Alexandra Cousteau tem um apelido de peso. O seu avô, Jacques Cousteau, é conhecido por se ter tornado praticamente sinónimo de criatura submarina, um explorador que dedicou a vida aos oceanos e a divulgá-los, capturando imagens tão belas que lhe valeram até uma Palma de Ouro em Cannes (Le Monde du Silence, em 1956). Alexandra, que aos 7 anos já estava a aprender a fazer mergulho com o avô, bebeu toda essa influência — “absorvi essa narrativa” — e tornou-se também ativista em defesa dos mares.
A conservação dos oceanos é a sua grande batalha e a francesa quer trazer uma nova forma de abordar o problema. “Sustentabilidade é uma palavra que já não significa nada”, disse, perante a plateia que a foi ouvir na conferência The Future of Politics, organizada pela Advance Leadership Foundation. E deu como exemplo “o bacalao” (bacalhau, entenda-se): os stocks mundiais estão a 6% do que já foram no seu máximo e, mesmo assim, a espécie é considerada atualmente como “sustentável” quando comparada com outras que têm reservas ainda menores. Perante isto, como resolver o problema? Por um lado, como consumidores, fazendo perguntas. “Deixem um bilhete para o chef: ‘Adorei o peixe. Da próxima vez, pode dizer-me onde foi pescado?’ Não tem de ser uma coisa zangada ou negativa”, diz a ativista em entrevista ao Observador, após a sua apresentação.
Mas é claro que isso não chega. E é aí que entra o seu projeto Oceans 2050, em colaboração com o biólogo marinho Carlos Duarte, que pretende promover a cultura de algas-marinhas no fundo do mar — uma estratégia que contribui para o sequestro de dióxido de carbono, ao aprisioná-lo por baixo da floresta marinha. Ao mesmo tempo, o Oceans 2050 pretende que as comunidades piscatórias possam rentabilizar essa cultura. “Esta economia azul deve criar riqueza nas comunidades que lá estão”, afirma Cousteau. “Vemos o cultivo de algas marinhas como a pedra angular disso, porque pode ser feita em qualquer lugar do mundo. Já está a ser posta em prática em locais como o Ártico ou em Madagáscar.”
Uma ideia algo fora da caixa dentro do meio ambientalista, já que a ativista gosta de apostar na questão do desenvolvimento económico — equaciona até a possibilidade de o próprio dióxido de carbono aprisionado ser vendido pelas comunidades, de forma sustentável. E o seu discurso também contrasta com o de alguns colegas: “Aquilo que vejo é que não há bons e maus, tudo acontece dentro de um espectro que vai desde a [petrolífera] Exxon até àqueles que estão muito avançados”, afirma. “Acho que todo este apontar de dedos e dizer ‘Não trabalho contigo porque fazes parte de determinada indústria’ não é produtivo.” O problema, diz, não está no desenvolvimento económico nem na tecnologia, mas sim na forma como estes são utilizados: “Toda a gente diz ‘O Jeff Bezos é um idiota’… Mas imagine que a Amazon tinha sido criada como uma fundação para o bem comum?”
Começo por uma pergunta que já lhe fizeram muitas vezes, mas que me parece importante para compreender a sua motivação. Como é que a sua infância influenciou o trabalho que faz hoje em dia?
Fui muito influenciada pela minha família e pelo sentido de missão que eles tinham. E também por viajar com eles: fiz a minha primeira expedição quando tinha seis meses, portanto ando a viajar desde que sou bebé e a experienciar estas coisas e a senti-las. Acho que absorvi esta narrativa. Portanto, teve uma grande influência em mim e, sinceramente, nunca me imaginei a fazer outra coisa, esta sou eu. Mas é claro que ao longo da minha vida o assunto teve uma evolução, à medida que as alterações climáticas se agudizam e os oceanos vão tendo cada vez mais perdas.
Ganhou um sentido de urgência maior?
Sim, a urgência é cada vez maior. Mas as ferramentas de que dispomos para lidar com isso também estão a mudar. Já não temos as mesmas ferramentas que o meu avô tinha, temos novas tecnologias: os satélites, a Google, a Inteligência Artificial, os drones e tantas tecnologias que têm um impacto exponencial. Se só tivéssemos as ferramentas do tempo do meu avô, então eu sentiria que estamos a passar por perdas exponenciais com ferramentas graduais e nunca conseguiríamos resolver essa diferença. Mas não é o caso. Ainda não o fizemos, mas temos a capacidade de usar ferramentas exponenciais para perdas exponenciais. E acho que quando o fizermos poderemos começar a inverter esta situação.
Por que acha que ainda não o fizemos? Há uma falta de vontade política?
Há, mas não é só isso. É difícil mudar mentalidades. A mentalidade da conservação é a de “Vamos preservar o que temos”. E isso está a começar a mudar, mas ainda não é uma de “Como é que reconstruímos? Como é que voltamos a gerar aquilo que perdemos? E como é que aplicamos novos sistemas ou modelos de negócio que sejam restaurativos?”. Olhe para a Amazon. Toda a gente diz “A Amazon não presta”: tem um impacto terrível, contribui para a crise ambiental, o Jeff Bezos é um idiota… Mas imagine que a Amazon tinha sido criada como uma fundação para o bem comum. É uma ferramenta incrível! Está feita à medida para só beneficiar uma pessoa, em vez do bem comum. Mas imagine que tinha sido criada para tornar mais fácil às pessoas abrirem pequenos negócios ou desenvolver maior equidade entre elas e as grandes lojas. Podia ter sido algo que contribuísse de facto para a Humanidade. Todas estas grandes tecnológicas que foram desenvolvidas por uma só pessoa como Mark Zuckerberg ou Elon Musk ou Jeff Bezos foram feitas para fazer avançar os seus próprios interesses. Mas não são as tecnologias em si que são o problema; é o facto de ainda não terem sido postas ao serviço do bem comum.
Essa é uma visão algo revolucionária dentro do meio ambiental. O seu projeto Ocean 2050 também o é. Pode explicar em que consiste exatamente?
Quando olhamos para a economia azul e o ponto em que está, ela pode seguir dois caminhos: o de projetos como a exploração mineira em alto mar, que são destrutivos e exploradores e que só beneficiam as grandes indústrias; ou podemos criar uma economia que é regeneadora e restaurativa para o oceano e que beneficia as comunidades locais através de uma transição justa. Para nós, o cultivo de algas marinhas é a única solução natural no oceano que pode ajudar ao sequestro de carbono e, ao mesmo tempo, regenerar os oceanos e apoiar as comunidades locais. Esse é o tipo de economia azul de que precisamos. Portanto, precisamos de definir como será esta economia azul. Não pode ser cada um a fazer a sua própria coisa, temos de ter uma visão do que será esta economia. E ela deve criar riqueza nas comunidades que lá estão e, com o tempo, isso poderá criar ainda mais riqueza. É essa a nossa visão e vemos o cultivo de algas marinhas como a pedra angular disso, porque pode ser feita em qualquer lugar do mundo. Já está a ser posta em prática em locais como o Ártico ou em Madagáscar… É uma atividade inclusiva.
É também uma visão que não ignora os fatores económicos, porque permite que se extraia dióxido de carbono do mar e permite a estas comunidades que o vendam. Diria que para si o problema não é o de usar o mar como alavanca económica, mas sim a forma como se faz esse aproveitamento?
Sim. A mentalidade da conservação é uma mentalidade assente na escassez. É uma ideia de “Temos de proteger o que temos, porque está a ser destruído”. Mas isso tende a levar a uma situação em que as pessoas ficam fechadas em silos e criam ideias de “bons e maus” e recusam trabalhar com determinadas pessoas. E isso não permite criar a ideia de uma visão partilhada. Aquilo que eu vejo é que não há bons e maus, tudo acontece dentro de um espectro que vai desde a [petrolífera] Exxon (que obviamente não contribui muito para a abundância dos nossos oceanos ou a estabilidade do nosso clima) àqueles que estão muito avançados e a fazer coisas incríveis. Mas é um espectro, não é a preto e branco. E precisamos de que, dentro desse espectro, as pessoas se aproximem de uma lógica de reconstrução daquilo que perdemos. E acho que todo este apontar de dedos e dizer “Não trabalho contigo porque fazes parte de determinada indústria” não é produtivo. Está a tornar tudo mais difícil.
A Alexandra é uma comunicadora que quer chamar a atenção para estes temas. Como comunicadora, como é que vê este momento em que vivemos onde as pessoas parecem estar mais conscientes das questões ambientais — basta ver o caso do plástico, em que de repente toda a gente parece andar a partilhar fotografias de tartarugas a morrer. Como é que essa consciência se está a traduzir em ação concreta?
Creio que a consciência nem sempre leva à ação. Esse tem sido um dilema, porque há muita gente que sabe muita coisa, mas isso não leva necessariamente a que alterem os seus comportamentos. Por outro lado, creio que as alterações climáticas já são suficientemente reais para a maior parte das pessoas e isso está a levar a alterações de políticas, não apenas por parte de governos, mas também de empresas. E uma das coisas mais importantes que podemos fazer é responsabilizá-los. Olhe o caso do plástico: as empresas que são as maiores criadores de plástico têm feito um ótimo trabalho a convencer-nos de que a solução é a reciclagem. Mas não é. Temos de acabar com o plástico, encontrar alternativas e deixar de produzi-lo. Mas estas empresas tornaram este problema num problema nosso e dos governos, quando é delas. É o seu problema de design que está a poluir o mundo e são elas que têm de resolver isso. Portanto, temos de as responsabilizar e, se pudermos, deixar de comprar [os produtos delas].
Outra coisa que devemos fazer é arranjar formas divertidas e acessíveis de as pessoas contribuírem para a reconstrução dos oceanos. Nós, na Oceans 2050, estamos a desenvolver um motor de busca, cujos fundos irão todos para isso. Estamos a usar tecnologia para restaurar as barreiras de corais e a envolver as pessoas. Estamos a criar um fundo de investimento para o qual toda a gente pode contribuir, não apenas os super-ricos. Se fores um gamer, um investidor ou uma pessoa que simplesmente usa a internet, podes contribuir. Há formas mais eficazes de contribuir do que simplesmente doar dinheiro para um saco negro de uma ONG ou ir limpar uma praia. Temos de usar as novas ferramentas, divertidas, para que as pessoas vejam os resultados das suas ações. Para que vejam que é algo real, não é apenas um conceito.
As novas gerações parecem ser muito mais interessadas pelas questões ambientais. São elas o seu alvo?
As gerações mais novas são sem dúvida as mais ativas, há aqui menos apatia do que nas gerações mais velhas. Eles também estão assustados, porque estas mudanças estão a acontecer em tempo real. As alterações climáticas daqui a 50 anos vão ser horríveis e eles vão estar cá para ver isso. Além disso, estão muito mais à vontade com a tecnologia e funcionam de uma maneira muito diferente dos nossos pais e avós. Se nos focarmos nessa preocupação deles e conseguirmos arranjar resultados palpáveis, conseguiremos envolvê-los de uma forma que não foi possível até agora.
Essa é uma ação a um nível micro. Mas, olhando para o nível macro: na sua conferência falou no exemplo da Antártica e de como o seu avô contribuiu para a preservação do continente; isso ainda é possível hoje em dia? Se olharmos para o caso do Ártico, há uma disputa por causa da nova rota marítima. No caso de alguns países africanos, temos não apenas empresas, mas até governos, a tentar extrair recursos ou obter influência geopolítica. Isso é muito mais difícil de influenciar, quando há uma China ou uns EUA…
[Interrompe] Ou uma Rússia.
Ou uma Rússia, a tentar marcar posição em determinada região.
Há coisas que são mais fáceis do que outras… Houve uma grande campanha para tentar criar uma zona marítima protegida no Mar de Ross [na Antártica] e foi completamente destruída pela China e pela Rússia, a um nível inter-governamental. Portanto, há coisas que não vamos conseguir alterar. Mas há muitas que podemos. Temos de fazer pressão em todas as frentes, mas há oportunidades que ainda não explorámos. Quando o meu avô começou, ele não tinha as ferramentas de que precisava. Não é como se ele pudesse ir a uma loja e comprar o equipamento de mergulho. Ele queria ir mais ao fundo do mar e ficar debaixo de água mais tempo e fazer filmes… E as pessoas diziam “Isso é debaixo de água, boa sorte”. E ele inventou aquilo de que precisava e foi à mesma. E adaptou todos os meios de comunicação que existiam, usou a rádio, os desenhos animados, os filmes… Tudo. Temos de fazer o mesmo hoje em dia e ainda não estamos aí. Ainda usamos ferramentas velhas e mentalidades velhas.
Tem falado do exemplo da discussão dos stocks de peixe e da importância de os consumidores terem noção da origem do peixe que consomem. Li as suas críticas recentes ao governo francês…
Leu o meu artigo de opinião, foi? [risos]
Sim. Pode explicar por que razão acha que esta desregulação é prejudicial?
Neste caso específico, para mim, é chocante. Como é que Macron, com toda a sua conversa bonita sobre as alterações climáticas e a conservação, tem uma ministra do Mar que está a minar todos os esforços para criar transparência e rastreio nas cadeias de fornecimento de peixe? Se levar a sua avante, não conseguiremos saber quanto peixe está a ser pescado. E o que me parece incrível é que isto nem sequer beneficia as empresas de pesca francesas, só as estrangeiras. Portanto, não faz sentido: não beneficia os franceses, nem os pescadores franceses, nem o ambiente… Portanto, porquê? Ela é de uma família de pescadores, talvez seja uma ideologia de que os pescadores não têm de ser responsabilizados por ninguém — alguns pensam isso, “O oceano é nosso, pescamos aqui há gerações, deixem-nos em paz”. Mas essa não é uma perspetiva moderna nem esclarecida. Não sei se ela é só antiquada ou se há aqui outra coisa, mas isto não defende os melhores interesses de França, sequer.
Acho que qualquer país como Portugal, Espanha, Itália ou França — nestes países da União Europeia, que têm uma política de pesca comum, precisamos de legislação para ter transparência e rastreio de todo o pescado que chega aos nossos portos. Temos de saber de onde vem, quem o pescou, com que redes, que emissões de carbono produziu… Temos de saber tudo. Os chefs têm de saber quando compram bem, os consumidores têm de saber quando vão ao supermercado, temos de estar todos no mesmo plano para descobrirmos quanto peixe ainda temos no oceano e quanto está a ser apanhado. Temos de impor quotas [de pesca] científicas em vez de quotas com motivações políticas. E, se tivermos de criar programas de apoio às comunidades piscatórias, pois que criemos. Olhe no Maine (EUA), os pescadores de lagosta andam a cultivar algas marinhas na época baixa para ter mais rendimento. Isso seria uma oportunidade incrível para países como Portugal.
E nós, enquanto consumidores, podemos fazer o quê? Deixar de comer peixe?
Sim. Ou fazer perguntas. Deixem um bilhete para o chef: “Adorei o peixe. Da próxima vez, pode dizer-me onde foi pescado?” Não tem de ser uma coisa zangada ou negativa, não tem de se insultar as pessoas. Uma forma fácil é deixar uma crítica online: “Fui a este restaurante, têm um peixe incrível. Infelizmente não é de origem sustentável. Espero que isso mude para poder voltar.” Pode ser uma crítica simpática, mas que envie uma mensagem de preocupação pelos oceanos e de querer saber de onde vem o nosso peixe, porque não queremos que ele seja pescado num barco que usa mão-de-obra escrava ou redes ilegais. Passa-se o mesmo com o plástico: ao ir a um restaurante que usa palhinhas de plástico, podemos deixar um comentário online. As proibições de usar plástico só surgiram porque houve visibilidade e um descontentamento geral, as pessoas iam à praia e viam o lixo. Com o peixe, é mais difícil, não o vemos no oceano…
A maior parte das pessoas nunca esteve num barco de pesca.
Exato. Mas nós comemos aquele peixe, portanto, muitos destes assuntos estão relacionados com as nossas cozinhas. É uma questão de ter consciência, da mesma forma que há quem compre vegetais biológicos, porque não quer comer pesticidas. Pensem no peixe que estão a comer. Alguma aquacultura é boa, alguma é má; alguma da pesca de alto mar é boa, outra é má. Não é uma situação a preto e branco. Portanto, façam perguntas. Eu já não como peixe porque sei demasiado, é mais fácil ser vegetariana [risos]. Mas acho que há um bom argumento para investir na reforma da pesca num país que adora os oceanos e o peixe, como Portugal. Não pode ser uma mentalidade exploradora como a do século XIX de “vamos apanhar tudo”, como acho que às vezes ainda é. Temos de tornar isso numa ideia em que nos sentimos como guardiões: adoro o oceano, adoro comer o que o oceano me dá e vou cuidar dele para que possa continuar a comer o que ele me dá. E isso é possível de combinar com uma herança cultural rica relacionada com os oceanos. Mas oceanos que estejam com vida, não oceanos mortos.