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Fazemos uma pausa e deixamos que nos surpreenda com a resposta. “Sabe quais são as três palavras mais aborrecidas do mundo?”, desafia-nos do outro lado da linha Richard Wallace. “Harry e Meghan”, ri-se. Bom, e que termos usaria para descrever Eduardo e Wallis?, desafiamos. “O segundo casal mais aborrecido do mundo?”, especula, para logo corrigir o veredito. “Não, não, a grande diferença é que na sua época os duques de Windsor não eram o casal mais aborrecido do mundo, mas sim o mais interessante”.
O jornalista e autor não esquece que Simpson foi em tempos a primeira figura feminina do ano na capa da prestigiada Time e não hesita em considerá-los os primeiros super influencers do mundo, ainda que sem selfies e likes (e se dúvidas restassem, “no Reino Unido detestam a Meghan”). Ao contrário de antipatias industriadas pelo Megxit, o livro que acaba de lançar está longe de ser, garante, “anti Wallis”. “Eduardo era o príncipe de Gales, o homem que foi a certa altura o mais rico e poderoso do mundo. Quem não quereria andar com ele e participar disto? Quem não faria o que fez Wallis Simpson, uma mulher que ainda por cima passou por inúmeras dificuldades, pobreza, abusos?”, condescende. Mas, claro, há quase sempre uma contrapartida por detrás do brilho dos diamantes. “Depois, aquela mulher livre percebeu que tinha ficado atada ao homem mais aborrecido do mundo”. Não tenha medo, porque até o mais entediante condimento no trajeto deste par “dava um grande filme”.
Ednam Lodge e um mistério com quase 80 anos
Conhecidos pelo estilo de vida extravagante e gostos dispendiosos, ninguém terá estranhado o volume da bagagem com que os Windsor se apresentaram a 16 de outubro de 1946 na casa de campo dos condes de Dudley, em Ednam Lodge, no Berkshire. Eduardo VIII e Wallis Simpson instalavam-se com um farto carregamento de joalharia, que acompanhava a duquesa na sua viagem entre França e o Reino Unido. Entre preciosas esmeraldas e acessórios que terão pertencido à rainha Alexandra, a anfitriã terá sugerido que Simpson guardasse o acervo num cofre, proposta que Wallis declinou, justificando que preferia ter as joias perto de si — neste caso, debaixo da cama.
Poucos dias depois, ambos os casais seguem para Londres para um jantar no Claridge’s. E é durante essa ausência que os baús de viagem de Wallis terão sido arrombados e esvaziados. Todo o conteúdo é levado, à exceção de duas peças com especial significado: a pregadeira Cartier que Simpson estaria a usar na noite do jantar, com rubis, safiras e as iniciais E e W entrelaçadas, que o marido lhe oferecera durante a crise da abdicação, e ainda uma outra pregadeira que o mesmo fabricante entregara nessa manhã, uma “ave do paraíso de safiras e diamantes de 65 quilates que, por razões desconhecidas, havia sido escondida sob um vaso na sala”, indica a Tatler.
Se a Scotland Yard recebe ordens para investigar o crime, em pouco tempo percebe que há várias pontas soltas no caso, a começar pelas contradições nos depoimentos de Eduardo e da sua mulher, passando ainda pelo facto de os empregados da casa não terem dado por nada, ou mesmo pela ausência de latidos dos cães perante a eventual presença de intrusos naquela morada, só para citar algumas incongruências, a que se junta o achado de items perdidos algures no campo de golfe, num lastro negligente.
“Acredito que a duquesa de Windsor defraudou as seguradoras ao exagerar os números e identificações das joias que haviam sido descartadas”, chegou a sustentar Leslie Field, autora de As joias da rainha: a coleção pessoal de Isabel II. “Pelo menos 30 itens que Wallis nomeou como roubados apareceram no catálogo da Sotheby’s em Genebra em abril de 1987 e foram vendidos por preços altos. Ela claramente nunca mais poderia usar essas joias depois de terem acionado o seguro. As joias estiveram desde o início num cofre em Paris e permaneceram lá”, acredita.
Há anos que o episódio também intriga o australiano Wallace, enviado à Europa para cobrir o funeral de Wallis, em 1986, e aquele que ficou conhecido como o leilão do século, com o espólio da falecida duquesa a ser licitado no ano seguinte na Suíça com grande aparato. “Genebra, que não é estranha aos super-ricos, nunca tinha visto nada parecido. Apresentado como o maior leilão do século XX, muitas das pessoas mais ricas e glamorosas do mundo reuniram-se numa vasta tenda de circo no terreno do Beau Rivage Hotel para ter a oportunidade de espreitar a fabulosa coleção de joias da duquesa de Windsor“, lê-se no prefácio e no The Daily Mail, que em junho antecipava em exclusivo o seu novo livro. “Os melhores restaurantes e hotéis estavam cheios. Caviar, trufas e foie gras eram escassos. As grandes casas de champanhe lançaram edições especiais a preços ridículos para faturar à grande. Amontoados na tenda, nas margens do Lago Genebra, estavam 1.500 convidados. Outros 700 assistiram em circuito fechado de TV no salão de baile. Detetives à paisana, em smokings e vestidos de baile alugados, tentaram misturar-se.”
[Já saiu o terceiro episódio de “Um Rei na Boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor, precisamente Wallis Simpson. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no YouTube. Já estão disponíveis o primeiro, o segundo e o terceiro episódios, mas se for assinante tem toda a série disponível]
Em The King’s Loot – The Greatest Royal Jewellery Heist in History (algo como A pilhagem do Rei – O Maior Roubo de Joias Reais da História), lançado no final de julho, o autor defende uma teoria que ao longo dos anos nunca saiu de cena, a de que o casal estaria envolvido na manobra ardilosa que levou ao desvio das joias da norte-americana, de forma a receber o dinheiro do seguro. Não será um roubo saído do século XVII, ao nível de Thomas Blood, mas ainda assim digno de discussões e especulações. “Um dos impactos quando lançamos este tipo de livros é que remexemos em muitas memórias com estas histórias. Para dar um exemplo, fui entretanto contactado por um descendente de antigos anfitriões de Ednam Lodge que me disse que corria a ideia de que boa parte das joias até seriam falsas“, conta ao Observador.
Avaliada à época em 500 mil libras (ou 17 milhões nos dias que correm), a coleção de Wallis estava segurada por 400 mil libras, um valor pago na íntegra após o desaparecimento das peças. As seguradoras concordaram até que a nova coleção de substituição deveria ser segurada pelo dobro dessa quantia. Segundo a Tatler, um ano depois dos acontecimentos, o casal levou um generoso número de peças soltas à Cartier para serem incorporadas em outros acessórios. E os rumores do seu envolvimento no suposto roubo adensaram-se.
Pontas soltas é o que não falta neste caso em particular e na história dos duques em geral. “Falo de quatro grandes fraudes no livro, relatando situações em que ora são eles os protagonistas ora os alvos. Começo com o acesso privilegiado que Eduardo sempre teve à coleção real e como entre subterfúgios e negação pública, o desvio de peças é incalculável. Por outro lado, convém também lembrar que nos últimos anos de vida da duquesa, já em estado quase vegetativo, desapareceu muita coisa da sua mansão. Aliás, basta pensar que até há bem pouco tempo antigos funcionários andavam a vender coisas avulsas online…”, descreve-nos Richard. “Penso, aliás, que o que foi leiloado em Genebra é um ínfima parte daquilo que teriam”. Uma coisa é certa: “A única coisa que lhes interessava na vida era o dinheiro. Sempre o dinheiro”, resume.
Bessie Warfield antes de ser “aquela mulher”
Resumir a relação de Eduardo e Wallis a uma linha — a história do rei que abdicou do trono por amor — poderá seduzir os leitores mais românticos ou apressados, mas este conto saído do século XX, nem sempre de fadas, escrever-se-á com inúmeras zonas cinzentas e diferentes velocidades. Pelo menos assim defendia em 2013 Anne Sebba, na obra That Woman: The Life of Wallis Simpson, Duchess of Windsor, título que desmonta análises simplistas que se enraizaram na memória popular. De acordo com a autora, Wallis não desgostava da atenção extrema de que foi alvo, do brilho das joias ou do estilo de vida proporcionado, mas a narrativa mais fidedigna é a de um príncipe que nunca desejou ser rei, emocional e moralmente instável, e que cedeu à obsessão por uma mulher com quem tinha que casar.
O título do livro, “That Woman” (aquela mulher”), reporta à forma pejorativa como a protagonista foi tratada nos corredores reais, alcunha que terá sido atribuída pela rainha Mãe, mãe de Isabel II — e, de alguma forma, a definição vaga exprime a dificuldade, que persiste até hoje, em apreender com minúcia a sua natureza. Tantos anos depois, será seguro sentenciá-la como ícone de estilo ou de emancipação, mas nem por isso o retrato psicológico será mais fácil, sobretudo quando escrutinada a dinâmica do casal. Certo é que “aquela mulher”, nota também Sebba, a quem o Politico dedicava um longo artigo em 2013, parecia destinada a tornar-se lenda desde os instantes do berço, a avaliar pelas circunstâncias do seu nascimento e primeiros anos do outro lado do Atlântico.
Estima-se que Bessie Wallis Warfield nasceu em 19 de junho de 1896, desconhecendo-se certidão de nascimento, ou eventual menção num anúncio de jornal. O cenário do parto é também ele peculiar: a Square Cottage do Monterey Inn, um popular resort da época que apanhava ambos os lados da linha Mason-Dixon, espalhando-se por quadro condados, dois em Maryland e dois na Pensilvânia. O casamento dos pais não terá contado com aprovação das respetivas famílias, apesar de ambas as origens serem distintas: os Warfield paternos consideravam os Montagues maternos de nível inferior.
Filha única, Wallis tinha apenas cinco meses quando perdeu o pai, Teackle Wallis Warfield. Cresceu em Baltimore, dependendo do dinheiro disponível da gestão irregular do tio. Em Oldfield’s, reputada escola de Maryland, fez o ensino preparatório e cultivou a reputação de fumar, fugir e namoriscar. Cedo se destacou a sua personalidade forte, que tanto enfeitiçava os da sua idade como despertava temores entre os pais das alunas. Por aqui, privou e fez amizade com filhas de senadores e grandes empresários, como Renée du Pont e Mary Kirk.
A errância acompanhou-a desde cedo, tendo passado por diferentes coordenadas ao longo da vida. Quando concluiu os estudos, Wallis mudou-se para a Florida, com a prima Corrine, casada com um capitão da Marinha dos EUA que acabara de ser nomeado chefe da então nova Base Aérea de Pensacola. Em pouco tempo, Wallis apaixonou-se por um oficial daquela base, o tenente Winfield Spencer. Conheceram-se em abril de 1916 e casaram-se em novembro do mesmo ano, na igreja episcopal de Baltimore. Em 1917, Spencer foi colocado em San Diego, onde o casal permaneceu até 1921 — curiosamente, em 1920, o príncipe Eduardo esteve neste destino, nunca chegando a cruzar-se com aquela que viria a ser sua mulher.
Win mantinha um comportamento abusivo, excedia-se no álcool, e a relação foi marcada por altos e baixos. No entanto, quando foi destacado para a China, em 1921, Wallis abandonou a ideia de pedir o divórcio, preferindo manter as aparências, escreve Sebba sobre a então jovem de 25 anos, que ao longo das páginas seguintes da obra é descrita como ávida frequentadora de festas e acumuladora de interesses amorosos, de flirt em flirt, de affair em affair. Durante as ausências do marido, Wallis entretinha-se então com a companhia do diplomata argentino Felipe de Espil.
O “Ano Lótus”, o regresso aos EUA e o segundo casamento
Em 1924, depois de uma passagem por Paris, Wallis desembarcava em Hong Hong. Em resposta à carta do marido Winfield, seguira para oriente para tentar recompor o casamento. A missão sai fracassada mas a norte-americana estava longe de desejar regressar a casa. Xangai é o destino seguinte na rota de solteira (ou, pelo menos, da vida de solteira), ao ponto de ter apelidado esta fase em território chinês de “Lotus year”, ao longo da qual foi esmerando os métodos para acionar e cultivar contactos preciosos e garantir acesso aos círculos mais restritos. É já em Beijing, numa festa, que esbarra numa velha amiga, Katherine Rogers, que vive então com o marido Herman, na China. Depois de um almoço no dia seguinte, Wallis muda-se para casa do casal, com quem sempre manteve grande proximidade.
O capítulo asiático é só mais uma zona cheia de interrogações no percurso de Wallis, muitas delas desmentidas por historiadores e biógrafos, mas os rumores teimam em acrescentar mais colorido à personalidade extravagante. Reza a lenda urbana que terá tido um romance com o genro de Mussolini, o conde Galeazzo Ciano, e que teria mesmo engravidado e abortado na sequência desta relação. E que a única frase que aprendeu a dominar em mandarim foi: “Rapaz, passa-me o champanhe“.
Em 1925, a aproximar-se dos 30 anos, Wallis preparou-se para se despedir da temporada na Ásia, para voltar aos EUA e para encontrar um novo marido. Durante a viagem de barco, sente-se gravemente doente e à chegada é internada e operada num hospital de Seattle. As dores na zona abdominal de que se queixava então, e que a acompanharam ao longo da vida, nunca foram completamente esclarecidas, especulando-se que pudessem estar associadas a diferentes origens, dos maus tratos do primeiro marido a complicações provocadas pelo suposto aborto, e ainda a efeitos provocados por um síndroma de que sofreria, condição que a tornava incapaz de responder ao estrogénio.
Uma vez recuperada, e legalmente divorciada de Win em dezembro de 1927, Wallis vê-se à mercê da boa vontade de amigos em Nova Iorque, à semelhança do que acontece quase sempre durante a sua vida, acumulando tentativas falhadas para encontrar um trabalho que lhe fizesse sentido. É naquela cidade que conhece Ernest Simpson, que se apaixona estando ainda casado, e que mais tarde se torna o seu segundo marido. Sem grande riqueza nem glamour, o pretendente conquista Wallis pela oferta de estabilidade e segurança.
A nova vida em Londres e os primeiros encontros com o príncipe
Em 1928, Wallis e Ernest, meio americano, meio britânico, mudam-se para Londres para começar uma nova vida. Ligado ao transporte marítimo de mercadorias, divorciado de Dorothea, com quem tivera uma filha, Ernest estava pronto para casar com Wallis, o que acontece em Chelsea, Londres, a 21 de julho desse ano. Os Simpson instalam-se numa casa mobilada em Mayfair, servidos por quatro criados. Em 1929, Walllis regressa aos EUA para ver a mãe, doente, que morreria em novembro, na penúria, o mesmo estado em que se encontra Wallis depois do crash da bolsa desse ano negro.
De volta a Londres, e com o negócio do marido intocado, o casal muda-se para uma casa maior e rodeia-se de mais mordomias. É por esta altura que Wallis conhece a irmã da amiga Consuelo Thaw, Thelma, viscondessa Furness e à época amante do príncipe de Gales. É a própria Thelma que em 10 de janeiro de 1931 apresenta Wallis a Eduardo, em Burrough Court. Filho mais velho de Jorge V e da rainha Maria, herdeiro aparente do trono britânico, Eduardo (conhecido entre os mais próximos simplesmente como David) irá ao longo dos anos seguintes cruzar-se por diversas vezes com Wallis, nas mais variadas festas e outras ocasiões sociais. Por esta altura, os Simpson vão vivendo acima das suas possibilidades e as dificuldades financeiras espreitam.
Um dos mitos que Anne Sebba tenta desfazer é o de que a abdicação foi inesperada. Outro, já demolido há muito, é o de que Wallis (que 11 dias depois da abdicação ganhava a contra gosto uma estátua de cera no museu Madame Tussaud, tamanho o burburinho no reino) foi a única fixação do duque de Windsor. Com efeito, em 1918, Eduardo conhece Freda Dudley, então casada com o deputado liberal William Dudley Ward. Em cartas dirigidas a Freda, o príncipe descreve a monarquia como uma relíquia do passado e admite que só evitava o suicídio para poupar o pai. Da “loucura” à “impotência ética”, são vários os rótulos que conselheiros e secretários particulares do herdeiro lhe reservam nesses anos, para não falar do perfil extremado, dos tiques nervosos, da insensibilidade social, do excesso de exercício físico, da forma obsessiva como arrumava a roupa e de outros traços citados pelos especialistas sondados por Anne. Não é a única obra que ajuda a iluminar outras versões, ou pelos menos alguns aspetos que movem as peças desta trama num outro sentido.
Em 2020, Anne Pasternak lança A Duquesa Americana – A verdadeira Wallis Simpson e explora a linha segundo a qual Wallis foi mais uma vítima da abdicação do que vilã e obreira de uma engenhosa teia para atrair e cercar um príncipe impróprio para reinar. Simpson valorizava o interesse de Eduardo, mas, tal como o resto da nação, não terá esperado que a paixão resistisse ao tempo e em especial à ascensão ao trono. Nem terá antecipado a extensão do ciúme, natureza possessiva e negra do príncipe, que não eram segredo nenhum para o clã real, a igreja, ou o Parlamento. Segundo Pasternak, Wallis foi o bode expiatório perfeito para destronar a alma perturbada que se escondia por detrás de uma fachada charmosa.
Com efeito, quando Thelma se ausenta em viagem, o então ainda príncipe procura nova fonte de encanto e decide canalizar toda a sua admiração para Wallis. Visita-a diariamente, telefona-lhe várias vezes, e escapa à possível indignação de Ernest, lisonjeado com o interesse daquele que imagina que virá a reinar num futuro próximo.
O verão que desata o romance e o herdeiro que abdica do trono
O verão de 1924 revela-se decisivo. É sem Ernest que Wallis se junta ao príncipe numa viagem a Biarritz, seguidos pelo casal Roger, donos da Villa Lou Viei na riviera francesa, e pela tia de Walllis, Bessie, com o cruzeiro em que embarcam a servir de palco ao crescendo amoroso e ao “pisar da linha” definitivo. John Aird, antigo elemento do staff de Eduardo, haveria de recordar como o príncipe passara a seguir “W como um cão”. De regresso a terra firme, e ao Reino Unido, o herdeiro insiste em apresentar a nova paixão aos monarcas, e os boatos em Londres adensam-se, alavancados pelo rendimento que terá oferecido a Wallis e pelos dispendiosos presentes. Quando morre o rei Jorge V, em 20 de janeiro de 1936, quebram-se todos os protocolos e o escândalo sobe de tom: o príncipe assiste à sua proclamação como rei Eduardo VIII a partir de uma janela do palácio de St. James, na companhia de uma ainda casada Wallis Simpson.
Estala uma guerra civil em Espanha? Hitler viola o Tratado de Versalhes? A militarização da Alemanha segue a preocupante ritmo? A agitação social e política pouco apoquenta um novo soberano cada vez mais alheado do contexto e respetivos deveres, que mal lê jornais e passa a maioria do tempo ao lado de Wallis, mirabolando planos para conseguir que a reconheçam como rainha, perante a oposição feroz da família real. Eduardo, que se recusa a ocupar o trono sem a norte-americana ao lado, terá garantido o afastamento de Ernest perante o compromisso de cuidar de Wallis, num acordo que selava o seu mantra: “A única coisa que interessa é a nossa felicidade”.
Num país em alvoroço institucional, o primeiro-ministro conservador Stanley Baldwin lidera a oposição ao casamento com Wallis, ao desrespeito pelos valores monárquicos tradicionais, e é o mensageiro de um ultimato: o soberano deve escolher entre o trono e o fim da relação. O clima de pressão adensa-se graças à influência junto da Câmara dos Comuns, dos governos dos domínios britânicos, e da manipulação de informações na imprensa. O documento formal de abdicação é assinado a 10 de dezembro de 1936, perante os irmãos mais novos, Albert, Duque de York; Henry, duque de Gloucester; e George, duque de Kent.
O tempo, a história, os arquivos e correspondência destes anos, resgatados décadas mais tarde, haveriam de afinar perceções. E de permitir especular sobre o rumo que a coroa teria tido se por acaso os planos de Whitehall tivessem sido bem sucedidos. Se o afastamento de Eduardo não parece ser propriamente uma decisão voluntária, Richard Wallace não tem dúvidas: “Ele abdicou porque quis. O primeiro-ministro não podia obrigá-lo a abdicar”.
Quanto a Wallis, várias fontes sugerem de facto que nunca quis ser rainha, ou sequer pretendeu ou exigiu a saída de cena de Eduardo, preferindo antes a condição de amante, enquadra o escritor, mas para o príncipe o título de duquesa de Windsor não chegava. Se os bastidores estavam a ferro e fogo, para a maioria do público britânico, a história foi desconhecida até à abdicação, pelo menos a avaliar pelo blackout na imprensa local. É verdade que os rumores de que o Príncipe de Gales e futuro rei se perdera de amores pela divorciada americana Sra. Wallis Simpson circularam pela alta sociedade por algum tempo e foram confirmados por histórias de fofocas retiradas de jornais estrangeiros — mas apenas os jornais do continente e dos EUA se mostravam interessados em cavalgar a onda, enquanto os editores de Fleet Street silenciavam o escândalo num pacto conjunto.
“É-me impossível carregar o pesado fardo da responsabilidade e cumprir os meus deveres como rei como gostaria de fazer, sem a ajuda e o apoio da mulher que amo”, dirá Eduardo à nação no dia seguinte à abdicação, aos microfones da rádio. Wallis, que nos últimos meses de 1936 se distanciara de sua alteza real tentando esfriar os ânimos, escapara-se no Buik do rei para Cannes, para mais um momento de ócio, onde escutou a declaração. Segundo Anne Seba, na sequência envia uma carta ao ex-marido, Ernest, desabafando sobre “a bagunça” criada por um monarca e amante que comparava a “Peter Pan”. “Oh, querido, a vida não era adorável, doce e simples?”.
Depois da saída de cena, Eduardo segue sozinho para a Áustria, onde se instala em casa dos barões de Rothschild, de forma a não comprometer o desejado processo de divórcio de Wallis (algo que não só era difícil de obter à época, como seria rejeitado se ficasse provado que a mulher cometera adultério). A separação foi finalizada oficialmente em maio de 1937, com a agora novamente recém-divorciada a recuperar o apelido de solteira, Warfield, que nunca chegou a ter filhos. Segundo o seu biógrafo Marc Bloch, tal dever-se-ia ao facto de Wallis sofrer de síndrome de insensibilidade a androgénios, uma doença recessiva ligada ao cromossoma X — teria nascido com um cromossoma XY, geneticamente masculino, mas com recetores insensíveis à testosterona acabou por se desenvolver como mulher, apesar de não possuir ovários ou útero.
O frenesim da Villa Windsor, onde Walllis recebia como uma rainha
Nesse mesmo mês, o casal reencontra-se por fim no Château de Candé, em Monts, França. Mas a tão esperada boda, que decorre no vale do Loire, na residência do industrial Charles Bedaux, está longe do sucesso que outros tempos de euforia sugeririam. Amigos presentes, são poucos. Membros da realeza, nem vê-los. E até o reverendo R. Anderson Jardine, que celebra a cerimónia religiosa, é ostracizado quando regressa ao Reino Unido, acabando por mudar-se para os EUA. Nem tudo é um flop, claro, a começar pelo icónico vestido de noiva azul, do costureiro norte-americano Main Rosseau Bocher, cujo tom inspirado nos seus olhos se eternizou como “Wallis Blue”, e cujas réplicas saíram a todo o vapor do outro lado do Atlântico, solicitadas por outras jovens casadouras. Na cabeça, Wallis exibe uma espécie de halo com tule azul cuja base incluía penas de avestruz, de Caroline Reboux. O look nupcial é rematado com umas sandálias Georgette of Paris. Ah, falta falar das joias, claro. Ao pescoço, a pregadeira art déco com diamante e safira da Van Cleef. No pulso esquerdo, a pulseira Cartier com os seus pequenos amuletos, adornada com agora sete cruzes.
Já marido e mulher, o gosto pelas viagens segue a bom ritmo, da lua de mel a bordo do Expresso de Oriente à polémica deslocação à Alemanha em 1937, com direito a encontro e foto para a posteridade com Adolf Hitler, com a dupla a trepar mais um degrau na escadaria da infâmia. Pelo caminho, uma passagem por Portugal — e um motivo extra para escutar o mais recente podcast plus do Observador, “Um Rei na Boca do Inferno”, sobre essa escala em solo nacional e o plano dos nazis para raptar Eduardo.
Depois de um “verão português entre sardinhas” (segundo Richard Wallace mais uma nova “obsessão” desenvolvida pelo príncipe, que aproveitou ainda para jogar golfe e bronzear-se) o casal rumaria às Bahamas, ainda em 1940, onde o duque foi nomeado governador, uma posição em Nassau que a dupla via como uma punição, e que manteve até 1945.
No rescaldo da II Guerra Mundial, os duques de Windsor instalam-se em França, onde entretêm uma lista de celebridades como Elizabeth Taylor, Richard Burton, Onassis, Maria Callas ou Marlene Dietrich. É em Paris, no Bois du Boulogne, que ocupam a partir de 1946 uma mansão originalmente desenhada para Georges-Eugéne Haussmann, com 14 quartos, trilhando, naquela que passaria à História como Villa Windsor, um destino diferente do espírito que imperava na ilha. Fora cedida a título de empréstimo por valor simbólico pela câmara de Paris, que assim julgaria contribuir para a dinamização de uma economia que seguiria o afluxo de visitantes ricos e famosos a este exílio dourado que se afigurava a um cruzamento entre Buckingham, Versalhes e o Café Society, chega a definir em 1963 a revista Architectural Digest, quando os visita para escrever um artigo.
Aqui se vive o zénite da opulência, cenário de toda a parafernália que o par foi “recebendo, roubando e comissionando” ao longo dos anos, escreve Richard Wallace. Tinham uma equipa de 30 empregados, incluindo um motorista para cada um. “A duquesa era meticulosa. Quando o último convidado chegava a uma festa dos Windsor, o mordomo subtilmente notificava-a dando uns últimos retoques na sua roupa no quarto. Lá aparecia então maravilhosa no topo das escadas, como uma rainha. O corrimão estava decorado com centenas de orquídeas e os convidados petiscavam caviar enquanto assistiam ao espetáculo”.
Ao jantar, Walllis usava um pequeno lápis de ouro junto ao prato e um discreto bloco de notas onde ia registando todos os aspetos a retificar da refeição. Mais tarde, este bloco tornou-se um caderninho também ele de ouro preso ao seu pulso por uma corrente dourada. O pormenor e exotismo estende-se a outros aspetos. Segundo Richard, os lençóis eram passados a ferro todas as noites e mudados a cada manhã, as notas deviam ser acabadas de sair do banco ou eram engomadas, os arranjos florais das mesas eram perfumados com Diorissimo, e de noite não se usava joias de ouro, apenas de platina. Os três cães pugs, Trooper, Disraeli, e Black Diamond comiam em tigelas de prata e eram perfumados com Dior.
Depois do fim da II Guerra Mundial, o outono de 46 trouxera a promessa de um alívio no horizonte para a família real britânica. Com Jorge VI e Isabel no trono, o moral da nação entusiasma-se com a notícia do noivado entre a herdeira, a princesa Isabel (mais tarde Rainha Isabel II) e o príncipe Filipe da Grécia e Dinamarca. Mas quase uma década depois da abdicação, o duque e a duquesa de Windsor continuam desenraizados, em busca de um tempo, um espaço e sobretudo um propósito, apesar de todo o escapismo ensaiado no seu refúgio gaulês. A correspondência com amigos terá convencido o casal de que faria sentido ensaiar um regresso a solo britânico. A visita aos Dudley, perto de Windsor Great Park, é a primeira vez que regressam ao reino após o fim do conflito.
Em 1951, o duque edita o seu livro de memórias, contando com o ghostwriter Charles Murphy, A King’s Story. Em 1956, é a vez da duquesa lançar The Heart Has Its Reasons. Em 1967 são recebidos pela primeira vez pela rainha Isabel II, para a reabilitação possível da imagem. Dois anos depois, concedem uma entrevista a partir de sua casa a Kenneth Harris. Até 1972, quando Eduardo morre de cancro da garganta, dividem a intensa vida social entre a Europa e os EUA, onde mantêm uma quotidiano não menos exuberante e faustoso, sendo convidados regulares dos presidentes americanos Dwight D. Eisenhower e Richard Nixon. Entretidos com a arte, as antiguidades, e com os gastos em geral. “Eles fizeram pelas compras o que Einstein fez pela física”, chegou a dizer Bruce Wolmer da revista Artes and Antiques, citado pela CNN.
Entre caros alugueres em Long Island ou Nova Iorque e o permanente usufruto de residências de amigos e conhecidos, Le Moulin de la Tuilerie, refúgio a 20 km de Paris, foi a única casa que chegaram a possuir.
Amor, conveniência e rendimentos duvidosos
Em 2018, em Wallis in Love, mais um volume sobre a história da mulher que mudou o rumo da monarquia britânica, Andrew Morton recuperava a biografia da “imaginativa, ambiciosa e mimada cujas primeiras palavras terão sido ‘eu, eu'”. A mesma, acrescenta Anne Sebba que, à medida que foi envelhecendo, viu com amargura e frustração o decréscimo do interesse da imprensa, e dos nomes influentes da política e das artes, que em outros tempos faziam fila por um pedaço de atenção dos Windsor. Se o amor nem sempre foi o principal combustível, é quase certo que as últimas décadas viram aprofundar o fosso. “Ela raramente o vinha ver”, garantia ao Baltimore Sun Juliana Alexander, a enfermeira norte-americana, citada por Richard Wallace, que acompanhou o duque no leito de morte, confirmando as suspeitas da distância entre o casal. A partir de certa altura tornou-se claro que Wallis “não suportava aquele homenzinho”. Escreveram diferentes livros de memórias, comiam separados e bebiam muito.
“Nada mais em sua vida lhe deu qualquer sensação de realização além de seu casamento com Wallis”, escreve Sebba. “Para ela, a devoção servil às vezes era claustrofóbica e não tinha medo de demonstrá-la. Mas o amor é impossível de definir e, no caso deles, especialmente. Poucos de entre os que os conheciam bem descreveram o que compartilhavam como amor“, garante a autora. Em 2011, no Sunday Times, recordava a descoberta da correspondência de Wallis Simpson e como consultar este arquivo mudou e confirmou muitas crenças prévias. “Ela tinha bons motivos para estar aterrorizada com seu futuro quando tudo o que queria era uma aventura, um canto do cisne antes dos quarenta anos, apenas para se assegurar de que ainda era atraente para os homens e para dar ao sr. e à sra. Simpson uma vantagem na sociedade. Mas ficou fora de controle quando Eduardo ficou loucamente obcecado por Wallis, a qualquer custo”.
Após a morte do marido, Wallis deixa praticamente de ser vista em público. Em bom rigor, por essa altura acusa já uma confusão mental que resulta de arteriosclerose. Cada vez mais debilitada, cede à demência, e passa os derradeiros anos praticamente em condição de reclusa. Financeiramente, vive dos bens deixados pelo marido e ainda por uma mesada atribuída por Isabel II.
Aliás, o que permitiu alimentar a vida milionária do casal é umas primeiras perguntas quando se começa a desbravar a sua cintilante rotina ao longo de anos. A mesada de Eduardo, por exemplo, terá sido complementada por favores a governos, comércio ilegal de moeda, isenções fiscais servidas pelos franceses, entre outras benesses que o estatuto foi granjeando. Em 2021, o documentário Ellizabeth II & The Traitor King: A Secret Friendship revelava ainda a forma generosa (ou colossal) como a coroa britânica foi patrocinando mês após mês os gastos dos Windsor desde a abdicação. Já anos antes, em 2003, a revelação de uma carta de sete páginas do duque de Windsor, escrita a partir da villa onde se hospedava em Cannes um ano após a sua abdicação, revela o seu ressentimento a propósito da chantagem do governo sobre os seus assuntos financeiros, com o reino a forçar o exílio ou a perda de rendimento. Um documento do Tesouro então divulgada mostrava que recebia 410.000 libras por ano (mais em termos reais do que Isabel II recebia nessa altura).
Das quedas aos derrames vários, chegada a 1980 as notas outrora livres de vincos de pouco valem a Walllis. Já não consegue sequer falar, e a artrite ataca de tal forma as mãos que deixa de conseguir segurar a aliança. Discos de Cole Porter tocam no quarto para tentar animar-lhe a memória. Para além das presenças do médico e de enfermeiras, as visitas na villa de todos os bailes esvaziaram-se por completo. A cerca de dois meses de celebrar 90 anos, a duquesa de Windsor despede-se da vida a 24 de abril de 1986, não resistindo a uma pneumonia. Dias depois, os seus restos mortais são levados de Paris para o Reino Unido, onde é observado um período de luto entre 25 e 29 de abril, dia do seu funeral, a que acorre Isabel II e os principais membros do clã real. Por desejo expresso de Eduardo, é sepultada ao lado do marido em Frogmore, Windsor, no Royal Burial Ground, curiosamente muito perto de onde o príncipe Harry e Meghan Markle viriam a morar temporariamente. “Já não era bem uma vida”, desabafava Diana Mosley, amiga e vizinha de longa data de Wallis, que assistiu à triste decomposição da duquesa.
A coleção de joias e o estilo infalível da mulher que usou a roupa como arma
Os famosos diários do cronista social Henry “Chips” Channon expõem os mimos de um companheiro que não poupava nas ofertas à duquesa, muito antes de se precipitar a transição no trono. “Em Londres só se fala da sua coleção de joias. “O rei deve dar-lhe novas joias todos os dias… Ele adora-a… é louco por Wallis, louco… Na Cartier estão a refazer joias magníficas, na verdade fabulosas, para Wallis, e com que propósito se ela não vai ser rainha?”.
Se a relação de Eduardo e Wallis é uma das mais fantásticas do século, a História raramente lhes reservou um lugar solar, seja pelo desafio de convenções ou pelas acusações de traição à pátria. Simpson nunca seria rainha, ou sequer tratada como Sua Alteza Real, mas a vida à margem do clã real não a impediu de ver crescer a olhos vistos a sua coleção de pedras de valores imponentes, ou de conservar um magnetismo duradouro.
Imune a estaticismos, Wallis empenhou-se em ir transformando estes acessórios ao sabor dos tempos e tendências. Em 1937, por exemplo, encomendou à Van Cleef & Arpels uma invulgar pulseira com esmeraldas, diamantes e rubis cujo elemento central podia ser destacado e usado como uma pregadeira.
Com efeito, ao longo da sua vida juntos, o duque e a duquesa recrutam os principais fabricantes do século XX para fomentar um acervo cujo número exato ou origem rigorosa é impossível precisar. Qual ícone de moda, e além da Cartier e da Van Cleef, Simpson contou com a arte e engenho de David Webb, Darde & Fils, Seamen Schepps, Verdura, Harry Winston e Belperron.
Quase todos desfilam nesse leilão nos primeiros dias de abril de 1987, cerca de um ano após a morte da duquesa, cuja receita deverá reverter a favor do Instituto Pasteur, segundo desejo de Wallis. Entre pulseiras, colares, anéis, brincos, abotoaduras, pregadeiras, alfinetes e carteiras, que somam 306 lotes, as dúvidas suscitadas são tão reluzentes quanto as peças em exposição. “Num negócio em que a proveniência é tudo, o leilão das jóias da duquesa, tal como apresentado no catálogo oficial, foi um esquema de alto calibre”, defende Wallace, lembrando ainda as suspeitas que sempre pairaram sobre Suzanne Bloom, a excêntrica advogada de Wallis que poderá ter desviado e vendido inúmeras peças que pertenciam a Simpson.
À venda em Genebra juntam-se pertences do duque, como alfinetes, caixas de lacre, cigarreiras, caixas de rapé, molduras, espadas, relógios, ou fivelas. Ao cair do segundo dia de licitações na Sotheby’s, a coleção atingia o estrondoso valor de mais de 50 milhões, um recorde para um espólio particular desta natureza. Um dos destaques foi para a bracelete que Eduardo ofereceu à então noiva duas semanas antes do casamento. E ainda para o anel com esmeraldas e diamantes que comemorou de forma secreta o seu compromisso, ainda em 1936, com a inscrição “Agora somos um do outro” — e que foi arrematado por 1.98 milhões de dólares.
A partir de Los Angeles, Elizabeth Taylor, amiga do casal, pega no telefone para fazer uma oferta sobre uma pregadeira com o desenho de uma avestruz, enquanto a atriz britânica Joan Collins compra um pendente com safiras.
As voltas com o acervo estender-se-iam a la longue. Em fevereiro de 1998, adiado desde 97 devido a morte de Diana, princesa de Gales, 44 mil items de bric a brac do casal são leiloados em Nova Iorque. Trata-se de “coisas que pediram ’emprestadas’ à coleção real, herdadas, ou simplesmente roubadas”, sentencia Wallace, que descreve como este espólio dos protagonistas está agora à mercê não daquela fauna ilustre de Genebra mas de uns quantos burgueses americanos de que os Windsor desdenhariam, incluindo Mohammaed Al Fayed, que se empenha em recuperar a Villa Windsor depois da morte da duquesa (como se vê em The Crown).
Em 2010, novo leilão volta a trazer à praça alguns items. Um proprietário anónimo, que adquirira as peças em 1987, desfazia-se agora da sua coleção.Em novembro de 2021, foi possível licitar sobre uma pulseira Cartier que outrora pertenceu a Wallis. De entre a sua coleção estava longe de ser a peça mais sensacional, mas não pecava em matéria de valor sentimental.
No seu livro de memórias, O coração tem suas razões, Wallis recordaria um episódio da infância que testemunha a sua atitude em relação ao sucesso. Depois de uma birra de bater o pé, terá persuadido a mãe a trocar uma faixa azul por uma encarnada. De acordo com a sua tia Bessie, achava que dessa forma os rapazes iriam reparar mais nela. “Não sou uma mulher bonita. Não tenho nada que atraia os olhares, a única coisa que posso fazer é vestir-me melhor que os outros”, chegou a desabafar.
Com uma silhueta particular, as suas escolhas de moda foram decisivas e estratégicas rumo à consagração. Sabia de tal forma o que tinha em mente que muitos designers não tiveram vida fácil perante as exigências da duquesa. Para uma viagem ao guarda-roupa, há muito por onde escolher, de Elsa Schiaparelli a Vionnet, Christian Dior, Givenchy e Yves Saint Laurent após a guerra. Sem esquecer os inseparáveis sapatos Roger Vivier. Tudo menos Chanel, já que Coco ter-se-á recusado a alterar as suas criações para ir ao encontro dos planos de Wallis.
Sobriedade de dia e fantasia de noite era a sua máxima de estilo, dos momentos mais desportivos aos eventos mais formais. Cecil Beaton, lembra Wallace, dizia que Wallis Simpson era compacta como uma “mala de viagem Louis Vuitton… arrumada, limpa, imaculada“.
Em 1996, na sua biografia, Faking It, a joalheira Kenneth Jay Lane recordava a sua amizade com a duquesa. Conhecera-a nos anos 60, através de Diana Vreeland, editora da Harper’s Bazaar, e do meio social nova-iorquino, mas é de 1972 que recorda um episódio peculiar que ilustra o humor e personalidade de Simpson. A caminho da propriedade de Annette de la Renta em New Jersey, passam por Times Square, onde surgia em grande destaque a estreia do polémico “Garganta Funda”. ‘Oh, meu Deus! Garganta Profunda — ouvi dizer que a Diana Vreeland viu isso. E eu disse: ‘Sim, levei-a para ver; ela insistiu. ‘Leva-me?'”. “Eu disse: ‘Se insistir’, mas nunca o fiz.”. À Bazaar, Jay Lane destaca ainda os dotes de “incrível anfitriã” de Wallis, e a forma como planeava ao detalhe a receção dos convidados na sua Villa Windsor. E, claro, o estilo marcante e sem comparações no panorama atual. Kate Middleton? “Bom, ela… não é nada assim. Percebe o que quero dizer”.
Na vésperas do seu casamento com Eduardo, a mulher “mais odiada” do mundo protagonizou uma simbólica campanha de revitalização da imagem, deixando-se fotografar para uma produção da Vogue pelo mestre Cecil Beaton, que a visitou em Candé. Wallis surge então com um vestido com o padrão que Dali criou de propósito para esse episódio em 1937. Outros estampados desfilariam pelas suas aparições públicas, incluindo os bordados de macacos no requintado vestido com que se deixou fotografar em 1 de janeiro de 1960, para não falar do recorrente motivo das folhas. Em nenhuma prateleira se esconderia o marasmo quando o tema eram os looks, aparições públicas ou presenças em revistas.
Em 1967, para ser recebida por Isabel II, elegeu um conjunto sixties em azul marinho e branco, de riscas verticais e as usuais pérolas. Para aprofundar os meandros do estilo, da roupa aos acessórios e ainda passando pela decoração, nada como recuperar The Windsor Style, que Susy Menkes lançaria em 1988.
Os lábios vermelhos, as cores vibrantes que espelhavam o seu globe trotting, as vistosas pregadeiras, os cintos a marcar a fina cintura e as bandanas remataram a imagem de marca. Do estilo flapper dos anos 20 às lantejoulas, Wallis não abrandou o registo. Já depois dos 80 anos, ao lado de Nixon, brilhava em todo o seu esplendor e dramatismo. E uns anos antes, quando Eduardo morreu, o serão de Hubert de Givenchy estendeu-se até de manhã para terminar o conjunto negro que Wallis vestiu no funeral, incluindo o pesado véu que contrastou com os chapéus escolhidos pelos restantes elementos femininos dos clã real. Para um pouco mais de dramatismo perpétuo.