Há uma série de lugares comuns críticos que parecem justos acerca de Agustina. Barroca. Pérfida. Pessimista. Aforística. Tudo isto se pode dizer de Agustina, sim, embora com a insatisfação das verdades incompletas. Nada disto toca a experiência fundamental que a leitura de Agustina nos traz. Muito menos cem anos depois do seu nascimento, data que se assinala este sábado, 15 de outubro (o dia em que arrancam as comemorações deste centenário, primeiro em Amarante, depois em Serralves, no Porto).
É verdade que os seus são romances de interior, dominados não tanto pelo sentimento como pelo remoer desses mesmos sentimentos; o estranho ritmo dos seus textos, quase monótono na forma como nenhuma hierarquia se constitui a partir da ação, nenhuma peripécia parece ocupar mais do que as outras, todos os acontecimentos são analisados como se tomassem todos a mesma importância, o estranho ritmo que daqui advém dá de facto a ideia de uma catedral barroca, em que cada momento vale por si próprio e o caminho se vai alargando a ponto de quase perdermos a direção.
É verdade, também, que as relações entre mães e filhas são repassadas por uma maldade íntima, cheia de códigos e subtilezas femininos, que conseguem ser sufocantes na forma como a esperança na bondade do homem é abafada no meio de ninharias domésticas. Toda a grandeza das personagens, uma grandeza malvada, é certo, mas ainda assim uma grandeza, torna-se insuportável pelo modo como é desperdiçada entre quotidianos irrisórios.
O modo aforístico de Agustina escrever, aqueles lampejos de lucidez condensada que qualquer assunto pretexta e que demonstram não só uma profundíssima capacidade de penetração mas também que essa capacidade é surpreendentemente elástica, capaz de perceber os mais variados segredos da humanidade, quadra, obviamente, com tudo isto. É a grandeza da análise que mostra como aquelas mulheres representam, no fundo, inteligências desperdiçadas, que trava os enredos e que os torna pessimistas no modo como a revolta da inteligência a torna quase sempre uma aliada do mal.
Tudo isto, no entanto, é insuficiente para perceber o fascínio que a leitura de Agustina exerce.
Uma das coisas mais interessantes nela está no facto de ter uma consciência apuradíssima da sua genealogia literária e do espaço em que melhor poderia devolver o seu modo narrativo. Há muito de Camilo em Agustina, da ruralidade endemoninhada do autor da Bruxa do Monte Córdova, há muito de Dostoievski nas personagens temperamentais e no romance psicológico, há muita psicanálise na consciência de que o rememorar dos episódios acaba por se tornar o mais importante destes mesmos episódios; a junção de todos estes espaços, a que se poderia juntar também uma certa frieza pombalina, é completada por uma sensação de sufoco que não se encontra em mais lado nenhum.
Aquela complexidade feminina das suas personagens, o amor maldoso e sem afetos, a altivez, tudo isso pode ser visto como consequência tanto daquela solidão rural que leva qualquer pessoa a conviver demasiado com os seus demónios como deste estranho processo de autoanálise que nos transforma em escravos das nossas vitórias e derrotas; no entanto, não há Quinita, não há Fanny, não há Agustina sem um certo orgulho e sem uma superioridade não realizada que fazem parte do fundamental das personagens de Agustina. A consciência de que a inteligência é uma potência pérfida, que nos dá poder sobre os outros, que nos revela os seus segredos, que se basta a si mesma, tornando-nos egoístas ou pouco generosos é uma consciência que está em Agustina como em nenhum outro sítio.
Ora, nada concorre para o fascínio das suas grandes mulheres como isto. Porque é esta consciência que parece dotá-las de um dom sobrenatural, que as leva para um território próximo da bruxaria, e que ao mesmo tempo nos faz ter pena delas, enclausuradas num mundo que as desperdiça. É uma inteligência dominadora, que nos faz ter medo delas, mas que ao mesmo tempo as impede de procurarem ser mais do que aquilo que são, satisfeitas com o seu orgulho. É uma estranha inteligência, cheia de afeições e sensibilidade, uma inteligência emocional repassada de culpa e desespero, que deve muito aos mestres de Agustina mas também a afasta deles. Não é uma inteligência recalcada freudianamente, nem uma emoção histérica dostoievskiana, nem sequer uma culpa soberana ao modo de Kierkegaard. É uma culpa orgulhosa e leve, que tem o condão de aliviar o mal e contaminar o bem.
É esta inteligência que torna as personagens de Agustina impermeáveis à opinião circundante e que as faz livres, de uma liberdade solitária que dificilmente alguém pode desejar; mas é também ela que permite sobreviver com um entono fidalgo à miséria e às vidas pouco satisfatórias. A luta das mulheres de Agustina, o seu grande património, não é deste mundo: estas são mulheres com uma cabeça divina, o que faz do destino o seu único grande competidor. Tudo, da relação com as mães aos acasos da fortuna, parece construído para ver quando vergam. No entanto, elas descobrem sempre uma maneira insidiosa de mostrar que estão vivas, que são mais fortes e que, mesmo que tenham vendido a alma ao diabo, não é garantido que não o tenham enganado.