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Agosto de 2021 ficará na história dos EUA como um momento particularmente embaraçoso: após 20 anos de guerra no Afeganistão, as tropas dos EUA e dos seus aliados da NATO empreenderam uma retirada caótica e humilhante, ao mesmo tempo que o Governo afegão debandava para o estrangeiro, as Forças Armadas afegãs se desfaziam em fumo frente ao avanço taliban e praticamente toda a estrutura do Estado afegão, em que as potências ocidentais tinham investido rios de dinheiro durante 20 anos, entrava em colapso. As estimativas dos custos para os EUA destas duas décadas de presença no Afeganistão dependem de quem faz a contabilidade e dos critérios empregues, mas são sempre astronómicos: o Pentágono colocou-os em 837.000 milhões de dólares, mas um estudo de 2021 pela Universidade de Brown estimou custos directos de 8 biliões de dólares (que incluem 2.3 biliões gastos na porosa zona fronteiriça entre o Afeganistão e o Paquistão). A isto há que somar os custos humanos, que recaíram essencialmente sobre os afegãos e que a Universidade de Brown estimou em 897.000 a 929.000 mortos. Os EUA registaram “apenas” 2420 soldados mortos em 20 anos, mas as sequelas psicológicas nos americanos que prestaram serviço no Afeganistão abrangem um número bem maior, de forma que dos 8 biliões de dólares de custos totais, 2.2 biliões correspondem a despesas previstas com pensões e tratamento de veteranos de guerra.

Thousands of Afghans rush to the airport in Kabul

E para que serviu este colossal investimento? Para que, em Agosto de 2021, regressassem ao poder os taliban que a invasão americana de Outubro de 2001 se propusera remover. Taliban que, contrariando as expectativas ingénuas de muitos políticos e comentadores ocidentais, têm mostrado, nos meses entretanto decorridos, não ter ganho qualquer “moderação” (“taliban moderado” é um oxímoro comparável a “toucinho halal”) e que voltaram, gradualmente, a repor todas as leis cruéis e obscurantistas que vigoravam antes da invasão de 2021, devolvendo o país ao estádio de teocracia medieval.

É de registar que a retirada atabalhoada das forças americanas entregou aos taliban um “presente” extra: 7000 milhões de dólares de equipamento militar que não foi possível remover, ou cuja remoção seria mais dispendiosa do que o valor do equipamento (por comparação, o orçamento das Forças Armadas portuguesas para 2022 é de 2451 milhões de euros, dos quais apenas 430 milhões dizem respeito à aquisição de equipamento). A divulgação do valor deste “presente” suscitou surpresa e ultraje nos EUA, e este seria talvez maior se houvesse memória de que, em 2013, quando se previa que a retirada das tropas americanas teria lugar no ano seguinte, os próprios americanos já tinham destruído outros 7000 milhões de dólares do seu próprio equipamento militar, para que não caísse nas mãos dos taliban. Mas estes valores empalidecem perante os 83.000 milhões de dólares que os EUA investiram no equipamento e treino das Forças Armadas e de segurança afegãs entre 2001 e 2016, dos quais ¼ correspondeu a equipamento, onde se incluíram 76.000 veículos e 208 aeronaves.

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Boa parte da lamentável trapalhada que foi a invasão, ocupação e retirada do Afeganistão poderia ter sido poupada se os decisores no Governo dos EUA e no Pentágono tivessem estudado cuidadosamente as anteriores tentativas de potências europeias para impor a sua vontade àquele território, de forma a, pelo menos, não repetir os seus erros. Mas nem o facto de o Afeganistão ser conhecido como “cemitério de impérios” moderou a sobranceria dos decisores americanos.

A primeira tentativa de subjugação do Afeganistão – se não contarmos com a conquista por Alexandre III da Macedónia, em 327 a.C., que foi a que teve maior sucesso, ou, pelo menos, a que teve efeitos mais produtivos e duradouros – ocorreu em 1839-42, foi empreendida pelo Império Britânico e está descrita, de forma arrebatadora, em The return of a king: The battle for Afghanistan (2012), de William Dalrymple, que agora chega a Portugal com o título O regresso de um rei: A batalha pelo Afeganistão, com tradução de José Mendonça da Cruz e edição da D. Quixote.

A capa de “O Regresso de um Rei”, de William Dalrymple (D. Quixote)

O historiador britânico William Dalrymple (n.1965) é um dos grandes especialistas em história oriental, em particular na Índia “e arredores” durante os séculos XVI-XIX, e tem a vantagem, sobre a maior parte dos historiadores ocidentais, de, desde 1989, viver durante ¾ do ano em Delhi. O seu conhecimento da história daquela parte do mundo, a sua vivência local e o seu talento conjugam-se para que O regresso de um rei seja um fresco de cores vibrantes, que possui a fluidez narrativa de um romance sem sacrificar rigor e detalhe, habitado por protagonistas, que, embora sejam, à partida, desconhecidos da esmagadora maioria dos leitores (pelo que o autor os apresenta na secção “Dramatis personae”, precedendo o capítulo I), rapidamente ganham espessura e vida. Abundam livros na língua inglesa sobre a Primeira Guerra Anglo-Afegã, mas Dalrymple reclama ser este o primeiro que inclui a perspectiva de afegãos, russos e indianos, tendo para tal recorrido a fontes em diversas línguas e com diferentes proveniências; para lá de arquivos oficiais, de relatórios e registos até há pouco desconhecidos ou que se julgavam perdidos e de cartas e diários (muitos deles inéditos) de quem viveu a guerra em primeira mão, Dalrymple teve a sorte de, em 2009, encontrar num alfarrabista de Kabul as bibliotecas privadas de várias famílias nobres afegãs, e usa todo este rico acervo para reconstituir um panorama tridimensional dos eventos.

Há apenas dois reparos, menores, a fazer ao livro: os três mapas fornecidos são demasiado pequenos e sumários e o índice remissivo original foi substituído por um índice onomástico simplificado – mas atendendo ao padrão da edição portuguesa, o leitor pode sentir-se afortunado por existir índice onomástico.

O Grande Jogo

A invasão de 1839 não resultou de um extraordinário apetite da Grã-Bretanha pelas riquezas do Afeganistão – que estavam, mesmo então, longe de ser tentadoras –, mas do valor estratégico da região e, em particular, no contexto da rivalidade anglo-russa pelo controlo da Ásia Central e Meridional – disputa que, globalmente, ficou conhecida como o Grande Jogo e se estendeu, aproximadamente da década de 1830 à primeira década do século XX.

Durante o século XVIII, a França fora a maior ameaça ao domínio britânico da Índia, chegando, em 1750, a ocupar 1.5 milhões de Km2 – porém, uma sucessão de fracassos militares nas décadas de 1750 e 1760 reduzira seriamente o poderio e o território da França na região e, após a derrota definitiva de Napoleão, em 1816, as possessões francesas na Índia tinham ficado circunscritas a cinco cidades, todas elas em franco declínio. Mas os “falcões” têm horror à paz e ao vazio e a expansão do Império Russo para leste e sul tornou “cada vez mais evidente – pelo menos aos estrategas de sofá de Londres – que a algum momento os dois impérios entrariam em colisão na Ásia Central” (Dalrymple).

Ou seja, o que fez despertar o interesse britânico pelo Afeganistão foi a mera suspeita de que os russos pudessem estar a planear apoderar-se da região e de, a partir dela, lançar um ataque aos interesses britânicos nas costas do Oceano Índico e Golfo Pérsico. Porém, no início da década de 1830, a região não era “alvo das ambições de São Petersburgo, concentradas, antes, na Pérsia e no Cáucaso” (ver De Kaliningrad a Petropavlovsk: A geografia da Rússia, um país que se diz “cercado”).

O envio pelos britânicos de um espião, Alexander Burnes, ao Emirato de Bukhara, a norte do Afeganistão (no que hoje é território do Uzbequistão, Tadjiquistão, Turquemenistão e Cazaquistão), a fim de averiguar as intenções dos russos, é que fez a atenção destes virar-se para a Ásia Central e para possíveis “jogadas britânicas tão perto da fronteira russa” (Dalrymple). O mais irónico é que os russos só se deram conta das movimentações britânicas através da edição francesa de Travels to Bukhara, o relato de viagem que Burnes (imprudentemente) publicou em 1835 e se tornou num best-seller (não é propriamente a forma mais discreta de fazer espionagem).

Alexander Burnes em trajes tradicionais da região de Bukhara, c.1838

“Como tantas vezes acontece nas questões internacionais, podem ser as paranóias dos falcões em relação a ameaças distantes a criar, elas próprias, os monstros que mais temem”, escreve Dalrymple, dez anos antes de Vladimir Putin ter invadido a Ucrânia com o pretexto de conter a expansão da NATO, levando a que dois países historicamente neutrais, Finlândia e Suécia, apresentassem, acto contínuo, a sua candidatura à NATO.

Guerreiros afegãos, numa litografia de 1847 por R. Carrick, a partir de desenho de 1842 por James Rattray

Um caleidoscópio de tribos

O Afeganistão tem uma história antiga, mas, durante esta, “não conhecera mais do que breves momentos de unidade política ou administrativa. Com muito maior frequência, fora apenas ‘os lugares entre uma coisa e outra’, umas porções fracturadas e disputadas de montanhas, várzeas e desertos a separar vizinhos mais ordeiros. […] Só muito raramente e por acaso as suas partes se haviam unido para formarem algum arremedo de estado”. Muitas são as razões para esta fragmentação: para começar a geografia extremamente acidentada, por outro as “divisões tribais, étnicas e linguísticas […] a rivalidade entre tadjiques, uzbeques, hazaras, pashtun durranis e ghilzais; o cisma entre sunitas e xiitas; o fraccionamento endémico no seio de clãs e tribos; e, sobretudo, os conflitos de sangue entre linhagens próximas”. O Afeganistão “era menos um estado do que um caleidoscópio de principados tribais rivais, governados por chefes guerreiros ou religiosos, cujas lealdades eram inteiramente pessoais, obtidas por negociação e conquistadas, em vez de serem tidas por coisa certa. As tradições tribais eram igualitárias e independentistas, e se alguma vez se haviam submetido a uma autoridade, era nos seus próprios termos que o faziam […] Num mundo assim, nunca o Estado tinha o monopólio do poder, antes concorria como mero pretendente à lealdade”.

Esta imagem do Afeganistão como manta de retalhos de tribos belicosas, onde as crianças aprendem a disparar antes de aprenderem a soletrar e onde os tiroteios são a forma usual de resolver diferendos persiste até aos nossos dias. Há, porém, que fazer uma correcção a este estereótipo: afinal, hoje existem no país 12.5 armas de fogo por cada 100 habitantes, valor inferior ao de um modelo de pacatez como a República de San Marino (15.6), bem como aos valores de países reputadamente “de brandos costumes”, como Portugal (21.3), Islândia (31.7), Finlândia (32.4) ou Canadá (34.7), e, claro, muito abaixo das 120.5 armas/100 habitantes do país que, em 2001, tentou impor a paz e a democracia ao Afeganistão – os EUA.

Vista de Kabul

Em 1747, Ahmad Shah Abdali, da tribo Sadozai (pertencente ao grupo étnico dos pashtun) conseguiu domar o remoinho étnico-religioso afegão e fez-se coroar senhor do Império Durrani, que é tradicionalmente visto como o precursor do Afeganistão moderno e que englobava ainda territórios do que são hoje o Paquistão, a Índia, o Irão e o Turquemenistão. Sob o reinado de Abdali, o Império Durrani foi o segundo maior império muçulmano do mundo, só superado pelo Império Otomano, mas o filho, Timur Shah, que lhe sucedeu em 1772, não foi capaz de manter as possessões ocidentais do reino, que caíram nas mãos do Império Persa.

O Império Durrani na sua máxima extensão territorial, em 1761

A morte de Timur, em 1793, desencadeou uma crise sucessória, potenciada pelo facto de ter deixado 24 filhos, e o efémero Império Durrani, devastado por guerras, escaramuças e pilhagens, rapidamente perdeu esplendor, população, riqueza e território. “Foi neste período que o país se precipitou na transformação de centro sofisticado de ensino e artes – que levara vários dos Grandes Mongóis a considerá-lo um lugar bem mais elegante e culto do que a Índia – nesse fim de mundo flagelado por guerras que viria a ser durante a maior parte da sua história moderna”. Um membro da casa real Durrani, comentando o descalabro em que o Afeganistão mergulhou na viragem dos séculos XVIII/XIX, descreveu-o como “uma terra que só produz pedras e homens”.

Shah Shuja Durrani (1785-1842), um dos filhos de Timur, subiu ao trono em 1803, desalojando Mahmud Shah, um dos seus meio-irmãos, e estabeleceu uma relação privilegiada com os britânicos, mas em 1809 foi deposto pelo mesmo Mahmud Shah e forçado a fugir. Após passar por infortúnios vários – incluindo a prisão – acabou por estabelecer-se, em 1818, em Ludhiana, na fronteira noroeste da Índia, a expensas da Companhia das Índias Orientais, que era a entidade que geria a Índia britânica.

Shah Shuja Durrani numa litografia de 1843, a partir de um desenho por Vincent Eyre

No Afeganistão, os filhos de Timur continuaram a disputar o trono, até que em 1823 este passou a ser controlado por uma tribo rival dos Sadozai, os Barakzai, que tinham uma válida razão de agravo contra os Durrani: em 1813, Fatteh Khan, um Barakzai que era vizir de Mahmud Shah, fora torturado e assassinado por ordem deste. A partir do exílio, Shah Shuja tentara aproveitar-se da situação de tumulto para reconquistar o trono, mas as suas duas incursões no Afeganistão saldaram-se por fracassos. Quem verdadeiramente tirou partido das lutas intestinas entre afegãos foi Ranjit Singh, o “Leão do Punjab” e primeiro marajá do Império Sikh, que se apoderou da cidade afegã de Peshawar.

O primeiro Barakzai no torno afegão foi Sultan Mohammad Khan, a que sucedeu, em 1826, o seu irmão Dost Mohammad Khan (1793-1863), que Shah Shuja – mais uma vez – tentou derrubar em 1834, sem sucesso.

Dost Mohammad Khan com um dos filhos, numa gravura de Scenery, inhabitants & costumes of Afghanistan (1848), pelo tenente (e desenhador) James Rattray, que combateu na Guerra Afegã de 1839-42

Fabricando justificações para a invasão

É frequente que os filmes de Hollywood sobre temas históricos ou cuja acção decorre em países “exóticos” estejam infestados de anacronismos, erros, incongruências e atropelos aos factos que levam a que haja quem se pergunte como é possível que em produções com orçamentos de centenas de milhões de dólares não haja dinheiro para pagar consultores especializados em História de Roma Antiga ou em danças tradicionais mexicanas. Acontece que, muitas vezes, esses consultores até fazem parte da folha de pagamentos dessas super-produções, mas as suas recomendações e reparos são ignorados por realizadores, por guionistas e pela rede de executivos ignorantes e metediços que usualmente parasitam esse tipo de filmes.

Algo de similar se passou com a invasão britânica do Afeganistão, que visava remover do trono afegão Dost Mohammad Khan, que os britânicos suspeitavam (infundadamente) ter-se aliado com o Império Russo e o Império Persa, e recolocar no trono Shah Shuja que era favorável aos britânicos – e tinha obrigação de o ser, já que eram eles que sustentavam, desde 1818, a sua luxuosa corte em Ludhiana.

O Governador-Geral da Índia, George Eden (Lord Auckland) até tinha uma fonte de informação abalizada sobre o Afeganistão e sobre a geopolítica da Ásia Central na pessoa de Alexander Burnes, que já fizera prova das suas aptidões na missão a Bukhara.

George Eden (1784-1849)

Burnes instalara-se em Kabul e os seus relatórios para a Companhia das Índias Orientais deixavam claro que Dost Mohammad Khan praticava uma governação razoavelmente eficaz, tinha uma larga base de apoio e não estava prestes a formar uma aliança com russos e persas. Porém, os dois conselheiros mais influentes de Eden, Claude Wade e William Macnaghten, que nunca tinham posto pé no Afeganistão, filtravam os relatórios de Burnes e só mostravam a Eden as partes que se coadunavam com o seu projecto de reinstaurar Shah Shuja no trono afegão, e convenceram o Governador-Geral de que Dost Mohammad Khan era “um usurpador impopular e ilegítimo, mantido no poder apenas pelos mais ténues elos” e que era mesmo “o mais fraco de todos os chefes do Afeganistão”, enquanto Shah Shuja era estimado pelos seus antigos súbditos e seria calorosamente acolhido.

Na verdade, Dost Mohammad Khan começou por tratar com frieza o enviado do Império Russo em Kabul, Ivan Vitkevicth, e manifestou interesse em aliar-se aos britânicos, solicitando, por carta, a Lord Auckland que intercedesse junto de Ranjit Singh para que este lhe devolvesse Peshawar, mas o Governador-Geral deu-lhe uma resposta de uma rematada hipocrisia: “Meu amigo, estais sabedor de que não é prática do Governo britânico interferir nos assuntos de outras nações independentes e deveras não me ocorre imediatamente de que forma uma intervenção do meu Governo poderia ser exercida em vosso benefício”.

Ranjit Singh (1780-1839), primeiro marajá do Império Sikh, c.1830

Burnes fez tudo ao seu alcance – na verdade, até excedeu as competências que lhe estavam atribuídas – para mudar a atitude de Lord Auckland, mas não só não o conseguiu como foi repreendido e chamado de volta para a Índia. Ao mesmo tempo, Lord Auckland enviou Macnaghten para obter de Ranjit Singh o apoio para a invasão do Afeganistão, ao que Singh acedeu, mas de forma tão astuta que o que deveria ter sido uma operação militar da responsabilidade de Singh e Shah Shuja, em que os britânicos entrariam apenas com financiamento e equipamento, se converteu, quase imperceptivelmente, numa expedição quase integralmente britânica. Para obter autorização do Parlamento britânico para esta insensata operação, Lord Auckland remeteu para Londres um relatório fraudulento, que Dalrymple compara aos que justificaram a invasão do Iraque em 2003 com a existência no país de armas de destruição maciça.

Enquanto os preparativos para a invasão se intensificavam, Shah Shuja, cuja recondução ao trono era, supostamente, a razão da invasão, nem sequer fora informado, o que dá uma medida da sobranceria britânica e também faz eco no nosso tempo: a retirada atabalhoada dos EUA do Afeganistão em 2021 foi vista como um rotundo fracasso da administração Biden (e, em parte, foi), mas resultou do Acordo de Doha, assinado em Fevereiro de 2020 por representantes da administração Trump e dos taliban, após conversações de que o legítimo governo afegão foi excluído.

Enquanto os preparativos para a invasão decorriam, as movimentações que o Império Russo e o Império Persa tinham vindo a desenvolver na Ásia Central e que, supostamente, justificariam a operação britânica, dissiparam-se, e por outro lado, a fome instalou-se no Norte da Índia, o que deveria ter levado o Governador-Geral a rever as suas prioridades. Porém, George Eden não se desviou dos seus propósito: a concentração de tropas, mantimentos, munições e meios de transporte prosseguiu e foi feita uma proclamação pública para justificar a invasão: “devemos, para nossa própria segurança, auxiliar o legítimo soberano do Afeganistão na recuperação do seu trono”.

Em Dezembro de 1938, o “Exército do Indo”, comandado pelo general John Keane e que contava com 1000 britânicos, 14.000 sipaios e 6000 mercenários contratados por Shah Shuja, partiu do Punjab, rumo ao Afeganistão.

Fevereiro de 1839: O Exército do Indo entra no desfiladeiro de Bolan, no que era então a fronteira entre o Afeganistão e o Baluquistão. Litografia de 1842, por Charles & Louis Hague, a partir de aguarela de 1839 por James Aktinson, da série “Sketches in Afghanistan”

Pompa e arrogância

O compositor Edward Elgar (1857-1934) tem obras bem mais válidas, mas, desgraçadamente, ficou conhecido junto do grande público pelas Marchas de pompa e circunstância (1901-07), cujo espalhafato, auto-confiança, empáfia e vulgaridade são uma adequada representação do espírito imperial britânico. A vocação de Elgar como propagandista do Império, está também patente nas marchas que compôs para o Jubileu de Diamante da rainha Vitória (1897) e para a coroação de Jorge V (1911), na Empire march (1924), na “masque” The crown of India (1912), destinada à celebração da visita de Jorge V à Índia, e ainda no ciclo de canções The pageant of Empire, composto para a Exposição do Império Britânico de 1924, em Wembley Park.

Este pomposo e arrogante espírito imperial é retratado com certeira ironia ao longo do livro, nomeadamente na descrição da primeira visita do Governador-Geral da Índia a Bengala e às províncias do Noroeste: a comitiva de George Eden contava com 12.000 pessoas – entre funcionários e respectivas famílias, soldados e serviçais –, 140 elefantes, 850 camelos e várias centenas de cavalos; só a esposa de William Macnaghten tinha um “séquito constituído por um gato persa, um periquito cor-de-rosa e cinco serviçais”, uma das quais tinha por “única ocupação guardar e alimentar o periquito”.

Da comitiva desta visita de Estado faziam também parte as irmãs de George Eden, Emily e Fanny, a primeira das quais deixou detalhado relato sobre a sua estadia na Índia – as suas primeiras impressões são reveladoras de um enfado posh e do sentimento de superioridade britânica perante as populações da Índia e Ásia Central: “Estamos rodeados por barcos tripulados por gente negra, que, por alguma estranha inadvertência, se esqueceu de vestir fosse que roupa fosse”.

Poderia esperar-se que o “Exército do Indo”, sendo uma unidade de combate, dispensasse parte do aparato da visita do Governador-Geral a Bengala, mas entre os altos funcionários e oficiais poucos pareciam dispostos a abdicar das suas prerrogativas, o que explica que a expedição propriamente dita fosse acompanhada por 38.000 serviçais e auxiliares e contasse com 30.000 camelos para transporte de bagagens. “Um brigadeiro proclamou que necessitava de 50 camelos para levar as suas coisas, enquanto general Cotton levava 260 para as dele. 300 camelos estavam reservados para o transporte da cave de vinhos militar”. Se há que guerrear, que se faça em grande estilo – e sem sacrificar as tradições desportivas: “Um dos regimentos tinha trazido consigo para a frente os seus próprios cães de caça à raposa”. O major-general Nott, que tinha origens humildes e “olhava de soslaio” para o oficialato de origens aristocráticas, testemunhou que “um dos regimentos tem dois camelos para o transporte dos melhores charutos de Manila, enquanto outros camelos transportam geleias, pickles, cigarrilhas, conservas de peixe, carnes hermeticamente seladas, bandejas, copos, faqueiros, velas, roupa de cama, etc.”.

Tropas britânicas ao assalto de Ghazni, numa litografia de W. Taylor segundo desenho do tenente Thomas Wingate, 1839: A tomada de Ghazni foi um dos raros sucessos militares do Exército do Indo

As planícies de sal de Dadur e as sinuosas e perigosas estradas de montanha cobraram um pesado tributo em vidas e equipamento e infligiram duras privações à coluna, de forma que “antes de ter combatido sequer um afegão, o exército já era um destroço”. A sorte dos britânicos foi que os afegãos, num primeiro momento, não se deram conta do estado de debilidade e exaustão do exército invasor e ficaram intimidados com a sua extensão, de forma que Kandahar se rendeu sem que fosse necessário disparar um tiro. Alguns chefes tribais passaram-se para o lado de Shuja, graças a subornos vitalícios prometidos pelos britânicos; e mais chefes o fizeram quando, numa conjugação de sorte e de acção oportuna, os britânicos capturaram Ghazni e Ali Masjid, duas fortalezas afectas a Dost Mohammad. Este convocou, em Kabul, os senhores da guerra a fim de planear a resistência ao invasor, mas viu-se abandonado por todos eles – dando prova das volúveis lealdades dos chefes afegãos – e não teve alternativa senão fugir da cidade. O Exército do Indo entrou sem resistência na capital afegã e, em Agosto de 1839, Shah Shuja foi coroado rei.

Shah Shuja Durrani no pátio das audiências de Bala Hissar, a cidadela de Kabul, em 1839, pouco depois de ter sido reinstalado no trono afegão. Gravura a partir de aguarela do tenente James Rattray

O fim ou o princípio da guerra?

Tal como aconteceria com a invasão americana de 2001, a operação britânica pareceu surpreendentemente fácil. O Governo britânico, agradado com o triunfo, recompensou John Keane, William Macnaghten e Claude Wade com o título de baronete e George Eden com o título de 1.º conde de Auckland; Alexander Burnes já recebera o título de “Sir” antes da invasão, o que tivera o efeito – pretendido – de silenciar a sua oposição ao empreendimento, e a nomeação como adjunto de Macnaghten “domesticou-o” de vez. Passado pouco tempo, entre as lideranças britânicas “já se discutia discretamente a ideia da anexação permanente do Afeganistão […] e a mudança da capital de Verão do Raj [o Império Britânico da Índia] das alturas inacessíveis de Simla [nos Himalaias] para os ricos jardins do vale de Kabul”.

Porém, os britânicos começaram a perceber que, “por mais proclamações de que estavam a restaurar a paz no Afeganistão e de ali estarem a convite do legítimo soberano do país […], no instante em que pusessem um pé fora do acampamento fortemente guardado, podiam ter a garganta cortada”. Foi este crescendo de ataques, conjugado com a vaga ambição de anexação do território, que levou George Eden a tomar a decisão de manter parte das tropas britânicas no Afeganistão depois de Shah Shuja ser reposto no trono, alegando que “devemos durante algum tempo estar preparados para apoiar o Shah”. Tal como aconteceu com os americanos em 2001, uma invasão-relâmpago para promover uma “mudança de regime”, converteu-se numa ocupação. E a ocupação começou a tornar-se cada vez mais difícil de suportar para os afegãos, que começaram a ver Shah Shuja como uma marioneta controlada pelos kafir (infiéis) e a sentir-se humilhados por a prostituição em Kabul se ter desenvolvido explosivamente, para dar satisfação às necessidades do exército anglo-indiano nela estacionado (cujos oficiais não hesitavam mesmo em seduzir as esposas dos senhores afegãos).

William Hay Macnaghten (1793-1841), conselheiro do Governador-Geral da Índia, partilhou a governação do Afeganistão com Shah Shuja no período 1839-41. Litografia de 1843, a partir de um desenho por Vincent Eyre

Durante os primeiros tempos da presença britânica, a paz no Afeganistão (incluindo a segurança nas estradas) foi comprada mediante generosos “subsídios” regulares aos chefes tribais, mas George Eden começou a mostrar relutância em manter este esquema, por um lado porque que representava um sério rombo nas finanças do Governo-Geral da Índia, que os magros impostos cobrados no Afeganistão ficavam muito longe de cobrir; por outro porque, em Novembro de 1839, Londres instruíra o Governador-Geral da Índia para destacar unidades militares para intervir na China, naquilo que ficaria conhecido como a Primeira Guerra do Ópio e em que os britânicos impuseram ao Governo chinês, pela forças das armas, a manutenção do infame comércio de ópio, que estava a converter largos sectores da sociedade chinesa em toxicodependentes (ver capítulo “Cantão, 1839: A Grã-Bretanha como narco-estado” em Cinco séculos de comércio livre e proteccionismo, parte 1: 1498-1580). Para que se tenha noção da iniquidade da política britânica na Ásia, deverá realçar-se que o ópio que a Companhia das Índias Orientais vendia na China, usando como “testas de ferro” diversos empresários britânicos (de forma a que o respeitável nome da Companhia não ficasse associado ao tráfico de estupefacientes), provinha do Norte da Índia, onde a Companhia incentivara os agricultores a trocar o cultivo de cereais pelo da papoila-dormideira, o que levou a que, nos maus anos agrícolas, as vagas de fome se tornassem bem mais mortíferas.

Vista de Kandahar: Litografia de 1848 a partir de desenho realizado em Dezembro de 1841 pelo tenente James Rattray

“Com o desvio de recursos tão necessários para consolidar a ocupação do Afeganistão para a sua nova Guerra do Ópio, Auckland conseguiu que Macnaghten [a quem incumbia, na prática, a governação do Afeganistão] nunca dispusesse das tropas ou dos fundos indispensáveis a fazer do reinado de Shah Shuja um êxito”. Ficaram por construir as fortificações que a prudência recomendaria e os aquartelamentos foram erguidos em locais inadequados, o que deixou as tropas britânicas em Kabul numa posição indefensável; ao mesmo tempo, os chefes tribais afegãos, que alimentavam expectativas de aumento do seu estipêndio, viram pelo contrário a sua diminuição, o que os fez sentirem-se atraiçoados. Privados dos subsídios, alguns chefes tribais viram-se compelidos a retomar o seu modo de vida ancestral: o de salteadores de estradas.

A ideia dos britânicos era canalizar o dinheiro usualmente gasto em “subsídios” a chefes tribais como contrapartida de não fazerem guerra nem pilhagens e fornecerem guerreiros ao emir, para a constituição de um exército nacional, em moldes modernos e treinado e equipado pelos britânicos. A ideia até poderia ser benéfica para o Afeganistão, mas desagradou profundamente aos senhores que recebiam os “subsídios”, pelo que o descontentamento começou a fermentar antes de o “exército nacional” ter começado a ganhar forma.

Todavia, mesmo que o plano de constituir tal exército tivesse sido levado até ao fim, é provável que se revelasse tão inútil quanto as Forças Armadas Afegãs erguidas no início do século XXI pelos EUA, a custo de 83.000 milhões de dólares: boa parte desta soma foi dissipada em corrupção, pelo que as forças reais eram bem menores e mais mal equipadas do que as que figuravam no “papel”, e o esprit de corps e o moral dos militares afegãos eram tão diáfanos que, em 2021, bastaram alguns tiros disparados por grupelhos de taliban para que entregassem as armas ou mudassem de lado.

“O desfiladeiro de Siri-Kajoor”, um episódio da Primeira Guerra Anglo-Afegã, numa litografia de 1842 por Louis & Charles Hague, a partir de aguarela de James Atkinson

Uma paz podre

Entretanto, o emir deposto, Dost Mohammad, que começara por buscar refúgio junto dos uzbeques, em Khamard, e, depois, em Balkh, acabara por aceder ao convite do emir de Bukhara para se instalar nesta cidade; todavia, as relações entre hóspede e hospedeiro azedaram rapidamente e o emir mandou encarcerar Dost Mohammad. Este conseguiu evadir-se e assumir a liderança de uma jihad contra os kafir, que congregou um apreciável número de insurrectos. Todavia, as escaramuças entre rebeldes afegãos e exército ocupante não produziram resultados decisivos e, no final de 1840, Dost Mohammad acabou, inesperadamente, por entregar-se aos britânicos, que, aliviados, o recompensaram com tratamento deferente (o que agastou Shah Shuja, que esperara que o arqui-inimigo lhe fosse entregue para ser executado ou, pelo menos, cegado) e um exílio dourado sob controlo britânico, rodeado de um séquito de 1100 pessoas, entre familiares e serviçais. Entre os 22 filhos que seguiram Dost Mahommad para o exílio, não se contava o mais belicoso, decidido e implacável, Akbar Khan, mas como ficara aprisionado em Bukhara, era algo com que os britânicos não tinham de se preocupar.

Por outro lado, a Guerra Egípcio-Otomana, que estalara em 1839, levara a que, numa pirueta geo-estratégica, Grã-Bretanha e Rússia se aliassem com o Império Otomano, contra o Paxá do Egipto, que tinha o apoio de França e Espanha. Com a “neutralização” de Dost Mohammad e o rearranjo da geopolítica euro-asiática, esfumavam-se os dois pretextos originais para a ocupação britânica do Afeganistão, mas os britânicos não arredaram pé, embora diminuíssem significativamente (e imprudentemente) o contingente militar no país.

A verdade é que a paz no Afeganistão era periclitante e o Punjab estava em efervescência desde a morte de Ranjit Singh falecera, subitamente, em 1839, o que perturbava as comunicações entre a Índia e o Afeganistão. Porém, os altos círculos do poder britânico assumiram que a pacificação do Afeganistão estava concluída, pelo que, no final de 1840, nomearam como comandante das forças britânicas no país o general William Elphinstone, que não tinha quaisquer qualificações para o cargo: não só era tíbio e indeciso como estava precocemente envelhecido e incapacitado pela gota (“praticamente um inválido”, nas palavras de Dalrymple), não comandava forças em combate há 25 anos, passara os últimos anos na reforma (só regressara ao activo porque tinha imensas dívidas para pagar) e não tinha o mais pequeno conhecimento ou interesse relativo ao Afeganistão.

O general William Elphinstone (1782-1842) num retrato c.1836-39 por William Salter

A carreira anterior de Elphinstone só não fora um desastre porque os seus adjuntos tinham colmatado a sua aflitiva incapacidade para tomar decisões – acontece que quem foi nomeado como segundo-comandante de Elphinstone no Afeganistão foi o brigadeiro-general John Shelton, um veterano das Guerras Peninsulares (que perdera um braço no cerco de San Sebastián), e que Dalrymple classifica como “um dos oficiais mais imprestáveis, mais desagradáveis e mais impopulares de todo o exército” e que se incompatibilizou, desde o primeiro momento, com Elphinstone, que o descreveu assim: “nunca me deu informação ou conselho, mas sempre encontrava falta em tudo o que fosse feito e contestava e condenava todas as ordens perante os oficiais […] Parece ser motivado por algum ressentimento contra mim”.

Nuvens de tempestade sobre as montanhas

Pouco a pouco, a resistência afegã contra Shah Shuja e os britânicos foi crescendo, incentivada pela inépcia, falta de tacto e, por vezes, brutalidade dos britânicos em lidar com os chefes tribais; com o declínio dos “subsídios” que compravam a lealdade destes e a cessação dos pagamentos “vitalícios” que tinham sido acordados em 1839 para comprar o apoio a Shah Shuja; pelo facto de milhares de afegãos terem sido expulsos de suas casas para aquartelar o exército anglo-indiano; pela sofrível governação de Shah Shuja, a quem os anos de exílio tinham exacerbado o lado cruel e vingativo e cuja ostentação de poderio e esplendor imperial era inversamente proporcional à confiança que sentia; e pelos desacertos na governação bicéfala de Shah Shuja e Macnaghten, que frequentemente tomavam posições contraditórias. A governação do país tornar-se-ia ainda mais desastrosa quando os britânicos, fartos dos atritos com Shah Shuja, demitiram o seu vizir, Mullah Shakur, e colocaram Uthman Khan, “uma alternativa mais flexível e pró-britânica”, no posto de Nizam al-Daula (ministro principal). O novo vizir votou Shah Shuja ao desprezo e respondia apenas perante os britânicos, que, na prática, assumiram o controlo completo da governação, o que acirrou ainda mais os ânimos dos afegãos e fez com que até os chefes da tribo Sadozai (a de Shah Shuja) começassem a sentir-se alienados e inclinados a alinhar com os insurrectos.

Guerreiros do Kohistan, uma região a norte de Kabul, de etnia dominantemente tadjique. Litografia de 1847, a partir de desenho de 1842 por James Rattray

Apesar de os sinais de descontentamento serem cada vez mais óbvios, as chefias britânicas no Afeganistão recusavam-se a dar-lhes valor. Macnaghten, o mais petulante e sobranceiro, punha assim de parte os avisos e relatórios sombrios: “Julgo que as perspectivas são sobremaneira animadoras […] Estas gentes são perfeitas crianças e como tal devem ser tratadas. Se colocarmos um rapaz travesso de castigo a um canto, os restantes ficarão aterrorizados. Tirámos o brinquedo deles, o poder, das mãos dos chefes […] Nas suas mãos era inútil e sempre prejudicial a seu amo e somos obrigados a transferi-lo para os nossos eruditos”. Ao Governador-Geral da Índia, Macnaghten garantia que as insurreições eram uma mera “briga por causa de umas deduções que lhes foram feitas nos pagamentos” e preconizava que “estes sujeitos ainda vão precisar de muitas sovas até sossegarem e se tornarem cidadãos pacíficos” – uma síntese lapidar da ideia de “missão civilizadora do Ocidente” que ainda hoje prevalece na Europa e EUA, ainda que as convenções, a hipocrisia e a “correcção política” (três conceitos que amiúde se confundem) impeçam que seja formulada em público com a clareza usada por Macnaghten.

Até Alexander Burnes, um profundo conhecedor Afeganistão, se deixara levar pela ambição e pelo hedonismo e envolvera-se a tal ponto com a ocupação britânica que se tornou na figura estrangeira mais odiada pelos afegãos.

Para tornar a situação britânica ainda mais desamparada, o estado de saúde do general Elphinstone agravara-se irremediavelmente desde que chegara ao Afeganistão e em meados de 1841 o seu médico descrevia-o como “um verdadeiro destroço” e “totalmente incapacitado”.

William Elphinstone numa aguarela de 1837, por William Derby, que está longe de dar ideia do estado do general em 1841

O descalabro

No início de Novembro de 1841, a revolta estalou em Kabul e uma das suas primeiras vítimas foi o detestado Alexander Burnes, massacrado em sua casa por uma turba em fúria, que deixou o seu corpo decapitado na rua, para ser comido pelos cães. Das regiões em volta, começaram a convergir para Kabul dezenas de milhar de insurrectos, de diversas etnias e com diferentes motivações – o que os unia, para lá do ódio aos britânicos e da perspectiva de pilhagens, era a retórica religiosa, “uma novidade relativa na história interna dos povos afegãos, já que todos os anteriores conflitos tinham sido entre muçulmanos” (Dalrymple).

Kabul não estava provida de fortificações adequadas, os aprovisionamentos não estavam adequadamente localizados ou defendidos e o exército britânico, sob o frouxo comando de Elphinstone, tinha-se tornado indisciplinado e ineficaz. E, apesar da multiplicação de sinais de agitação entre os afegãos, as chefias militares britânicas foram apanhados de surpresa pelo levantamento e revelaram apenas apatia, indecisão e desnorte. Do outro lado, a insurreição afegã, que começara por ser espontânea e pouco organizada, ganhou foco e determinação com a chegada a Kabul de Akbar Khan, filho de Dost Mohammad, que acabara de ser libertado do cativeiro em Bukhara; sob a sua liderança, num ápice os rebeldes conquistaram vários ponto-chave e apoderaram-se quase todas as provisões acumuladas pelos britânicos.

O príncipe Akbar Khan (1813-1845)

Perante uma situação que se tornara insustentável em poucos dias, o general Shelton conseguiu impor a insensata solução de retirar quanto antes para a Índia e o presunçoso Macnaghten viu-se forçado a encetar negociações com Akbar Khan, com o objectivo de obter garantias de segurança para a retirada, em troca de avultado pagamento e da promessa de que a Grã-Bretanha não voltaria a interferir nos assuntos internos afegãos. Tal como acontecera com o plano de invasão, na negociação do plano de retirada os britânicos não se dignaram consultar ou informar o seu principal aliado, Shah Shuja. As negociações entre Macnaghten e Akbar Khan foram tornando-se cada vez mais arrastadas e dúbias e tiveram um desfecho sangrento a 23 de Dezembro de 1841, quando num encontro entre Akbar Khan e Macnaghten, o primeiro acusou o segundo de o atraiçoar, aliciando outras tribos afegãs para desertarem para o lado britânico e oferecendo um prémio vultoso pela cabeça do líder rebelde – Macnaghten foi assassinado ali mesmo por Akbar Khan e, após ter sido decapitado, foi arrastado pelas ruas até ao bazar da cidade, onde foi esfolado e as “suas entranhas penduradas num gancho de carne”.

As chefias britânicas, estarrecidas, voltaram às negociações com Akbar Khan, cujas exigências não paravam de aumentar, ao mesmo tempo que as provocações, surtidas e pilhagens dos afegãos se intensificavam. Tendo ficado acordado que Akbar Khan iria providenciar escolta, provisões e salvo-conduto para a retirada, a 6 de Janeiro de 1842, o que restava da guarnição de Kabul – 700 soldados britânicos, 3800 sipaios e 14.000 civis (funcionários e respectivas famílias e serviçais) – saiu da cidade, sob condições meteorológicas extremamente inclementes, mas não só não encontrou a escolta e as provisões acordadas, como a longa e desorganizada coluna começou de imediato a ser fustigada por todos os lados por guerreiros afegãos, a que as chefias militares britânicas, imobilizadas pela tibieza e pela desorientação, não souberam fazer frente.

“A derradeira resistência”: Os últimos combatentes do 44.º Regimento, em Gundamak, num quadro de 1898 por William Barnes Wollen

A marcha da coluna através das montanhas num dos Invernos mais frios de que havia memória e sob constante ataque dos afegãos foi ganhando contornos dantescos e acabou com o seu quase completo extermínio – das 16.000 almas que a iniciaram, apenas uma, o cirurgião-adjunto William Brydon, logrou chegar, em penoso estado, a Jalalabad, uma das cidades afegãs ainda sob controlo britânico. Os restantes sucumbiram ou foram feitos prisioneiros e vendidos como escravos – em Setembro de 1842, quando os britânicos conseguiram negociar o resgate dos prisioneiros europeus, restavam vivos 32 oficiais, 50 soldados, 21 crianças e 12 mulheres. Estima-se que tenham sobrevivido cerca de 2000 sipaios, boa parte deles mutilados (por ferimentos em combate, em resultado do frio extremo ou de maus-tratos e torturas após terem sido capturados), muitos dos quais acabaram os seus dias como pedintes em Kabul.

Como realça Dalrymple, “em pleno auge do Império Britânico, numa altura em que os britânicos controlavam uma porção maior da economia mundial do que alguma vez conseguiram depois, e num tempo em que as forças tradicionais eram massacradas em todas as partes do mundo por exércitos coloniais de nações industrializadas, aquele foi um raro momento de humilhação colonial”.


Retaliação

Quando a notícia da aniquilação do exército de Elphinstone chegou à Índia, George Eden sofreu um colapso, possivelmente resultante de um acidente vascular cerebral. De imediato foi apertada a vigilância sobre o exilado Dost Mohammad e interditada a sua comunicação com quaisquer afegãos, não fosse ele evadir-se e assumir a liderança da revolta no Afeganistão, ou, até mesmo, comandar uma invasão afegã do Norte da Índia. Ao mesmo tempo, foi constituída uma nova força expedicionária britânica, a que foi dado o nome de Exército de Retaliação e para cuja chefia Eden, entretanto recuperado, nomeou mais um general “frágil e senil”, Harry Lumley, que só não assumiu o comando porque “foi afastado por ordem médica” (a inclinação de Eden no que toca a chefias militares era claramente gerontófila). Entretanto, a substituição de Eden já estava em curso, em resultado não do seu desempenho no cargo, mas de mudanças no poder político na Grã-Bretanha, e o novo Governador-Geral, Lord Ellenborough, desembarcou em Madras em 21 de Fevereiro de 1842 – e designou o general George Pollock como comandante do Exército de Retaliação.

George Pollock

Entretanto, em Kabul, ocorria mais uma reviravolta no equilíbrio de poder, só possível numa manta de retalhos tribal onde a lealdade era um conceito extremamente fluido: por um lado, a rápida ascensão de Akbar Khan, que ganhara grande prestígio ao apelar à jihad e apresentar-se como “campeão do Islão”, despertou o ressentimento e inveja dos chefes que tinham iniciado a revolta; por outro, Shah Shuja aproveitou a ausência de Akbar Khan, que partira para cercar Jalalabad, para, num ápice, “branquear” o seu passado de colaboração com o invasor, aliciar (nomeadamente com promessas financeiras fantasistas) alguns líderes da revolta e promover a ideia de que a sua continuidade no lugar de emir era a melhor alternativa para o Afeganistão – um argumento que tinha implícito que as boas relações de Shah Shuja com os britânicos poderiam “suavizar” as previsíveis represálias britânicas.

Mas, por outro lado, as pressões dos chefes tribais para que Shah Shuja desse provas da sua ruptura com os britânicos indo auxiliar Akbar Khan no cerco de Jalalabad foram intensificando-se e o emir, após semanas de evasivas e falsos pretextos, concluiu que não poderia manter o jogo duplo durante mais tempo e saiu da cidadela de Bala Hissar rumo a Jalalabad – e foi, de imediato, assassinado por um dos seus afilhados, não por motivos políticos mas por puro despeito (o rapaz sentira que ele e o seu clã tinham sido desconsiderados na distribuição de benesses e honrarias por Shah Shuja).

Akbar Khan sofreu uma inesperada derrota no cerco de Jalalabad e voltou a ser derrotado pelo Exército de Retaliação, sob o competente comando de Pollock, que reconquistou Kabul com facilidade. O Exército de Retaliação pilhou e incendiou boa parte da capital afegã e demoliu o seu bazar – “uma das supremas maravilhas da arquitectura mogol […] e um dos mais grandiosos edifícios da Ásia Central” –, reduziu Jalalabad a um monte de escombros, saqueou, violou e chacinou civis indefesos, arrasou aldeias e abateu pomares, num fúria que não poupou sequer comunidades favoráveis aos britânicos, como os mercadores hindus de Kabul, e que deixou consternados alguns dos oficiais mais lúcidos. Após ter feito jus ao seu nome e enraizado o ódio à Grã-Bretanha no fundo do coração dos afegãos, o Exército de Retaliação pôs-se a caminho da Índia, flagelado pela fuzilaria dos guerreiros afegãos a partir do alto dos desfiladeiros.

O bazar Char-Chatta, em Kabul, numa recriação de 1932 por Ustad Abdul Ghafur Breshna

Balanço e contas

Ao mesmo tempo que o Exército de Retaliação rumava à Índia, o novo Governador-Geral da Índia, numa desconcertante cabriola, libertava Dost Mohammad Khan. Ellenborough concluíra que Dost Mohammad seria a melhor escolha para assegurar estabilidade no Afeganistão e, portanto, providenciou ao monarca uma numerosa escolta e um robusto patrocínio, nomeadamente sob a forma de uma proclamação oficial que é um modelo de hipocrisia imperialista: “Impor um soberano a um povo relutante seria inconsistente tanto com a diplomacia, como o é com os princípios do Governo britânico”.

Dost Mohammad, acompanhado pelo séquito que o seguira no exílio, encaminhou-se, sem pressa, para o seu país, onde, entretanto, o filho, Akbar Khan assumira a liderança, e proclamou-se emir do Afeganistão independente em 1843. Ou seja, após quatro anos de morte e destruição, chegou-se a um equilíbrio geopolítico idêntico ao que existia antes da guerra, quando Dost Mohammad tentara estreitar laços com o Governo-Geral da Índia, mas com uma diferença assinalável: o Afeganistão de 1843 “era também um país mais empobrecido e isolado do que alguma vez fora na sua história. Deixara de ser a rica encruzilhada da Rota da Seda e jamais voltaria a viver os grandes dias da cultura timúrida de raiz persa” (Dalrymple).

Segundo Dalrymple, após regressar à Grã-Bretanha, George Eden, Lord Auckland, o homem que fora o principal responsável por uma guerra absolutamente inútil e que se saldara num dos maiores desastres militares da história da Grã-Bretanha, “viveu meio em desgraça, em Kensington, e morreu, com 65 anos, em 1849”, o que não corresponde à verdade: no final de 1842, obteve selo real a decisão de baptizar com o seu nome aquela que é hoje a cidade mais populosa da Nova Zelândia, Auckland, e em 1846, Eden foi, pela terceira vez na carreira, nomeado para um dos mais altos cargos da nação, o de Primeiro Lord do Almirantado (que já desempenhara em 1834 e 1835).

Auckland, Nova Zelândia, em 1857

O Império Britânico não só recompensou a incompetência e sobranceria de Eden, como mostrou pouco ou nada ter aprendido com a guerra de 1839-42, uma vez que voltou, em 1878, a ser assaltado pelo temor de que o emir do Afeganistão, Sher Ali Khan, filho de Dost Mohammad Khan, estivesse a ser aliciado pelos russos, pelo que voltou a invadir o país.

Ainda haveria uma Terceira Guerra Anglo-Afegã, em 1919, antes de soviéticos (em 1929 e entre 1979 e 1989) e americanos e NATO (entre 2001 e 2021) tentarem, por sua vez, subjugar “a terra que só produz homens e pedras” – a única coisa que estas intervenções conseguiram foi que, a partir da década de 1980, a terra passasse também a produzir ópio em abundância e seja hoje responsável por 90% do tráfico mundial de heroína. Heroína e refugiados: eis as duas únicas exportações relevantes do Afeganistão no século XXI.