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Adriana Calcanhotto, a encantadora de enganos: "Eu quero é errar, muitas vezes"

“Errante” é o 13.º álbum de uma carreira com mais de 30 anos. Em maio e junho mostra-o ao vivo entre nós, já com nove datas confirmadas. Antes, em entrevista, diz-nos porque é que falhar a salva.

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Adriana é errante por natureza. Toda a sua obra é, em si, um cruzamento de errâncias. Da música à poesia, passando pelo universo infantil (como compositora e ilustradora), a Mulher do Pau Brasil não tem medo de se experimentar em vários campos, fartando-se de acumular erros pelo caminho. “O errar no sentido que me interessa mais é o de arriscar”, elucida-nos numa entrevista pontualíssima, passada entre São Paulo e Vila Real, uma das paragens da digressão portuguesa.

O seu mais recente trabalho, que é lançado esta sexta-feira, 31 de março, é a sua última manifestação errante. O adjetivo está-lhe no nome e ela explica-nos como chegou até ele. “Eu tinha um reportório como nunca tinha tido antes, com 18 canções inéditas guardadas. É uma safra pré-pandemia. No final de 2021, gravámos as canções todas, mas com a passagem do tempo, algumas foram caindo naturalmente. Fez-se uma peneira e aí eu entendi que o disco era Errante”.

É-lo na musicalidade, como o é nas letras, um despejar de ressentimento sentimental e de coração partido que parece vir de uma mesma desilusão de amor, não nos tivesse a compositora desvendado que as letras foram escritas entre 2016 e 2020, “já nem lembro direito em que situação é que as fiz”, atira num sopro vindo das nuvens. “Mesmo quando eu fiz o disco da pandemia [ (2020)], eu já tinha estas canções.”

[“Pra Lhe Dizer”:]

A grande maioria – e disso ela lembra-se bem – foi feita na estrada, como o single “Horário de Verão”, escrito no Porto, durante a digressão de Margem (2019). A canção é um cruzamento entre o jazz e a MPB em que Adriana nos dá ataques de agudos cortantes, tão seus, mesmo notando-se o evidente amadurecer da voz, e se liberta de métricas para cantar os versos melancólicos “se alguém pudesse comandar / o que lhe vai no coração / mudar as luzes de lugar / horário de verão”.

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A arte de incorporar o acaso

Liberdade formal é a tónica do disco e nada melhor do que o jazz para deixar cair todas as amarras. “Depois de estarmos confinados, irmos para um estilo de música com muitos dogmas, encaixotado, não me pareceu que era o que queríamos. Não só eu, mas esses meninos também, grandes músicos que são compositores e que estiveram comigo no estúdio”.

São eles Alberto Continentino, contrabaixista que tem o trio de jazz e MPB Continentrio; Domenico Lancellotti, homem das mil e uma percussões, fundador do grupo +2 com Moreno Veloso e Alexandre Kassin e que em maio andará em digressão nacional com Norberto Lobo para apresentar o seu mais recente projeto Pororó; e Davi Moraes, guitarrista e filho do icónico Moraes Moreira, dos Novos Baianos. “Eu gosto muito de estar perto de pessoas mais jovens do que eu. Eles ouviram os meus ídolos, a minha geração e agora fazem o lance deles. Eu aprendo demais quando estou junto deles”, confessa Calcanhotto, de 57 anos.

A voz e o violão são da inteira responsabilidade da cantautora, que pisou pela primeira vez Portugal em 1998, na digressão de Marítmo (1998), disco de sucessos intemporais como “Vambora”, “Mais Feliz” ou “Vamos Comer Caetano”, manifesto de clara influência modernista. Cantar enquanto toca tem, para Adriana Calcanhotto, a vantagem de poder ir acomodando a voz à melodia e vice-versa, como uma vez Chico Buarque explicara. “A gente fica acomodando”.

“Quanto mais ando no mundo, mais a minha porção brasileira, que não é a da escolha, sai reforçada. Não posso nem quero ser outra coisa que não isso. Mesmo tendo essas coisas todas no meu sangue, eu sinto-me brasileira.”

Nesse acomodar – que pode estar presente no arrastar da palavra “no” em “Jamais Admitirei” (porque hoje eu me peguei, assim tipo me afogando nooooo seu beijo) ou na troca de expressões aquando da repetição de estrofes (numa ele foi comprar cigarro, noutra ele foi pro ensaio [“Levou Para o Samba a Minha Fantasia]) – Calcanhotto aceita o erro como sublimação do acerto.

“Eu quero é errar, muitas vezes. Muito mais do que não errar. Adoro incorporar o acaso, sou completamente discípula de John Cage nesse sentido. Se ficarmos abertos a isso, ao acaso incorporado, muitas vezes soa melhor. Há muitos exemplos disso nos meus discos” e este, diz-nos, não é exceção. Nem vale a pena perguntar por exemplos, porque Errante está “cheio de erros”, lança numa gargalhada.

“Quanto mais ando no mundo, mais a minha porção brasileira (…) sai reforçada”

“Tenho o corpo italiano
O nascimento no Brasil
A alma lusitana
A mátria africana
E em tudo o que faço sou não mais do que impostora 
Vivo no mundo da lua mas atravesso desertos 
Sendo que prefiro os mares
Parte do sangue judeu 
Um nome que não é só meu 
E a crença na alegria como prova dos nove”

Assim começa Errante, com “Prova dos Nove”, o passaporte de Adriana Calcanhotto escancarado na capa, mesclando o samba e o funk, a música de herança judaica e a itinerância de Lhasa de Sela, toda a sua ancestralidade condensada em poema-canção. O mundo está-lhe no corpo, a casa também – nômade é quando a casa é o corpo, canta na faixa “Nômade”.

disco

Quanto mais anda pelo mundo, prestando atenção em cores das quais não sabe o nome, (cores de Almodóvar / cores de Frida Kahlo, cores), Calcanhotto vai-se enraizando na sua brasilidade, condição escolhida e herdade. “Quanto mais ando no mundo, mais a minha porção brasileira, que não é a da escolha, sai reforçada. Não posso nem quero ser outra coisa que não isso. Mesmo tendo essas coisas todas no meu sangue, eu sinto-me brasileira.”

A sua forma de encarar esta condição vem de há muito tempo, da sua adolescência, quando com 15 anos se apaixonou pela poesia de Oswald de Andrade, percursor do movimento antropofágico e modernista brasileiro. Adriana foi-se devorando e reinventando de um modo aberto, incorporando todos os acasos da vida, mas mantendo a essência intocável, tal como Caetano Veloso, Maria Bethânia ou os Doce Bárbaros o faziam na era tropicalista, um período que a influenciou bastante. “De certa forma, aquela ligação com o tropicalismo foi um caminho para mim.”

Isso tinha mais a ver com ela do que propriamente o rock do Rio Grande do Sul, confessa, estado de onde é natural: “como eu também não entendia inglês, o rock britânico e americano não me dizia nada, literalmente. Não tinha o que a música brasileira tem, o swing”. Não tinha o balanço e a palavra, essenciais na obra de Calcanhotto. Ainda assim, em Errante encontramos um poema escrito em inglês, “Lovely”, cantado de um modo ranchera, arrastado e dolorido.

"Errante" escreve-se entre o samba e os ritmos de matriz africana de “Levou Para o Samba a Minha Fantasia”, o arrastar do rock, com cheirinho a fado e a Dead Combo de “Era Isso o Amor?”, um saltinho à Baía em “Larga Tudo", a lira sefardita de “Quem te Disse?” e o caminho com poeira country e com uma leve cadência de xote de “Pra lhe Dizer”.

“I can be whoever you want me to be / as you can see I’m formless”, tal como “formless” é o disco, cheio de balanços, experimentações e takes completamente diferentes uns dos outros: “Às vezes gravávamos duas ou três vezes e escolhíamos o que tinha mais magia”, diz. Tudo isso assentando na linguagem fluída do jazz.

Errante escreve-se entre o samba e os ritmos de matriz africana de “Levou Para o Samba a Minha Fantasia”, o arrastar do rock, com cheirinho a fado e a Dead Combo de “Era Isso o Amor?”, um saltinho à Baía em “Larga Tudo”, lembrando o tocar artesanal de uma Edith do Prato, a lira sefardita de “Quem te Disse?” e o caminho com poeira country e com uma leve cadência de xote, intricada nos sons da floresta indígena, de “Pra lhe Dizer”, segundo single apresentado.

Por altura do lançamento de “Pra lhe Dizer”, Adriana escreveu que a faixa é “uma dessas canções que inaugura, decanta, retoma e volta a inaugurar. E isso na estrada vai indo”. Como dizia o poeta andaluz Antonio Machado Ruiz, cantado por Joan Manuel Serrat, “caminante, no hay camino / se hace camino al andar”. Ou como diz Calcanhotto, “eu vou deixar a minha solidão sozinha e caminhar / o caminho é feito daquilo que se andar / (…) eu vou ali ser feliz, não volto mais” [“Larga Tudo”].

Entrando em Portugal através da poesia

Felizmente, isso não se aplica a Portugal. Teremos a sorte de ver Adriana Calcanhotto regressar ao nosso país entre maio e junho e não apenas a Lisboa (26 maio, CCB) e ao Porto (31 maio, Casa da Música), mas também a Estarreja (27 maio, Cine-Teatro), Ponta Delgada (29 maio, Teatro Micaelense), Ourém (2 junho, Teatro Municipal), Vila Real (3 junho, Teatro de Vila Real) e Faro (23 junho, Teatro das Figuras). “Sempre que eu vou a Portugal, faço questão de ir a lugares que ainda não conheço”.

Embora se foque no último álbum, o concerto que em breve passa por Portugal terá músicas mais antigas que fazem a trajetória da carreira de Calcanhotto

LEO AVERSA

A digressão começa simbolicamente em Coimbra (24 maio, Convento São Francisco), cidade que a nomeou embaixadora da Universidade em 2015 e na qual Adriana viveu, dando aulas e fazendo residências. “Foi um período riquíssimo”. A vontade de voltar para um novo projeto, apesar dos muitos compromissos que tem no Brasil, é grande. “Agora quando aí for, devo conversar para ver o que vamos aprontar para o ano que vem”.

Foi durante o período em Coimbra que Calcanhotto concebeu o espetáculo “A Mulher do Pau Brasil”, remetendo para o nome da digressão dos anos 80, ainda a cantautora vivia em Porto Alegre. Idealizada como concerto-tese, a apresentação foi inspirada no “Manifesto da Poesia Pau Brasil” de Oswald de Andrade. Dela saiu, por exemplo, “Noite de São João”, poema de Alberto Caeiro tornado canção.

A ligação de Calcanhotto com a poesia portuguesa é conhecida. Admiradora da obra de Mário de Sá-Carneiro, da qual musicou o poema “O Outro”:

“Eu não sou eu nem sou o outro
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro”

“Desde a primeira vez que fui a Portugal, as pessoas iam aos meus concertos e eu saía de lá com malas e caixas de livros oferecidos para conhecer o país. Era uma coisa completamente espontânea, numa quantidade que eu entendi como um desejo coletivo.”

Foi Fernando Pessoa que ouviu um dia Bethânia declamar e nunca mais dele se esqueceu – “aquilo foi para mim uma iluminação”, diria em entrevista ao Expresso, em 2017 – e de outros nomes antigos e contemporâneos, de Gil Vicente a Florbela Espanca e Adília Lopes, Adriana considera mesmo que foi a poesia que a aproximou do “Portugal profundo”. “Desde a primeira vez que fui a Portugal, as pessoas iam aos meus concertos e eu saía de lá com malas e caixas de livros oferecidos para conhecer o país. Era uma coisa completamente espontânea, numa quantidade que eu entendi como um desejo coletivo.”

Talvez nesta digressão lhe ofereçam Inês Francisco Jacob, Francisca Camelo, André Tecedeiro ou Matilde Campilho, poetas da nova geração (uns mais novos do que outros) para que ela continue a mergulhar no país, a dobrar as nossas intrincadas esquinas. Em troca, Adriana nos oferecerá um espetáculo “mais festivo do que o álbum”: “É a primeira vez que consigo ter o naipe dos três sopros no concerto e estou maravilhada com isso.”

O reportório foi escolhido tendo isso em conta e, embora se foque no último álbum, terá músicas mais antigas que fazem a trajetória da carreira de Calcanhotto. “Essas músicas que eu escolhi, de certa forma, ligam-se com o assunto errante e ficam muito bem com os sopros.” Alguma coisa em Adriana Calcanhotto que não se ligue com o assunto errante? Não nos parece. “Quando chegar a alvorada / eu já vou na estrada / que é o que me leva.”

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