Luís Sampaio fica perplexo ao receber o contacto de um inspetor da Polícia Judiciária (PJ), em meados de novembro, e nem quer acreditar que tem a justiça a falar-lhe por causa de um pergaminho medieval que estava a vender através do site OLX. A PJ sabe apenas que ele vive em Vila Nova de Gaia, mas age com rapidez e consegue localizá-lo. Informa-o de que está em causa um possível crime, diz-lhe que deve colaborar com as autoridades e não pode escolher o comprador: tem mesmo de vender o pergaminho ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, como manda a lei. Luís Sampaio hesita e tenta ganhar tempo. Diz aos inspetores que já chegou a acordo com um particular, mas tentará desfazer o negócio. A PJ receia que o pergaminho esteja nas mãos de um colecionador, fora do país, o que tornaria muito complexa a recuperação — mas logo afasta essa hipótese.
Entretanto, Luís Sampaio cai em si. Sem alternativa, acaba por receber a Judiciária em casa. Enquanto conversam, toma a iniciativa de ir buscar o pergaminho e de o entregar aos inspetores. A partir desse momento, a preciosidade passa para as mãos do Estado e fica à guarda do Ministério Público, que dirige o inquérito – e aí permanece agora.
A 20 de novembro, a Diretoria do Norte da PJ anuncia em comunicado que “logrou localizar e apreender” um pergaminho com 635 anos, relacionado com a entrega do Castelo de Lisboa ao irmão da rainha Leonor Teles, uma peça com “importância e valor inestimável” que “irá ser alvo de perícia, no sentido de se comprovar a sua autenticidade”. A perícia ficou cargo dos setores de química e análise documental do Laboratório de Polícia Científica da Judiciária, em Lisboa, e deverá estar concluída muito em breve, razão pela qual o documento ainda não se encontra na posse da Torre do Tombo.
Luís Sampaio, legítimo proprietário, agiu de boa-fé e desconhecia o valor histórico e patrimonial do pergaminho, não tendo noção de que o Estado é comprador preferencial: eis a tese da PJ.
O pitoresco caso tem sido noticiado nas últimas semanas, mas os contornos só agora começam a ficar nítidos. As autoridades falam em “situação pouco habitual” e em “caso de estudo” para o Laboratório de Polícia Científica. “É raro termos documentos deste calibre para exames periciais e os nossos técnicos consideram-no muito interessante”, disse ao Observador o investigador criminal Pedro Silva, que coordena o dossier na Diretoria do Norte da PJ. “Está-se até a chegar a conclusões sobre a forma com as tintas artesanais, usadas à época, foram aplicadas àquele suporte.”
Segundo o mesmo responsável, o inquérito será fechado nos próximos dias e a provável proposta que a PJ fará ao Ministério Público é o arquivamento, já que “todas as pessoas envolvidas agiram sem dolo e provavelmente não se consegue obter mais pistas para outras linhas de investigação”.
A primeira abordagem que assustou o vendedor
Ao que se sabe, o primeiro alerta sobre a venda do pergaminho foi dado a 29 de outubro, no Facebook, por José Luís Pinto Fernandes, estudante de medicina na Covilhã, autodidata do período medieval e um dos autores do blogue e página de Facebook “Repensando a Idade Média”. Partilhou o anúncio de venda, publicado na plataforma OLX, e disse ter avisado a Câmara de Lisboa para o negócio. O preço pedido pelo vendedor era de 750 euros.
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O jornal Público foi o primeiro a pegar no assunto, a 2 de novembro, com chamada de primeira página, e no dia seguinte o Observador explicou em artigo especial quem foi o Conde de Barcelos – uma vez que o pergaminho presumivelmente atesta a entrega do castelo de Lisboa (só mais tarde Castelo de São Jorge) por Martim Afonso Valente a João Afonso Telo, governador de Lisboa (alcaide-mor) e irmão da rainha Leonor Teles, mulher de D. Fernando. Telo detinha então o título nobiliárquico Conde de Barcelos, um dos mais antigos e importantes em Portugal.
Quem já estava no encalço do documento desde o início era a Torre do Tombo, em Lisboa, principal arquivo do Estado, onde estão depositados documentos originais desde o século IX. A informação oficial é a de que os serviços de salvaguarda do património da Torre do Tombo monitorizam diariamente as várias formas de comércio de bens culturais, tanto em antiquários, alfarrabistas ou leilões, como em plataformas eletrónicas. E encontraram o anúncio de Luís Sampaio. “Vamos exercer o direito de opção na aquisição do pergaminho e já comunicámos isso ao vendedor”, afirmou o diretor da Torre do Tombo, Silvestre Lacerda, a 2 de novembro. Mas o desenlace não foi fácil.
A compra conheceu uma primeira tentativa logo a 20 de outubro, tendo sido gorada porque Luís Sampaio não gostou da abordagem. Quem o contactou foi Rosa Azevedo, responsável pelo departamento de aquisições da Torre do Tombo, que esboçou intenção de fechar negócio em termos que o vendedor considerou impositivos. Em rigor, um decreto-lei de 1993 e uma lei de 2001 dão “direito de preferência” ao Estado na compra de “bem arquivístico classificado ou em vias de classificação”. Se o proprietário recusar vender ao Estado, incorre em “contraordenação com coima até cerca de 2.500 euros”, se não mesmo em “crime agravado de furto ou roubo”.
Àquele primeiro contacto, através de correio eletrónico, única via anunciada no OLX, Luís Sampaio terá respondido que não venderia. Só então, já sem esperanças de obter o pergaminho, é que a Torre do Tombo recorreu à PJ.
O procedimento mais adequado teria sido a Torre do Tombo contactar a Judiciária antes sequer de se dirigir por escrito a Luís Sampaio, garante fonte ligada à investigação criminal. “Se tivessem dito que sabiam de determinado documento, possivelmente valioso, à venda na internet e que iriam fazer uma tentativa de compra, a PJ teria intervindo logo e não se teria corrido o risco de o documento ir parar ao estrangeiro.”
Entre os anúncios da internet há cinco anos
Luís Sampaio não quis falar com o Observador, apesar de diversas tentativas de contacto. É descrito como um colecionador de antiguidades, sobretudo livros e documentos. Tem conta ativa no OLX desde há cinco anos, esclareceu fonte daquela plataforma, o que não significa que publique anúncios com frequência. O anúncio em causa foi para o ar às 11h23 do dia 20 de outubro e retirado 10 dias depois, estando agora inacessível (só resta o endereço eletrónico). Segundo a PJ, não foi ele o responsável direto pela inserção do anúncio: pediu a um filho que o fizesse e ambos concordaram que 750 euros seria o valor mais justo. “Um valor normal em termos de mercado”, comentou agora Silvestre Lacerda.
Para já, sabe-se que o pergaminho chegou à sua posse há cerca duas décadas, quando ele o comprou numa livraria da zona do Porto, juntamente com outros papéis. A PJ descobriu que o dono da livraria já morreu e está a tentar perceber junto dos descendentes se haverá forma de reconstituir transações anteriores, para deslindar como é que a relíquia chegou às mãos de particulares – sendo certo que o acervo dos Condes de Barcelos, que tem vindo a ser vendido ao longo de décadas a particulares e ao Estado, continha outros dois exemplares idênticos da mesma escritura. As dúvidas sobre o percurso ao longo do tempo deverão, no entanto, manter-se e os investigadores terão de dar o caso por encerrado, explicou o coordenador Pedro Silva.
Ao que escreveu no Facebook o autodidata José Luís Pinto Fernandes, além deste “há muitos mais manuscritos a serem vendidos ou trocados em alfarrabistas, leilões ou até na rua” e aos quais o Estado não chega devido à “situação calamitosa” dos arquivos a nível de financiamento. “A grande diferença desta escritura, mesmo com o seu significado histórico, é mesmo o meio de venda”, ou seja, o OLX, site com origem numa empresa fundada em Lisboa em 2007 e hoje detido pela holandesa OLX Global BV.
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Para 2019, é de cerca de 14,2 milhões de euros o orçamento da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), que tutela diretamente a Torre do Tombo. De acordo com o Ministério da Cultura, esse orçamento “cresceu 16,5% desde o início da legislatura” e “tem uma rubrica destinada à aquisição de documentos e é possível fazer alterações orçamentais para fazer face a propostas existentes no mercado”. O argumento parece desalinhado com a opinião do diretor-geral da DGLAB, que desde 2015 é também Silvestre Lacerda (dirige a Torre do Tombo por inerência deste cargo). No “Plano de Atividades de 2019”, escreveu que “a reorientação da política arquivística exige meios mais adequados, quer em recursos humanos especializados quer em recursos orçamentais, quer no investimento”.
Ao Observador, Silvestre Lacerda explicou melhor. “As necessidades são sempre muitas, mas não podemos dizer que a situação do Torre do Tombo seja muito diferente da do resto da administração pública em termos de limitação de recursos”. Lembrou que a instituição que dirige tem uma rubrica orçamental para aquisição de bens do património arquivístico e fotográfico e, em caso de necessidade, pode ser acionado o Fundo de Fomento Cultural, do Ministério da Cultura.
Pergaminho traz alguma novidade?
Fonte da plataforma de anúncios explicou ao Observador que o OLX “não consegue avaliar a veracidade e importância histórica de determinados documentos ou objetos” anunciados, porque isso “requer competências de peritos”, mas garantiu que o site “colabora sempre que necessário com as autoridades”, sem adiantar se isso aconteceu neste caso.
“O comércio eletrónico está a generalizar-se e o que acontecia exclusivamente em alfarrabistas ou leilões passou para o ambiente digital, por isso é que algumas pessoas se surpreendem por o pergaminho estar à venda no OLX”, comentou Silvestre Lacerda. De resto, encara o sucedido com alguma normalidade. “Os historiadores já sabiam da existência do documento e do conteúdo”, disse o diretor da Torre do Tombo, licenciado em história pela Universidade do Porto e especialista em ciências documentais. “Aparece registado na Chancelaria de D. Fernando, só não conhecíamos a materialidade da peça”, acrescentou. À época, a chancelaria régia, um departamento da corte, fazia cópia integral ou mero registo de existência (ementa) de contratos, doações ou nomeações. “O documento não vem mudar a história, vem confirmar informações sobre o que era a política em vésperas da Revolução de 1383-85 e os seus intervenientes”, explicou o diretor.
Opinião distinta manifestou Luís Miguel Duarte, professor na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com doutoramento em história medieval, em recente artigo no Público. “Julgo que este documento fulcral era desconhecido”, escreveu. “Não conheço referências a ele nos trabalhos clássicos sobre a época e o tema; não o encontrei numa rápida consulta à Chancelaria de D. Fernando; não sei se o Marquês de Abrantes o terá indicado em algum dos seus trabalhos monográficos. Diria que não.”
Pode, por isso, dizer-se que entram agora em cena os historiadores, que terão de estudar o caso. Miguel Gomes Martins, doutorado em história da Idade Média e investigador do Instituto de Estudos Medievais, afirmou ao Observador que “a existência do documento em si não era conhecida até agora, apenas o conteúdo” e garantiu que ele aparece registado na Chancelaria de D. Fernando a 26 de janeiro de 1383, no livro 3, fólio 53. Dez dias antes, o rei ordenara a entrega do castelo e esse facto também está registado na Chancelaria.
A medievalista Manuela dos Santos Silva, professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, admitiu que o pergaminho pudesse ser desconhecido até agora e acrescentou que nem todos os documentos do género, sendo autênticos, estão registados nas chancelarias régias, porque houve “períodos de reforma” desses assentos, durante os quais “foram removidos conjuntos documentais”. A Chancelaria de D. Fernando é um desses casos. “Uma análise de conteúdo e o cotejamento com outros documentos poderá esclarecer eventuais dúvidas”, disse a professora.
A mais que provável proposta da PJ de arquivamento do inquérito, por falta de matéria criminal, será seguida de entrega do pergaminho à Torre do Tombo, momento formal que terá lugar nos próximos dias na Diretoria do Norte da Judiciária. Depois, a nova aquisição será integrada no acervo do Arquivo Nacional, para descrição, digitalização e estudo, sendo exibida ao público pela primeira vez numa exposição sobre quotidiano e alimentação na Lisboa dos séculos XIV e XV – a inaugurar na Torre do Tombo a 23 de abril, numa colaboração entre o Instituto de Estudos Medievais e o Arquivo Histórico da Câmara de Lisboa.