para compreender por que razão cada vez mais pessoas parecem estar do outro lado e, por isso, acusam-nas de ignorância ou de estarem submetidas à influência da grande troika: fake news, redes sociais, Rússia. É preciso repreendê-los, reeducá-los, submetê-los de novo ao mito – mas trata-se de um esforço inglório: quando o mito se quebra, não é possível recuperá-lo.

Houellebecq escreve com a voz do homem do século XXI, o homem de meia-idade que goza de um bom salário e de boas condições materiais, mas cuja vida é desprovida de sentido e marcada por uma solidão profunda e provavelmente inédita na história da humanidade.

Para Houellebecq, um dos grandes mitos quebrados dos nossos tempos é, precisamente, o da democracia liberal, sobretudo aquele que assenta na chamada “alternância democrática”:

Curiosamente os países ocidentais sentiam-se muito orgulhosos deste sistema eleitoral, que no entanto não era mais que a partilha do poder entre dois gangues rivais, e chegavam ao ponto de desencadear guerras a fim de imporem esse método a outros países que não comungavam do mesmo entusiasmo na matéria.” (p. 48)

Consideremos, então, não só os resultados eleitorais que na última década se têm verificado por todo o Ocidente, mas também a dificuldade revelada pela elite política e de comentário jornalístico na compreensão desses resultados. E talvez tenhamos de reformular: parece haver algo de profético em Submissão.

O suicídio da Europa

O grande mito quebrado que atravessa a obra de Houellebecq é, contudo, o da civilização europeia e encontramos em Submissão os topoi habituais do escritor francês: a sociedade individualista, o indivíduo atomizado e egoísta e a profunda solidão em que estão mergulhadas as suas personagens; a sociedade de consumo, que transforma todas as dimensões da vida em momentos de satisfação insípida e imediata, com as suas embalagens de comida pré-cozinhada ou as refeições que são entregues em casa, e que dispensam a arte e o calor da cozinha; a sociedade obcecada com as experiências, nomeadamente as viagens e o turismo; a pornografia, com o corpo como mercadoria e a satisfação sexual como ato desprovido de sentimentos pessoais para pura satisfação masculina.

E, claro, o homem: Houellebecq escreve com a voz do homem do século XXI, o homem de meia-idade que goza de um bom salário e de boas condições materiais, mas cuja vida é desprovida de sentido e marcada por uma solidão profunda e provavelmente inédita na história da humanidade. Não é, por isso, surpreendente que a morte e, em particular, o suicídio constituam sombras permanentes das suas linhas.

Em Submissão, estes tópicos são enquadrados com recurso à famosa formulação do historiador inglês Arnold J. Toynbee: “As civilizações não morrem assassinadas, suicidam-se”. Apoiando-se numa longa investigação, Toynbee defende que as civilizações entram em processo de decadência quando as elites perdem a sua fibra moral e deixam de ser uma minoria criativa para se tornarem exploradoras da maioria, quebrando o dever de responsabilidade, que, em civilizações florescentes, é inerente à condição de elite. E, ao contrário das análises mais materialistas ou economicistas que são hoje populares, Toynbee destaca a dimensão espiritual: o enfraquecimento das elites resulta do abandono das referências morais e a resposta da maioria à decadência da civilização traduz-se na tentativa de repor os valores espirituais perdidos.

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É possível que Houellebecq (aqui fotografado em 2015) seja um pessimista irritante, excessivamente centrado no lado mais negativo da nossa natureza, das nossas sociedades, dos nossos tempos

picture alliance via Getty Image

As páginas mais interessantes do livro namoram estas ideias e a suspeição de que o suicídio da Europa terá começado no século XIX com a perda das referências morais e a tradição niilista até à geração perdida entre a grande guerra e os fornos de Birkenau. Mas teria sido o individualismo liberal, funcionando como uma máquina debulhadora, a dissolver todas as estruturas intermédias, desde as ordens e as corporações até às pátrias, e que assinou “a sua sentença de morte quando atac[ou] a estrutura básica que era a família, e portanto a demografia” (p. 238). Seria, assim, o assalto à família e, nessa medida, a perda demográfica a conduzir ao suicídio da civilização europeia.

Consideremos, então, a investigação dos últimos anos sobre o número decrescente de casamentos, o número crescente de pessoas a viver sozinhas e a chamada crise da fertilidade (provavelmente, um dos grandes tópicos de 2025). E talvez tenhamos de reformular: parece haver algo de profético em Submissão.

O patriarcado

Chegamos, assim, ao tema central do livro de Houellebecq. Numa perspetiva quase darwinista, o argumento que subjaz à narrativa pode ser apresentado do seguinte modo: se as civilizações florescem e prosperam é porque o conjunto de valores que lhe serve de referência ou horizonte moral é bom; mas se uma sociedade não assegura as condições para a sua reprodução é porque aqueles valores são desadequados.

Seria esta a condição da maioria das sociedades ocidentais hoje e é neste contexto que se desenvolve o enredo do livro: nas eleições presidenciais francesas de 2022, o líder da Fraternidade Muçulmana vence Marine Le Pen e inicia uma governação que levará, progressivamente, à instauração de um regime muçulmano em França. Trata-se, importa notar, de uma vitória da direita no plano das ideias: afinal, as eleições são disputadas entre a Frente Nacional (e um Bloco Identitário, mais tradicionalista, mais católico ou mais republicano) e a Fraternidade Muçulmana, que, apesar de apoiada pela esquerda, impõe uma agenda conservadora centrada na família (como sabemos, a esquerda não pode, nunca, apontar o dedo ao Islão). E essa agenda conservadora repõe uma condição social que vigorou na Europa praticamente até ao século XX e se revelou eficaz ao assegurar a fecundidade da espécie: o patriarcado.

Houellebecq aproxima-se de Philip Roth, os dois mais preocupados em escrever com verdade o que pensam sobre o mundo do que com os juízos que os outros possam fazer sobre o modo como os dois pensam o mundo. E, no caso do francês, o mundo que encontramos nos seus livros é um mundo desprovido de sentido.

O patriarcado é, então, o tema central do livro e essa é, provavelmente, a razão pela qual despertou, ao longo dos últimos dez anos, reações tão hostis de um quadrante político geralmente incapaz de apreciar as qualidades literárias de Houellebecq. É que residiria naquela forma de organização o segredo para uma sociedade florescente e indivíduos mais felizes: o patriarcado garantiria a descendência e a sustentabilidade da família, a carne de dois corpos que se unem num só e a felicidade caseira. E tudo isto seria oferecido pelo Islão.

A redenção

Os argumentos até aqui partilhados são narrados, em Submissão, por François, um professor universitário especialista em J. K. Huysmans, escritor francês que viveu entre 1848 e 1907 e fez parte da chamada escola naturalista e, mais tarde, do movimento decadentista. O enredo desenrola-se, assim, no contexto universitário pelo que François e as pessoas com quem interage parecem representar as elites intelectuais e culturais francesas que Toynbee visaria no seu argumento. E alguns leram, assim, Submissão como um livro sobre a “cobardia moral das elites”.

Mas há uma mensagem mais profunda neste texto e que resulta do caminho que percorremos com Huysmans, desde o seu pessimismo e insatisfação com a sociedade burguesa até ao momento em que decide reaproximar-se do catolicismo, aprendendo a aceitar o sofrimento inerente à vida:

Mais uma vez pensei em Huysmans, nas dúvidas e nos sofrimentos da sua conversão, no seu desesperado desejo de se incorporar num ritual.” (p. 149)

É a redenção de Huysmans (e a do pai, numa história paralela) que leva François a acreditar numa segunda oportunidade, numa segunda vida, numa hipótese de felicidade. O mito da redenção faz-nos acreditar que é possível ter, enfim, uma vida mais feliz ou, pelo menos, mais tranquila. E é isso que François vai encontrar numa sociedade francesa submetida ao Islão: a imposição de uma norma religiosa que repõe uma ordem natural, uma ordem que permite que a espécie se reaproxime e se reproduza, recorrendo até à velha tradição do casamento combinado. Afinal, “o Islão aceita o mundo, aceita-o integralmente, aceita o mundo tal qual ele é, para usar a terminologia de Nietzsche” (p. 230).

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Encontramos em Submissão os "topoi" habituais do escritor francês: a sociedade individualista, o indivíduo atomizado e egoísta e a profunda solidão em que estão mergulhadas as suas personagens

AFP via Getty Images

As últimas páginas de Submissão recorrem, assim, não apenas a Nietzsche, mas sobretudo a René Guénon, um dos pensadores da tradição intelectual que, entre as duas guerras, pensou o declínio do mundo moderno, e que se converteu ao islamismo. Em A crise do mundo moderno, Guénon lamenta que a modernidade se traduza em rutura com a tradição e defende que é no regresso ao espírito tradicional que encontramos a solução para os erros modernos.

Talvez não seja, por isso, surpreendente que, um pouco por toda a Europa, esteja a ressurgir o interesse pela religião e pelo cristianismo como saída deste mundo de solidão, insatisfação e depressão em que nos metemos. E talvez seja essa a grande profecia de Houellebecq: não o triunfo do Islão na Europa, mas o regresso do religioso. Falta saber se é possível recuperar esse mito quebrado.

*As citações de “Submissão” foram retiradas da edição publicada em março de 2015 pela Alfaguara, com tradução de Carlos Vieira da Silva.

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