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Adriano Correia de Oliveira e Carlos Paredes em 1971: o perpétuo e dramático movimento de uma música popular transformadora

Carlos Paredes e Adriano Correia de Oliveira partem de Coimbra para revolucionar a canção portuguesa. 50 anos depois, Manuel Alegre, Arnaldo Trindade e Luísa Amaro recordam dois álbuns históricos.

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Na sala de espera, o empregado da farmacêutica Jaba, de notável aprumo e polidez, aguarda pacientemente a reunião com o médico. A estratégia é sempre a mesma: aguardar o necessário, seja meia hora ou um dia inteiro, entrar no consultório, abrir a pasta e convencer o doutor, com o devido prospeto, a optar por um extraordinário novo medicamento — por coincidência, quis o destino, da farmacêutica Jaba. Aos 46 anos, a correria pelos consultórios e o desdém dos médicos são particularmente vexatórios, mas existe uma certa liberdade de horários, o que não é um detalhe para este profissional da propaganda médica, Carlos Paredes, que ao fim da tarde, e pela noite adentro, está em estúdio a gravar uma obra-prima: Movimento Perpétuo.

Nesta mesma Lisboa de 1971, em particular na Rua da Junqueira, está a Feira Internacional de Lisboa (FIL), sede da Associação Industrial Portuguesa, organização que pela sua própria natureza, de entidade empresarial, não era estranha aos tentáculos do Estado Novo. E invariavelmente, o assessor do Gabinete de Imprensa da FIL, reconhecido opositor político, tem que engolir um tremendo sapo. Em junho, por exemplo, o próprio Ministro do Ultramar, Joaquim da Silva Cunha, é convidado de honra numa exposição de etnografia e variedades africanas que pretendia demonstrar, em plena Guerra Colonial, harmonia entre Portugal e as suas colónias. Ao fim da tarde, menos-mal, o assessor de imprensa da FIL, Adriano Correia de Oliveira, entra em estúdio e põe em pratos limpos a propaganda do regime, acompanhado pelo alferes-miliciano José Niza, que criou estas melodias no meio do mato, em Angola. O álbum é Gente De Aqui E De Agora.

Movimento Perpétuo e Gente De Aqui E De Agora são a essência de um sonho: a criação da música popular portuguesa. Há 50 anos, Carlos Paredes e Adriano Correia de Oliveira conceberam estas canções com um profundo sentido estético, interligadas por um elemento conceptual que comprovasse de uma vez por todas, de forma inegável, que este era o caminho para uma nova canção portuguesa. A prova de fogo é desbravada por dois célebres músicos que, seja por questões políticas ou pela indigência da indústria musical, não conseguem sequer viver da canção. E esta é também a nossa história, de artistas que no apogeu da maturidade criativa dependiam de acertos de horários e fins de semana para encetar uma revolução musical. Felizmente, o sonho da música popular portuguesa cumpriu-se, e neste caso, com o mesmo ponto de partida: Coimbra.

“Eu nunca conseguia que ele ouvisse o disco. Ele dizia que lhe custava muito, que o fazia chorar”

Ao longo da noite, nos estúdios da Valentim de Carvalho, Carlos Paredes permanece uma eternidade sentado e debruçado diante da guitarra portuguesa, em pacientes sessões de gravação que pretendiam elevar o músico virtuoso para um estado de transcendência; e ao seu lado, na expectativa, o violista Fernando Alvim e o técnico de som Hugo Ribeiro, garantiam que havia sempre um chão onde aterrar. “Ele sentava-se na cadeira e desligava-se do mundo”, confirma-nos a guitarrista e viúva de Carlos Paredes, Luísa Amaro, em Alcochete. “Os músicos que não estão ligados a este infinito demoram um bocadinho a aquecer, aqueles primeiros instantes, e o Carlos Paredes não, ele ataca a primeira nota com uma precisão de força e intenção que é de outro mundo.” Mas a primeira nota do álbum Movimento Perpétuo não é de outro mundo, é de um universo particular e extremamente próximo a Carlos Paredes: o seu pai e Coimbra.

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Carlos Paredes em entrevista ao jornal "Diário de Lisboa", em 1971

“Eu gostava muito de ouvir o Movimento Perpétuo, mas nunca conseguia que ele ouvisse o disco. Ele dizia que lhe custava muito, que o fazia chorar. E ficava mesmo com lágrimas nos olhos. Aquelas primeiras músicas, como as ‘Variações Em Ré Menor’, nunca consegui que as tocasse, fazia-lhe lembrar o passado, emocionalmente não conseguia. Mas ele quis colocá-las em disco, dá a impressão que fez aquilo e depois andou para a frente”.

Movimento Perpétuo está dividido em dois: o lado A tem as primeiras composições de Carlos Paredes, restritas à tradição nacional e a Coimbra; e o lado B revela as então últimas composições, universais e amplas. “As duas faces deste disco são o referendo de dois aspetos distintos da minha música”, confirmou o próprio ao Diário de Lisboa. Esta é a autobiografia que Carlos Paredes apresenta para justificar o percurso adequado da música portuguesa: em frente, a olhar para trás. A música é então uma linha contínua, como é evidente pelo nome do tema que abre o disco, “Movimento Perpétuo”, composta pelo guitarrista ainda em criança. A única música do álbum que não é de Carlos Paredes é “Valsa”, do seu avô Gonçalo Paredes. E nestas mesmas sessões em Paço de Arcos, na Valentim de Carvalho, fotografadas por Augusto Cabrita, Carlos Paredes grava ainda “Balada de Coimbra”, a canção de José Elyseu que foi revitalizada pela figura maior da guitarra de Coimbra, o seu pai Artur Paredes. “O Carlos Paredes não tocava a “Balada de Coimbra””, acrescenta Luísa Amaro. Mais uma canção a juntar à lista das interditas, que incluía a própria “Movimento Perpétuo”. “Nunca a tocava mesmo. O problema que teve com o pai estava enraizado”.

[“Movimento Perpétuo”:]

Em 1971, o guitarrista edita o EP Balada de Coimbra e o pai, Artur Paredes, reage de imediato, cortando violentamente relações com o filho. Na perspetiva de Artur Paredes, de um orgulho imenso, o filho tinha excedido todos os limites. Expliquemos: a guitarra portuguesa é um instrumento muito singular, ou como escreve o próprio Carlos Paredes na contracapa de Movimento Perpétuo, “é um intérprete muito pouco fiel de toda a música que não tenha saído das suas cordas”, um mistério que se toca de uma forma esdrúxula que depende por inteiro da personalidade do guitarrista. Por ser um instrumento singular, indissociável do executante, Carlos Paredes só consegue tocar como Carlos Paredes, e ao gravar uma célebre versão do pai está a quebrar este acordo sacrossanto — e logo com Artur Paredes, o músico que elevou a guitarra portuguesa à condição de instrumento solista. Porém, Carlos estava a marcar uma posição: a canção não está estagnada, está em movimento.

Movimento Perpétuo subverte o conceito de Fernando Lopes Graça, é simultaneamente ligeiro, tradicional e erudito. O fado de Coimbra é tanto uma evocação imediata como o folclore beirão, ou a música de câmara renascentista, a guitarra de Carlos Paredes é diversa, qual latejar de um cravo, qual batida de um adufe, qual variação da alma popular portuguesa.

“Coimbra tinha o peso do pai. Ele dizia que quando começou a tocar, aquela gente de Coimbra — ele tratava-os por doutores — diziam que ele só tinha técnica, que a emoção estava na guitarra do pai”, recorda Luísa, que acompanhou Carlos Paredes nas visitas a contragosto à cidade onde nasceu. “Ele tinha uma relação quase de amargura com Coimbra, para ele, Coimbra era o pai, ele era alguém apenas com uma grande técnica.” Carlos Paredes nasceu na Rua Antero Quental, em Coimbra, e aos oito anos mudou-se para Lisboa, quando o pai — empregado bancário — aceita um cargo na capital. Neste momento, Artur Paredes limita-se a ensinar o filho a agarrar a guitarra portuguesa e meia dúzia de posições, que o garoto começa a estudar com afinco e uma facilidade assombrosa, acompanhado por uma formação musical de piano e violino, por insistência da mãe. Na sombra do pai, o filho virtuoso desenvolve a sua arte quase em sigilo, sem atropelar ninguém, com uma prudência excessiva que o leva a gravar pela primeira vez em nome próprio apenas em 1962, aos 37 anos. “Ele era um tipo extraordinário”, reflete o amigo livreiro e companheiro da propaganda médica, José Antunes Ribeiro. “Não era tímido, mas tinha excesso de preocupação, ele quase pedia desculpa por existir”.

[Carlos Paredes e Luísa Amaro, ao vivo no Teatro São Luiz, em Lisboa, em 1992:]

Além da canção, a própria guitarra portuguesa estava em movimento perpétuo. No Largo de São Martinho, em Lisboa, Artur Paredes recorre ao construtor de guitarras e carpinteiro de caixilhos, João Pedro Grácio, da Guitarria Leiriense, para alterar o seu instrumento, com instruções de complexas equações de calibragens, e intuito final de amansar este instrumento estridente, aparentemente indomável. E João Pedro Grácio tem catorze filhos, entre eles um homónimo, João Pedro Grácio, que abre uma oficina em Agualva e consequentemente ensina tudo que sabe ao filho, Gilberto Grácio, que em 1971 é o construtor de guitarras de Carlos Paredes. Enfim, alterava-se a caixa harmónica, entram e saem cavaletes, ajustam-se travessas, e segundo Carlos Paredes, há 50 anos, a obra estava terminada. Anunciava com segurança ao Diário de Lisboa, na apresentação do novo álbum, Movimento Perpétuo:

“Para já, suponho poder concluir que, ao contrário do que eu pensava, a guitarra portuguesa, no aspeto da construção, atingiu a sua forma definitiva”.

O segundo LP de Carlos Paredes como solista é lançado dia 16 de dezembro, no Clube Primeiro Acto, em Algés, na companhia de Fernando Alvim, a mão-firme da viola que o acompanhava há mais de dez anos. A natureza de Fernando Alvim — um músico de Cascais entusiasta do jazz e da Bossa Nova — complementa as criações do guitarrista com uma harmonia vasta e distante do fado, um ingrediente primordial para a criação de uma música popular moderna, que de acordo com Carlos Paredes não tinha nada de extraordinário, era mera canção ligeira. Em entrevistas, o guitarrista defendia a doutrina do compositor e musicólogo Fernando Lopes Graça, que dividia a canção portuguesa entre três segmentos estanques: a canção ligeira, tradicional e erudita. Mas Carlos Paredes, como era habitual, estava a ser modesto. Movimento Perpétuo subverte o conceito de Fernando Lopes Graça, é simultaneamente ligeiro, tradicional e erudito. O fado de Coimbra é tanto uma evocação imediata como o folclore beirão, ou a música de câmara renascentista, a guitarra de Carlos Paredes é diversa, qual latejar de um cravo, qual batida de um adufe, qual variação da alma popular portuguesa.

Não pretendo que a música ligeira portuguesa venha alguma vez a confundir-se com o folclore tradicional, com o jazz, com a música erudita, mas, muito simplesmente, que se integre no que, comum a todos os géneros de verdadeira música, pode ser considerado autêntica criação musical. Só a partir duma consciência coletiva da criação musical conseguiremos afirmar a nossa personalidade e o direito a uma justa projeção universal”. (Diário de Lisboa, 1971)

Por sorte, em 1971, bateu-lhe à porta um crítico do Diário de Lisboa, Joaquim Benite, que tinha fundado uma companhia de teatro - Grupo de Teatro de Campolide - e precisava de composição musical para a sua estreia como encenador.

A autêntica criação musical de Carlos Paredes, que parte de uma consciência coletiva para uma projeção universal, é o segundo lado de Movimento Perpétuo. Estas canções evocam lugares, ações e pessoas somente como proposta, não têm espaço e tempo, as melodias não obedecem a qualquer rumo conhecido. Além de Fernando Alvim, o guitarrista é acompanhado pelo flautista Tiago Velez, apontando caminhos por onde a nossa música popular andaria em anos vindouros, incluindo “António Marinheiro”, recuperada neste 2021 por Gisela João. O segundo lado do disco é a consequência das encomendas que recebe e lhe dão alento a afastar-se ainda mais da tradição de Coimbra, e se possível, também do estúdio, que havia poucas coisas mais sofríveis para Carlos Paredes que gravar um disco. Por sorte, em 1971, bateu-lhe à porta um crítico do Diário de Lisboa, Joaquim Benite, que tinha fundado uma companhia de teatro — Grupo de Teatro de Campolide — e precisava de composição musical para a sua estreia como encenador. A peça O avançado centro morreu ao amanhecer, de Augustin Cuzzani, estreia no Campolide Atlético Clube, com acompanhamento de Carlos Paredes, cada vez mais distante, mas nunca fora, da sobeja sombra do pai e da canção de Coimbra.

[Joaquim Letria entrevista Carlos Paredes em 1988:]

“Este LP que vai sair interessa sobretudo à geração seguinte aos grandes guitarristas de Coimbra”, argumenta Carlos Paredes. “O meu pai e Bettencourt, tinham conseguido revolucionar esse tipo de atividades musicais, voltando-se para a música popular, procurando outras expressões na guitarra e na canção, mas sem quebrar aquilo que é fundamental no fado de Coimbra”. Uma paragem fundamental neste movimento perpétuo é a figura do madeirense Edmundo Bettencourt, parceiro de Artur Paredes, que canta um fado-serenata com elementos populares da Beira e Açores, e propõe uma canção popular portuguesa entre o campo e a cidade. “O Bettencourt foi o primeiro a saber aproveitar, dentro de um estilo pessoal, algo do manancial de canções tradicionais por estudantes provindos de vários pontos do país. Ele adaptou-as ao estilo coimbrão”. Esta estratégia é empregue pela geração seguinte, nomeadamente, Fernando Machado Soares, José Afonso,  Luíz Goes, António Portugal e, claro, Adriano Correia de Oliveira.

O correio de guerra de “Gente De Aqui E De Agora”

Quando cheguei a Coimbra, gostava de cantar, e o fado era a primeira proposição. Porém já se notava em todos uma grande saturação das fórmulas rígidas do fado de Coimbra. (…) Falava-se em dar às cantigas um cunho de acordo com as nossas realidades que acabasse com as evasivas idealistas do fado que havia. Assim se fizeram experiências: o José Afonso começou a compor baladas”. (Século Ilustrado, 1971)

O subgénero coimbrense da “balada” renega as serenatas na escadaria da Sé de Coimbra e as cantorias de engate pelas ruelas, e torna a canção portuguesa — pela primeira vez — assumidamente uma arma. “Foi um período muito marcante, de grande renovação da canção de Coimbra, aparecem as baladas, aparecem as trovas, novas variações de guitarra e o teatro, tudo unificado pelo movimento estudantil”, contextualiza-nos Manuel Alegre, em Lisboa, que entre a vasta biografia recorda com ternura estes anos de Coimbra como protagonista da nova canção e das crises académicas que abanaram Portugal. “Depois, o Adriano começou a musicar algumas coisas que eu escrevia e a cantar”, continua, ao lembrar os serões em casa dos pais, em Coimbra, com os músicos António Portugal e Rui Pato a acompanhar um jovem estudante bonacheirão, com “uma voz extraordinariamente bonita, muito bem modelada, alegre e triste”.

O cantor de “Trova do Vento que Passa” entende que, dez anos depois de tanta cantiga em corredores de faculdades, tudo estava na mesma, tanto na sua música como nos protestos de “certos indivíduos de origem perfeitamente burguesa”, que “utilizam destas canções, não como meio de modificar nada, mas como masturbação pessoal”.

A “Trova do Vento que Passa”, o hino das convulsões académicas, com a frase imortal “Há sempre alguém que resiste”, é composto num serão em casa de Manuel Alegre. E nada seria o mesmo para Adriano Correia de Oliveira: “A partir do acolhimento a uma canção como ‘Trova do Vento que Passa’, comecei a sentir o gosto por cantar, por fazer música, e sobretudo, por sentir que estava do lado justo, do lado da luta anti-fascista” confessa à Capital, em 1970. E nada seria o mesmo para Manuel Alegre, que ainda recebe o EP Trova Do Vento Que Passa em Lousada, escondido em casa do amigo Rui Feijó, e leva o disco debaixo do braço para um longo exílio, até à revolução que tanto profetizou. “Ele foi muito corajoso porque era um tempo muito duro, em 63 e 64, era um tempo de refluxo”, sublinha o poeta. “Depois daqueles anos que abalaram o regime e a classe média, e que estávamos convencidos que íamos mudar o regime, aquele idealismo próprio da idade, começou um refluxo muito grande, por causa da guerra, da repressão. E foi nesta altura que surgiram estas canções”.

[“Trova do Vento que Passa”:]

Adriano Correia de Oliveira era a síntese do espírito coimbrão: coragem, rebeldia, boa-disposição e boémia. E antes de Coimbra havia a Quinta das Porcas, a casa da família em Avintes, a banhar no Douro, rodeado pela vinha. Pretendia-se formar um advogado na ida para Coimbra, mas o tempo era limitado: é primeiro tenor no Orfeão Académico de Coimbra, membro ativo em grupos de dança regionais e voleibol, dirigente do grupo de teatro CITAC, e ainda, pois claro, as indispensáveis noitadas da República Rás-Teparta. E queria, haja tempo, ser guitarrista no Conjunto Ligeiro da Tuna Académica, mas esse lugar já estava ocupado por um estudante de medicina de Santarém: José Niza.

Em 1961, a Associação Académica de Coimbra (AAC) está debaixo de fogo depois de publicar a célebre “Carta a uma Jovem Portuguesa”; e tanto Adriano como José Niza assinam de imediato o panfleto “Protesto” a defender a AAC, envolvendo-se nas lutas associativas entre as listas da esquerda e da direita que fazem eclodir as crises académicas, ao ponto do então reitor da Universidade de Lisboa, Marcello Caetano, renunciar ao cargo. E dez anos depois, em 1971, o cenário permanece explosivo. Em junho, três estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa são presos, e os alunos boicotam as aulas, lutam “corpo a corpo” com a PIDE e denunciam que, “o número de estudantes presos ascende já este ano a largas dezenas, passando pelas brutais intervenções à cacetada e à coronhada”. Em Coimbra, a Associação de Estudantes de Coimbra é ocupada pela PSP, PIDE e Policia de Choque, que apreende os dirigentes que instauram “estado de terror na cidade”. E diante deste cenário, surpreendentemente, Adriano Correia de Oliveira vira as costas à luta estudantil:

“Inicialmente colhi grande entusiasmo desses espectáculos estudantis. Os estudantes efetivamente embandeiravam em arco com as atuações. Correspondiam com recetividade. Parecia-me a mim recetividade. Hoje estou autorizado a dizer que não era recetividade. Porque vi que em muitos casos a possível ação do que cantava junto das pessoas não era correspondido depois na prática.” (Mundo da Canção, 1971)

O cantor de “Trova do Vento que Passa” entende que, dez anos depois de tanta cantiga em corredores de faculdades, tudo estava na mesma, tanto na sua música como nos protestos de “certos indivíduos de origem perfeitamente burguesa”, que “utilizam destas canções, não como meio de modificar nada, mas como masturbação pessoal”. No entanto, acrescenta em outra entrevista, ao Diário de Lisboa, “o nascimento da vilipendiada balada foi muito importante”, afinal, “foi daí que nós partimos, estando dentro de um sistema e começando a contrariá-lo”. Em 1971, estavam atrás dois álbuns gravados à pressa — O Canto E As Armas e Cantaremos — com os recursos à mão, enquanto cumpria o serviço militar na Escola Prática de Cavalaria de Santarém, chegando a gravar fardado — “utilizávamos só a viola, não tínhamos muito mais ao nosso alcance”. E agora, está de volta a Lisboa, casado, com uma filha e outro acabado de nascer, era necessário esquecer a viola às costas, cumprir finalmente com distinção o sonho da música popular portuguesa. A solução podia ser, como sugere José Afonso, um álbum produzido por José Mário Branco, um outro Cantigas do Maio; mas o músico exilado em Paris corta o plano à partida: “Ó Adriano, isto é tudo muito choradinho, uma lamechice pegada” — responde José Mário Branco por carta. Nesse caso, não há volta a dar, tinha que desafiar o camarada José Niza a musicar e a produzir o disco. O único detalhe é que o amigo de Coimbra é agora médico alferes-miliciano em Angola, no meio do mato.

Adriano Correia de Oliveira nas páginas do "Diário de Lisboa", em 1971

No aquartelamento de Zau Évua, norte de Angola, entre Ambrizete e S. Salvador do Congo, entre os mosquitos e os cadáveres, escreve José Niza: “A chegada do correio é um acontecimento para todo o quartel. Aqueles sacos de lona verde-acinzentada são como um cordão umbilical de milhares de quilómetros que nos liga às famílias, aos amigos, às boas e às más noticias”. O diário de guerra do músico e político José Niza, falecido há dez anos, está publicado em Golden Gate — Um quase diário de guerra, onde escreve a quente sobre os colegas no limiar da loucura, os prisioneiros espancados e torturados, tudo engolfado no meio do nada, espalhado por beliches em casernas de madeira com telhado de zinco. Em dias de festa, cantam canções de intervenção, as mesmas que o General Horácio de Sá Viana Rebelo, Ministro da Defesa, considera terem “efeitos demolidores” sob as tropas. E certo dia chega uma carta de Adriano Correia de Oliveira:

O Adriano pede-me para compor todas as músicas do seu próximo disco. E, para isso, manda-me oito poemas para musicar. Belos poemas. Alguns deles, manuscritos pelos próprios autores. Como não percebia bem as letras, passei-os todos a limpo. Enquanto os ia copiando, comecei a ouvir a música que já traziam dentro, e a sentir uma grande vontade de agarrar na viola e começar a musicá-los. Lentamente contrariando o ritual da impaciência, preparei o cenário: o gravador de som, as folhas com os poemas, a viola, os cigarros, os fósforos, o whisky e o microfone.” (4 de outubro, 1970)

Depois das dez da noite, impõe-se o silêncio no aquartelamento, e o músico começa de enfiada, com um gravador portátil, a criar Gente De Aqui E De Agora. Em agosto de 1971, José Niza regressa a Portugal, com emprego certo como diretor de produção da editora Orfeu, dez contos por mês, detalhes acertados numas férias da tropa, cunha do amigo Adriano; e escreve uma das entradas finais no diário de guerra, uma profecia a três anos da Revolução dos Cravos: “As guerras fazem-se com militares. Mas os do quadro estão a ficar cansados. E os outros, revoltados”.

“O Adriano era um cantor muito marcante, um pioneiro e um vanguardista na renovação da música, não só do ponto de vista contestatário”, garante-nos o autor de “E Alegre se Faz Triste”, Manuel Alegre, notando que, “com o José Niza”, “aquilo não era fado de Coimbra, nem sequer balada, era outra dimensão”.

Nos estúdios Polysom, em Lisboa, prepara-se pela primeira vez um disco de Adriano Correia de Oliveira com vagar e multiplicidade de arranjos, veja-se “Roseira Brava”, um poema de António Ferreira Guedes com arranjos e acordeão de Rui Ressurreição; ou “Cantiga de Amigo”, de orquestra comandada por Thilo Krasmann com leveza e swing, uma pomposidade que não seria desajustada no Festival da Canção. “As editoras já sabem que vale a pena arriscar, por exemplo, pagando a uma orquestra”, explicava Adriano, continuando: “este disco é um passo enorme (…) Demorou mais tempo a realizar do que normalmente, porque valia a pena, porque eu sabia que estávamos a trabalhar num caminho certo e com segurança”. E o esplendor dramático de “E Alegre se Fez Triste”, com arranjos do jovem estudante de Economia José Calvário — entretanto também contratado pela Orfeu como produtor — e um poema de Manuel Alegre que José Niza recebe extasiado em Angola: “Ontem à noite, musiquei um soneto lindo que o Adriano me mandou e que tem por título ‘E Alegre se Faz Triste’. Não sei quem é o autor”.

Adriano Correia de Oliveira na capa da revista “Mundo da Canção”

“O Adriano era um cantor muito marcante, um pioneiro e um vanguardista na renovação da música, não só do ponto de vista contestatário”, garante-nos o autor de “E Alegre se Faz Triste”, Manuel Alegre, notando que, “com o José Niza”, “aquilo não era fado de Coimbra, nem sequer balada, era outra dimensão”. E José Niza admite, no diário, o espanto com a facilidade de musicar estes poemas que parecem nascer naturalmente ritmados. “Escrevia aqueles poemas ao ouvir muito os cancioneiros, queria retomar uma estrutura rítmica da nossa poesia que vinha dos cancioneiros, que vinha de Camões, de uma trova portuguesa”, medita o poeta. “Os poemas tinham musicalidade pela própria estrutura rítmica, e a poesia era muito declamada em recitais, e apesar de proibida os livros circulavam em cópias manuscritas e datilografadas”. E Manuel Alegre ouve estas músicas pela primeira vez como o comum mortal, alguém lhe mostra, afinal estava exilado na Argélia, a fazer oposição feroz na rádio, no programa Voz da Liberdade; enquanto sorrateiramente circulava em Portugal o seu segundo livro de poemas, O Canto e as Armas, do qual Adriano Correia de Oliveira retira, à mão, uma série de poemas, entre eles, “E Alegre se Faz Triste” e “Canção tão simples” — esta última, uma belíssima provocação à própria censura:

“Quem poderá proibir estas letras de chuva
que gota a gota escrevem nas vidraças
pátria viúva
a dor que passa?”

[“Canção Tão Simples”:]

Em Lisboa, a última edição de O Canto e as Armas é distribuído pela Ulmeiro, a livraria e editora fundada por José Antunes Ribeiro, em Benfica, que hoje tem nova vida na Fábrica Braço Prata. “Fomos provavelmente a livraria com mais livros apreendidos”, recorda, detalhando as estratégias da PIDE: “Neste período Marcelista há uma tentativa de alguma legalidade, só que era ambíguo. Há dois tipos de apreensões: a apreensão com auto e com o título das obras; ou então a apreensão que é mesmo para deitar a livraria abaixo, com mais de três mil livros de uma vez, e nesse tipo de apreensão era arbitrariedade total, nem havia auto. O objetivo era acabar com a livraria”.

Em 1971, além da distribuição e edição de conteúdo altamente sensível, como a peça proibida Melim 4 do argentino Adolfo Gutkin, a Ulmeiro salvaguarda um viveiro de subversão e cultura na cave, onde Mário Viegas estreia-se a recitar em Lisboa, José Afonso canta ocasionalmente, e Carlos Paredes faz questão de acrescentar um ponto a qualquer discussão acalorada, não fosse este amigo de José Antunes Ribeiro um reconhecido protagonista nos ficheiros da PIDE, reza a lenda com mais de 500 páginas em nome próprio. O livreiro e o guitarrista conhecem-se na profissão improvável da propaganda médica, que Carlos Paredes cumpre resignado há quase uma década, enquanto a PIDE não permite que regresse ao seu posto de funcionário público como arquivista de radiografias do Hospital São José, em Lisboa. O pesadelo começou em 1958, Carlos Paredes é descoberto como militante do Partido Comunista Português, preso, torturado e dois anos depois suspenso do Hospital de São José. O impedimento de voltar à função pública não era de somenos, era o cargo de arquivista que lhe garantia uma liberdade de qualquer imposição musical, nomeadamente de acompanhante de fados, que seria sempre desajustado à guitarra libertária de Carlos Paredes. De resto, sem ilusões, independente do talento, a sua categoria estava definida: músico amador.

“A canção preocupada com os problemas na sociedade onde nasceu”

A questão retorna sempre: “Encaras a profissionalização no teu caso pessoal?”. “Não, porque comecei já muito tarde”, responde Adriano Correia de Oliveira ao Século Ilustrado. “Vou continuar a cantar enquanto tiver tempo e for capaz de fazer qualquer coisa”. Ao contrário de Carlos Paredes, que a Valentim de Carvalho aguarda resignada que se digne a passar pelo estúdio, Adriano estava contratualmente obrigado a “fazer qualquer coisa”, pelo menos uma vez por ano, como estava delineado no contrato que assina com a Orfeu, a editora de Arnaldo Trindade. “O José Afonso e o Adriano eram asalariados da Orfeu, na altura não tinham oportunidade de ter um bom emprego, por causa da situação política”, explica-nos o próprio Arnaldo Trindade, no jardim de casa, no Porto. “E eu achei que para eles poderem ter uma produção regular tinham que ter uma certa segurança económica”. A receber oito contos por mês, Adriano sugere na reunião mensal da Orfeu, no Porto, que o seu próximo disco e do José Afonso, assim como as restantes novidades da editora, podem ser apresentados no seu outro local de trabalho, onde é assessor de imprensa: a FIL em Lisboa.

Adriano Correia de Oliveira é intransigente na seleção de poemas, deve haver uma denúncia social, o colega José Afonso que trate as canções oníricas, o Portugal de aqui e de agora é uma urgência que não pode ser tratada com paninhos quentes. E não basta cantarolar, é preciso passar das cantigas aos atos.

No dia 28 de novembro de 1971, o responsável pela promoção da Orfeu, Carlos Cruz, recentemente surrupiado da editora Zip-Zip, apresenta na FIL os lançamentos da Orfeu, entre eles, Cantigas do Maio e Gente De Aqui E De Agora. O evento tem o nome pomposo de Convenção Anual e de Catálogo de Natal, reduzido para Can-Can 71, com “slides”, “jogos de luzes” e “mariscada” para revendedores e imprensa — “descontando naturalmente os penduras”, acrescenta o Diário de Lisboa. As convenções para paparicar a imprensa era uma estratégia comercial entre tantas da editora que aturdia a concorrência, desde colocar à venda discos a prestações, a oferecer um gira-discos na compra de dez LPs, e isto enquanto vendia, imaginem, cantigas de intervenção.

Em 1971, a Valentim de Carvalho e a Orfeu são as grandes responsáveis pela afirmação do LP em Portugal. O formato maior da nova música popular, o álbum de longa duração, era substancialmente mais dispendioso que o EP, o formato de eleição em Portugal. Arnaldo Trindade acreditava que, assim como nos EUA e Inglaterra, uma aposta de qualidade na edição, desde o som ao grafismo, acabaria por ser mais lucrativo. “A Orfeu foi grande porque tinha possibilidades financeiras que as outras editoras não tinham, através dos eletrodomésticos”, nota Arnaldo Trindade, que herda do pai a loja representante da Philco em Portugal, seis andares em frente ao Majestic, com rés-do-chão reservado aos frigoríficos, onde mais de dez anos antes da Can-Can 71, funda uma editora e grava poetas com uma máquina Ampex de quatro pistas. “Os primeiros discos da Orfeu foram gravados na loja, depois das duas da manhã por causa dos elétricos, era pioneirismo puro”. Nos EUA, nas convenções da Philco, conhece um mundo que só chegaria a Portugal “trinta ou quarenta anos depois”, e aos poucos, começa a implementar uma editora para o país do futuro. “Eu vi um mundo diferente e adaptei-o à nossa realidade”.

A Convenção Anual e de Catálogo de Natal, apelidada de, em 1971 no Diário de Lisboa, com esclarecimentos de Carlos Cruz, o responsável pela iniciativa

O zénite da Orfeu seria precisamente na década de setenta, quando uma série de LPs, entre eles, Gente De Aqui E De Agora, confirmam a nobreza maior do formato de longa duração, que seria determinante para a música popular portuguesa sobreviver ao teste do tempo. “Acho que, neste disco, foi possível um trabalho mais profundo e que, por isso, é o meu melhor trabalho de sempre, em todos os aspetos”. Ao Diário de Lisboa, Adriano ainda comenta que, “agora as coisas estão diferentes. Isto andou muito para a frente. Já se arrisca dinheiro”. Por seu lado, José Niza define o álbum como um “mostruário” do que é “ser-se português em 1971.” E os poemas, agora revestidos de sumptuosidade, dão corpo às mesmas balas de sempre:

A intenção é a mesma: poemas que tratem de temas que tenham a ver com a nossa realidade social. Que a denunciem (…) A canção preocupada com os problemas na sociedade onde nasceu, onde existe. A influência que a canção tem numa transformação dessa sociedade. Se não, não é útil e falha substancialmente. Não corresponde à sua função (…) E interessa que a arte, seja qual for, reflita exatamente aquilo que se está a passar em cada sociedade (…)”. (Mundo da Canção, 1971)

Adriano Correia de Oliveira é intransigente na seleção de poemas, deve haver uma denúncia social, o colega José Afonso que trate as canções oníricas, o Portugal de aqui e de agora é uma urgência que não pode ser tratada com paninhos quentes. E não basta cantarolar, é preciso passar das cantigas aos atos — “Quem canta tem obrigação de se comportar de acordo com o que canta. Mas não mais obrigação do indivíduo que ouve e gosta da canção”. Em Gente De Aqui E De Agora, a denúncia é das personagens que sustentam um regime: o caciquismo de “O Senhor Morgado” com “eleições à porta”; o poder local autoritário de “A Vila de Alvito” — “Quem manda na vila/ Não lhe dá cuidado”. E no outro lado da barricada, os exilados ou os resistentes, como Manuel Domingos Louzeiro, o bode expiatório para todos os pecados. O poema de António Aleixo, “História do Quadrilheiro Manuel Domingos Louzeiro”, é descoberto por José Niza ainda em Luanda, na Livraria Lello, a mesma livraria onde compra uma coletânea de poemas de António Gedeão, que resultaria num dos álbuns mais ambiciosos da Orfeu: Fala do Homem Nascido.

[“História do Quadrilheiro Manuel Domingos Louzeiro”:]

A coragem de Adriano Correia de Oliveira é alento para a polícia política estar sempre no seu encalço, à distância de segurança, a título de exemplo, um jantar em homenagem à revista Seara Nova, em 1971. O PIDE de serviço escreve no relatório que Adriano comentou à mesa que as suas canções podem fornecer “forte contributo pelas possibilidades que ofereciam no aspeto contestatário e até revolucionário”. O regime estava ciente destas possibilidades, e consequentemente, a Direção dos Serviços de Espetáculos delineou uma longa lista de canções proibidas. E mais, desde 1970 que o cantor é impedido de deixar o país — “dado tratar-se de um indivíduo cujas ligações com elementos que defendem a autodeterminação do Ultramar, levam a recear que no estrangeiro desenvolva atividades contrárias à segurança do estado”.

Por outro lado, Carlos Paredes não só viaja confortavelmente, como volta e meia tem os bilhetes e a estadia pagos pelo Estado Novo. Convém acrescentar que o guitarrista não era menos comunista que Adriano Correia de Oliveira, inclusive partilham o mesmo círculo de amigos, em Lisboa, sucede é que — como é evidente para qualquer pessoa com um par de ouvidos — Carlos Paredes é um génio. E um génio, aos olhos da propaganda do regime, não é de desdenhar, sobretudo se a joia da coroa, Amália Rodrigues, insiste na sua companhia em viagens ao exterior. Em 1970, Amália Rodrigues e Carlos Paredes vão à Exposição Mundial de Osaka, no Japão; e no ano seguinte, em Espanha, são o destaque da comitiva portuguesa em Torremolinos 71, um programa televisivo de promoção cultural ibérica.

“O Adriano hoje é injustamente esquecido, por uma série de circunstâncias”, lamenta Manuel Alegre, recordando as celeumas ideológicas no pós-25 de Abril e “os problemas de natureza pessoal que lhe apressaram a morte”.

Em Torremolinos, na Andaluzia, Carlos Paredes está em palco com o fiel escudeiro Fernando Alvim, uma cantora lírica e dois bailarinos do Verde-Gaio, o grupo de bailados criado por António Ferro no âmbito da “política de espírito”. E Torremolinos 71 é imediatamente revelado pelos jornalistas, de forma velada, como um descarado evento de propaganda de duas ditaduras; e Amália Rodrigues como uma diva distanciada do povo, ao serviço do regime. No entanto, Carlos Paredes permanece acima de qualquer suspeita, isento de qualquer crítica. “Todo o seu virtuosismo foi incontestavelmente patenteado”, consente Arnaldo Jorge Silva na Mundo da Canção. Até o célebre má-língua, Mário Castrim, que abomina publicamente o fado e congéneres, comenta certa vez sobre o guitarrista, em 1971: “Paredes é vê-lo apossar-se da guitarra e ver a guitarra apossar-se dele, num corpo-a-corpo violento que tem muito a ver com um encontro amoroso”. Este encontro violento entre o homem e a guitarra era também um gesto de obstinação de alma, a canção de intervenção de Carlos Paredes. “O tocar ao vivo era uma libertação dos problemas do dia a dia”, concorda Luísa Amaro. “Era tudo tão emocional, e a sua forma de tocar era tão verdadeira e sincera, que eu estou a crer que ele em palco era um momento de limpeza emocional, de catarse.”

A glória póstuma de um “génio” e os esquecimento de um homem “demasiado generoso”

Se Carlos Paredes conseguiu a imortalidade, sucessivamente redescoberto fora e dentro das nossas fronteiras, Adriano Correia de Oliveira permanece embalsamado num espaço-tempo restrito, com uma imensa obra ainda por reeditar neste século. “O Adriano hoje é injustamente esquecido, por uma série de circunstâncias”, lamenta Manuel Alegre, recordando as celeumas ideológicas no pós-25 de Abril e “os problemas de natureza pessoal que lhe apressaram a morte”. Adriano Correia de Oliveira morreu aos 40 anos, em 1982, vítima de um acidente vascular esofágico, depois de uma série de anos de desilusão e reclusão em Avintes. Continua Manuel Alegre: “O Adriano era um tipo muito generoso, e foi uma das coisas que também contribuiu para lhe dificultar a vida, o Adriano quase que arrebentou com a voz depois do 25 de Abril porque andava de viola às costas a cantar por aqui e ali, ele ia a todas, sem grandes exigências, e as pessoas abusavam do Adriano porque era uma figura romântica”.

[Adriano Correia de Oliveira ao vivo na RTP em 1982:]

Em 1971, a Mundo da Canção escreve que Gente De Aqui E De Agora é Adriano Correia de Oliveira finalmente “com raiva renovada”; e o Diário de Lisboa que a voz estava liberta dos “vícios coimbrões, muito moldada à música, muito certa”. No entanto, 50 anos depois, o álbum praticamente eclipsou-se das menções ao ano de 1971 na música popular portuguesa, em certa medida por ter sido apresentado ao mesmo tempo que uma obra-prima insuperável: Cantigas do Maio. E Adriano sabia que estava a ficar para trás, que tinha de continuar a reinventar-se: “Os discos do Zé Afonso e do Zé Mário marcam uma nova etapa, mostram o caminho. E agora finalmente, é que se pode começar”.

Mas o futuro era nublado para Adriano Correia de Oliveira: a compositora Rita Olivais convida-o a interpretar no Festival RTP da Canção de 1972, a organização recusa, e volta a reconsiderar; e Adriano por sua vez, de orgulho ferido, rejeita definitivamente a participação no festival que coroa “Festa da Vida” dos seus amigos José Calvário e José Niza. Este último permanecia como diretor de produção da Orfeu, com a responsabilidade acrescida de negociar as letras diretamente com a censura, em longos almoços com Pedro Feytor Pinto, Diretor da Secretaria de Estado da Informação e Turismo — em 72, a Direção dos Serviços de Censura foi renomeada de Direcção Geral da Informação e criou-se o mecanismo censório do “exame prévio”. E Adriano Correia de Oliveira é um caso isolado em Portugal, recusa-se por completo a enviar qualquer poema ao exame prévio e não volta a editar até ao 25 de Abril, para desespero de Arnaldo Trindade: “Eu disse-lhe que essa atitude era muito bonita, mas eu queria meter os discos cá fora!”. “O regime começou a ameaçar as editoras que se continuassem a ter cantores contra o regime, fechava as editoras”, recorda-nos José Cid. “Eu assumi publicamente na Valentim de Carvalho que os eximia de qualquer responsabilidade. E só houve uma pessoa mais que o fez: Adriano Correia de Oliveira”.

Dez anos depois, na década de oitenta, que bem podia ser um século de distância da convivência de Coimbra, das crises académicas, da conceção de uma nova canção portuguesa, Adriano Correia de Oliveira estava em casa, em Avintes, a preparar um álbum somente de fados de Coimbra. O plano é gravar sobretudo, ou talvez apenas, Edmundo Bettencourt, e o guitarrista ideal, conforme concordam ao telefone, é o amigo Carlos Paredes, que não prescinde de Fernando Alvim à viola. Em breve iriam acertar os detalhes, começar os ensaios e entrar em estúdio. Infelizmente, esse não seria o fado de Adriano Correia de Oliveira, que nos deixa antes do primeiro ensaio. Entre o reportório, o cantor e o guitarrista tinham chegado a um consenso, incluindo uma música que servia então — e serve ainda — para definir um ponto de partida e um ponto final: “Saudades de Coimbra”.

“Do Choupal até à Lapa
Foi Coimbra os meus amores
Que a sombra da minha capa
Deu no chão, abriu em flores”

“Oh Coimbra do Mondego
E dos amores que eu lá tive
Quem te não viu anda cego
Quem te não amar não vive”

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