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“Com certeza também os romanos tinham tido, imediatamente antes da queda do império, a sensação de serem uma civilização eterna; ter-se-iam, também eles, suicidado?” (p. 228)
Cassandras e profecias
No dia 7 de janeiro de 2015, dois muçulmanos atacaram a sede da revista satírica Charlie Hebdo, causando a morte a doze pessoas. O massacre, reivindicado pela Al-Qaeda do Iémen, gerou inúmeras discussões sobre os limites que devem ser impostos à liberdade de expressão, nomeadamente jornalística e satírica, e muitas outras sobre as possibilidades reais de integração da comunidade muçulmana na Europa – e são temas que continuam na ordem do dia. Curiosamente, foi também nesse dia que Michel Houellebecq lançou o seu sexto livro e, provavelmente, o mais polémico: Submissão.
Entendido por muitos como uma tentativa de profecia, podemos afirmar hoje, dez anos volvidos, que o livro falhou nesse propósito. Afinal, não tivemos nas eleições de 2022 a vitória de um partido muçulmano nem a iminência de uma guerra civil em França. O país não se tornou num estado islâmico, nem a União Europeia parece mais próxima de se tornar numa réplica do Império Romano, expandindo-se para lá do mar Mediterrâneo. Também a sociedade francesa não se reorganizou em torno de princípios patriarcais, com a poligamia a ser sancionada pelo estado. Nenhuma das profecias de Houellebecq se cumpriu e, ainda assim, trata-se de um dos livros mais importantes do século em curso.
Talvez o problema se encontre naqueles que interpretaram o livro de Houellebecq como profético ou na ideia de que a literatura possa ser lida como profecia. Afinal, quando um escritor pretende criar uma obra de arte tenta gerar, em primeira instância, um objeto formal capaz de dar origem a uma experiência estética. Mas é verdade que esta experiência depende dos talentos do autor e a dificuldade, no caso de Houellebecq, é que os seus talentos dificultam uma apreciação meramente formal: eles consistem numa admirável capacidade de interpretar o mundo que o rodeia – o espírito do tempo, diríamos noutro tempo – e numa admirável audácia de o descrever com sinceridade. Ao contrário de uma personagem do livro que é descrita como inteligente, mas convencional por pensar sobre todos os assuntos “exatamente o que era conveniente pensar” (p. 164), Houellebecq é capaz de, como poucos, escrever sem qualquer preocupação com as conveniências.
Aproxima-se, nesse sentido, de Philip Roth, os dois mais preocupados em escrever com verdade o que pensam sobre o mundo do que com os juízos que os outros possam fazer sobre o modo como os dois pensam o mundo. E, no caso de Michel Houellebecq, o mundo que encontramos nos seus livros é um mundo desprovido de sentido. Como o autor diz em Plataforma:
Até ao final, continuarei a ser um filho da Europa, um filho da inquietação e da vergonha; não sou depositário de qualquer mensagem de esperança. Não sinto ódio pelo Ocidente, quando muito um enorme desprezo. Sei apenas que, sendo como somos, exalamos um imenso fedor a egoísmo, a masoquismo e a morte. Criámos um sistema em que, pura e simplesmente, é impossível viver; um sistema que, ainda para mais, continuamos a exportar.”
É possível que Houellebecq seja, assim, um pessimista irritante, excessivamente centrado no lado mais negativo da nossa natureza, das nossas sociedades, dos nossos tempos. Mas qual é, para sermos sinceros, o interesse dos otimistas irritantes?
Os mitos quebrados
O pessimismo irritante de Houellebecq incide, em particular, sobre os mitos – ou, como diria Platão, as nobres mentiras – que sustentam a crença no sistema, e revela como esses mitos se encontram em processo de desgaste. Enquanto os mitos recebem um apoio fortemente maioritário, as instituições funcionam e o mito perdura, mas a partir do momento em que os descontentes vão aumentando – à medida que as margens vão engrossando –, a desconfiança cresce e os comportamentos irracionais multiplicam-se. Irracionais, claro, aos olhos daqueles que permanecem dentro do mito e que não conseguem compreender o número crescente da população que vota em partidos antissistema ou professa ideias inaceitáveis. Como diz Houellebecq:
Provavelmente é impossível, para as pessoas que viveram e prosperaram num determinado sistema social, imaginarem-se na pele daqueles que, nunca tendo podido esperar nada desse mesmo sistema, encaram a destruição do sistema sem especial receio.” (p. 53)
Falando a partir do mito, carecem de ferramentas para compreender por que razão cada vez mais pessoas parecem estar do outro lado e, por isso, acusam-nas de ignorância ou de estarem submetidas à influência da grande troika: fake news, redes sociais, Rússia. É preciso repreendê-los, reeducá-los, submetê-los de novo ao mito – mas trata-se de um esforço inglório: quando o mito se quebra, não é possível recuperá-lo.
Para Houellebecq, um dos grandes mitos quebrados dos nossos tempos é, precisamente, o da democracia liberal, sobretudo aquele que assenta na chamada “alternância democrática”:
Curiosamente os países ocidentais sentiam-se muito orgulhosos deste sistema eleitoral, que no entanto não era mais que a partilha do poder entre dois gangues rivais, e chegavam ao ponto de desencadear guerras a fim de imporem esse método a outros países que não comungavam do mesmo entusiasmo na matéria.” (p. 48)
Consideremos, então, não só os resultados eleitorais que na última década se têm verificado por todo o Ocidente, mas também a dificuldade revelada pela elite política e de comentário jornalístico na compreensão desses resultados. E talvez tenhamos de reformular: parece haver algo de profético em Submissão.
O suicídio da Europa
O grande mito quebrado que atravessa a obra de Houellebecq é, contudo, o da civilização europeia e encontramos em Submissão os topoi habituais do escritor francês: a sociedade individualista, o indivíduo atomizado e egoísta e a profunda solidão em que estão mergulhadas as suas personagens; a sociedade de consumo, que transforma todas as dimensões da vida em momentos de satisfação insípida e imediata, com as suas embalagens de comida pré-cozinhada ou as refeições que são entregues em casa, e que dispensam a arte e o calor da cozinha; a sociedade obcecada com as experiências, nomeadamente as viagens e o turismo; a pornografia, com o corpo como mercadoria e a satisfação sexual como ato desprovido de sentimentos pessoais para pura satisfação masculina.
E, claro, o homem: Houellebecq escreve com a voz do homem do século XXI, o homem de meia-idade que goza de um bom salário e de boas condições materiais, mas cuja vida é desprovida de sentido e marcada por uma solidão profunda e provavelmente inédita na história da humanidade. Não é, por isso, surpreendente que a morte e, em particular, o suicídio constituam sombras permanentes das suas linhas.
Em Submissão, estes tópicos são enquadrados com recurso à famosa formulação do historiador inglês Arnold J. Toynbee: “As civilizações não morrem assassinadas, suicidam-se”. Apoiando-se numa longa investigação, Toynbee defende que as civilizações entram em processo de decadência quando as elites perdem a sua fibra moral e deixam de ser uma minoria criativa para se tornarem exploradoras da maioria, quebrando o dever de responsabilidade, que, em civilizações florescentes, é inerente à condição de elite. E, ao contrário das análises mais materialistas ou economicistas que são hoje populares, Toynbee destaca a dimensão espiritual: o enfraquecimento das elites resulta do abandono das referências morais e a resposta da maioria à decadência da civilização traduz-se na tentativa de repor os valores espirituais perdidos.
As páginas mais interessantes do livro namoram estas ideias e a suspeição de que o suicídio da Europa terá começado no século XIX com a perda das referências morais e a tradição niilista até à geração perdida entre a grande guerra e os fornos de Birkenau. Mas teria sido o individualismo liberal, funcionando como uma máquina debulhadora, a dissolver todas as estruturas intermédias, desde as ordens e as corporações até às pátrias, e que assinou “a sua sentença de morte quando atac[ou] a estrutura básica que era a família, e portanto a demografia” (p. 238). Seria, assim, o assalto à família e, nessa medida, a perda demográfica a conduzir ao suicídio da civilização europeia.
Consideremos, então, a investigação dos últimos anos sobre o número decrescente de casamentos, o número crescente de pessoas a viver sozinhas e a chamada crise da fertilidade (provavelmente, um dos grandes tópicos de 2025). E talvez tenhamos de reformular: parece haver algo de profético em Submissão.
O patriarcado
Chegamos, assim, ao tema central do livro de Houellebecq. Numa perspetiva quase darwinista, o argumento que subjaz à narrativa pode ser apresentado do seguinte modo: se as civilizações florescem e prosperam é porque o conjunto de valores que lhe serve de referência ou horizonte moral é bom; mas se uma sociedade não assegura as condições para a sua reprodução é porque aqueles valores são desadequados.
Seria esta a condição da maioria das sociedades ocidentais hoje e é neste contexto que se desenvolve o enredo do livro: nas eleições presidenciais francesas de 2022, o líder da Fraternidade Muçulmana vence Marine Le Pen e inicia uma governação que levará, progressivamente, à instauração de um regime muçulmano em França. Trata-se, importa notar, de uma vitória da direita no plano das ideias: afinal, as eleições são disputadas entre a Frente Nacional (e um Bloco Identitário, mais tradicionalista, mais católico ou mais republicano) e a Fraternidade Muçulmana, que, apesar de apoiada pela esquerda, impõe uma agenda conservadora centrada na família (como sabemos, a esquerda não pode, nunca, apontar o dedo ao Islão). E essa agenda conservadora repõe uma condição social que vigorou na Europa praticamente até ao século XX e se revelou eficaz ao assegurar a fecundidade da espécie: o patriarcado.
O patriarcado é, então, o tema central do livro e essa é, provavelmente, a razão pela qual despertou, ao longo dos últimos dez anos, reações tão hostis de um quadrante político geralmente incapaz de apreciar as qualidades literárias de Houellebecq. É que residiria naquela forma de organização o segredo para uma sociedade florescente e indivíduos mais felizes: o patriarcado garantiria a descendência e a sustentabilidade da família, a carne de dois corpos que se unem num só e a felicidade caseira. E tudo isto seria oferecido pelo Islão.
A redenção
Os argumentos até aqui partilhados são narrados, em Submissão, por François, um professor universitário especialista em J. K. Huysmans, escritor francês que viveu entre 1848 e 1907 e fez parte da chamada escola naturalista e, mais tarde, do movimento decadentista. O enredo desenrola-se, assim, no contexto universitário pelo que François e as pessoas com quem interage parecem representar as elites intelectuais e culturais francesas que Toynbee visaria no seu argumento. E alguns leram, assim, Submissão como um livro sobre a “cobardia moral das elites”.
Mas há uma mensagem mais profunda neste texto e que resulta do caminho que percorremos com Huysmans, desde o seu pessimismo e insatisfação com a sociedade burguesa até ao momento em que decide reaproximar-se do catolicismo, aprendendo a aceitar o sofrimento inerente à vida:
Mais uma vez pensei em Huysmans, nas dúvidas e nos sofrimentos da sua conversão, no seu desesperado desejo de se incorporar num ritual.” (p. 149)
É a redenção de Huysmans (e a do pai, numa história paralela) que leva François a acreditar numa segunda oportunidade, numa segunda vida, numa hipótese de felicidade. O mito da redenção faz-nos acreditar que é possível ter, enfim, uma vida mais feliz ou, pelo menos, mais tranquila. E é isso que François vai encontrar numa sociedade francesa submetida ao Islão: a imposição de uma norma religiosa que repõe uma ordem natural, uma ordem que permite que a espécie se reaproxime e se reproduza, recorrendo até à velha tradição do casamento combinado. Afinal, “o Islão aceita o mundo, aceita-o integralmente, aceita o mundo tal qual ele é, para usar a terminologia de Nietzsche” (p. 230).
As últimas páginas de Submissão recorrem, assim, não apenas a Nietzsche, mas sobretudo a René Guénon, um dos pensadores da tradição intelectual que, entre as duas guerras, pensou o declínio do mundo moderno, e que se converteu ao islamismo. Em A crise do mundo moderno, Guénon lamenta que a modernidade se traduza em rutura com a tradição e defende que é no regresso ao espírito tradicional que encontramos a solução para os erros modernos.
Talvez não seja, por isso, surpreendente que, um pouco por toda a Europa, esteja a ressurgir o interesse pela religião e pelo cristianismo como saída deste mundo de solidão, insatisfação e depressão em que nos metemos. E talvez seja essa a grande profecia de Houellebecq: não o triunfo do Islão na Europa, mas o regresso do religioso. Falta saber se é possível recuperar esse mito quebrado.
*As citações de “Submissão” foram retiradas da edição publicada em março de 2015 pela Alfaguara, com tradução de Carlos Vieira da Silva.