“Politizada”, “superficial”,“feita à pressa”, ineficaz em alguns aspetos, enviesada desde o início. Eduardo Miranda, o presidente da Associação de Alojamento Local de Portugal (ALEP) não poupa nas palavras para descrever a nova lei do alojamento local, que entrou em vigor no domingo. É certo que aponta elementos positivos — sobretudo o facto de ter deixado de fora alguns dos aspetos mais radicais que constavam nas propostas iniciais do Bloco de Esquerda, do PCP, do PS, mas também do CDS — mas isso não afasta o receio de que se está a perder uma oportunidade de ouro. Isto porque o país que tiver uma boa lei do alojamento local e souber gerir bem o processo “terá uma vantagem estratégica única“, diz.
Em entrevista ao Observador, o responsável da ALEP — um dos rostos de defesa do alojamento local no país — rejeita que esta atividade seja “a galinha dos ovos de ouro”, e deixa um aviso: quem anda a vender essa ideia está a fazer mais pelo alojamento local do que pensa. “Quanto mais atacam o alojamento local, mais atraem gente. É irracional”. E tem uma posição curiosa sobre o facto de o ministro da Economia (com a tutela do Turismo) ser casado com a presidente executiva de uma associação de lobby da hotelaria: não há qualquer problema. Até pode ser um obstáculo ao setor hoteleiro, por causa de todo o escrutínio que aí vem. De qualquer forma, diz, é irrelevante: o trabalho de casa do setor hoteleiro já foi feito e a nova lei, em alguma medida, já serve os seus interesses.
Como está o mercado do alojamento local, ainda sem sentirmos os efeitos da nova lei?
O alojamento local a nível nacional, fora deste contexto de Lisboa, está a crescer de forma gradual, de forma sustentada, mostrando que é uma opção de diversidade fundamental para o turismo. Diz-se que “é uma moda e quando passar volta tudo aos hotéis”, mas não é isso. É mesmo uma tendência e uma tendência mundial muito importante, de outras formas de alojamento que encaixam com determinado tipo de viagem. Não está a substituir ninguém. Em certas viagens faz mais sentido ficar numa casa, num hostel, num apartamento, dependendo do grupo. Isto está a revelar-se uma tendência importantíssima e uma oportunidade única para os países que souberem gerir esse novo processo, integrá-lo nas leis, na sociedade, na fiscalidade.
O argumento chave é que o turismo hoje quer mais versatilidade na oferta à sua disposição?
Diversidade. O que eles aprenderam é que as pessoas hoje — ao contrário da visão errada de que hoje é tudo low-cost e que o alojamento local está associado ao low-cost — há de tudo. Não, pelo contrário: há de tudo. Como é mais barato e fácil viajar — e isso não é culpa do alojamento local — há mais gente a viajar. Acima de tudo, as pessoas que já viajavam, viajam mais vezes. E por razões distintas: com os amigos, com a mulher, os filhos, levam os avós — que antes não levavam para lado nenhum. Viajar era uma coisa muito elitista e agora está a tornar-se numa coisa mais comum. No momento em que há diversas motivações para viajar, também há diversos tipo de acomodação que se encaixam com aquele perfil de viagem. Se vou reunir a família que vive em vários países, eu quero é que a família fique junta. E aí faz todo o sentido estar numa casa única, num apartamento onde vamos reproduzir aquilo que era a vida em família. Se vou com a mulher numa viagem romântica se calhar quero ter serviços num hotel 5 estrelas. Se vou com um grupo grande de amigos, vou para um resort. Com crianças pequenas vou para um apartamento.
Com um hotel o que varia é mais ou menos luxo, continua a ser o mesmo tipo de oferta…
É sempre baseado numa unidade quarto. Num espaço partilhado com todos os outros. Tem o seu papel, foi fundamental para a expansão do turismo. Vai continuar a ter o seu papel. Não é substituto: eu utilizo hotéis como utilizo alojamento local. Essa lógica de que um é contrário do outro ou que são públicos que não co-existem… às vezes há a ideia de que o alojamento local está a tirar as pessoas das cavernas, de África ou do outback da Austrália, para trazê-las pela primeira vez aqui. Isso é ridículo. Alguns dos alojamentos mais caros do país são de alojamento local. O triângulo dourado no Algarve — aquelas casas de 10 a 15 mil euros por semana — são alojamento local. Em Lisboa há casas de luxo a receber quem quer estar em conforto, em ambiente familiar, em alojamento local.
A ideia que a ALEP quer combater é a de que o alojamento local não é só low cost.
E que não é uma moda passageira. Apesar de haver sempre um efeito manada, em que se diz “isto deve estar a dar”. Mas assim, quanto mais atacam o alojamento local, mais atraem gente para o alojamento local. O que é irracional. Acima de tudo: o AL é algo para ficar. Tem um peso importante: em Lisboa está a bater quase nos 40% das dormidas. Não da oferta. Eu não me importo muito com o indicador oferta, porque posso ter um alojamento local e nunca receber ninguém. É a diferença de um hotel para um alojamento local, onde posso fazer isto só uma ou duas vezes por semana, num período por ano e acabou. O que me interessa é qual é a opção dos viajantes: pela taxa turística sabemos que o alojamento local está já a chegar aos 40%, se não tiver ultrapassado…
Isto principalmente em Lisboa?
No Porto a mesmíssima coisa. E a nível nacional já podemos situar em perto de um terço das dormidas em alojamento local. Isso já é estruturante, já é um pilar do turismo. E o país que souber gerir bem isto terá uma vantagem estratégica única, porque lá fora estão ainda a tentar ver como reagir. E a reagir, aliás, muito emocionalmente, como está a acontecer aqui, recentemente, em Lisboa: a querer logo proibir, suspender, sem ver como se pode aproveitar o potencial do alojamento local e minimizando qualquer efeito negativo.
Lei feita à pressa, superficial e politizada
Os passos que foram dados — as novas regras entraram em vigor no domingo — têm pouco suporte em estudos. Quando a ALEP foi ouvida sobre as novas regras, explicaram-vos o racional por detrás de algumas destas regras?
Acho que no decorrer de todo o processo perdeu-se parte do que era o objetivo: encontrar uma coisa equilibrada e técnica. Porque o processo ganhou uma mediatização e uma instrumentalização política muito grandes. Inicialmente era um processo em que a tutela, o Governo, disse “ok, quero fazer ajustes” inclusive na própria questão da sustentabilidade dos grandes centros e dos bairros históricos. Isso estava nessa conversa. Inicialmente. Porque depois isso foi tudo atropelado, pelas eleições autárquicas e pela proposta parlamentar, que gerou uma reação em cadeia. Tudo isso criou uma perceção pública errada e tornou-se numa discussão eleitoral num momento muito quente. Radicalizou-se o discurso, o que depois dificultou a conversa.
Mas foram ouvidos sobre o assunto?
Fomos ouvidos? Sim, a comissão ouviu não sei quantas dezenas de pessoas. Mas nesse processo típico de audição ouvem-se muitas opiniões, a favor e contra, mas como está tudo radicalizado, as pessoas chegam lá com ideias contrárias. Agora, se formos ver em todas as audições as propostas concretas para resolver os problemas, são muito poucas. Nós fomos dos poucos que apresentámos propostas concretas.
E os decisores incluíram as vossas propostas na nova lei?
Não. No final, foi tudo decidido em duas semanas. Ouviram, ouviram e ouviram, mas aquilo que é importante — transformar as propostas radicais em ideias equilibradas — foi decidido em duas semanas, à pressa, por causa das férias judiciais, para estar fechado a 18 de julho. E por questões de compromissos políticos do segundo semestre, para poder anunciar determinadas medidas. E o que houve? Precipitação. Havia medidas que nós até entendíamos.
Dê-nos um exemplo.
A questão do centro histórico e das zonas em que há uma concentração maior: nós entendemos medidas que permitissem gerir e equilibrar estas zonas. Zonas em que o alojamento local foi fundamental para a reabilitação. Algumas eram zonas mortas, abandonadas, nas quais se não fosse o alojamento local não haveria atratividade e ninguém estaria a falar nelas agora para outros usos, mesmo de habitação. Mas entendemos que, a partir de certo momento, também não queremos uma monofuncionalidade, não queremos que seja só turismo. E não é um problema só do alojamento local, mas sim também da hotelaria. Todos nós temos de entender que a certo momento é preciso abrir espaço para que entre habitação e as políticas de habitação. A questão era: como iria ser feito.
E como é que foi feito?
De uma forma muito politizada, muito superficial, até sem conhecimento técnico básico, básico sobre as reações dos agentes económicos quando são pressionados para um ambiente de incerteza. É o que está a acontecer em Lisboa. Os agentes económicos agem irracionalmente, como é o caso dessa corrida aos registos [no portal do alojamento] que está a acontecer só em Lisboa, é um efeito típico desse erro.
Era previsível o que aconteceu?
Nós alertamos de forma muito clara para a forma como estavam a ser transmitidas algumas dessas medidas — sem nunca pôr em causa a necessidade de criar um equilíbrio em certas zonas. A forma como o alojamento local, por um lado, estava a ser atacado e, por outro, vendido como ‘a galinha dos ovos de ouro’, obviamente, iria criar um resultado contra-producente, um efeito contrário. Uma das medidas que mais criticámos foi a possibilidade de suspensão preventiva — sem grandes explicações, sem grande fundamento — até que o regulamento seja colocado em prática. Até entendemos a questão: vamos evitar uma especulação. Mas essas medidas mais extremas, sem grande fundamentação, ainda para mais se forem mal geridas em termos de comunicação, causam um efeito contrário. Causam uma corrida ao registo. Foi o que aconteceu em Lisboa.
Câmara comunica através de fugas de informação
Nas últimas semanas, o número de registos no portal do alojamento local só para Lisboa aumentou em 1.300. No país inteiro vamos em cerca de 77 mil registos.
Era fácil de perceber [que isso ia acontecer], para quem perceba de economia. Primeiro, saímos na imprensa a vender uma galinha dos ovos de ouro e a dizer que o alojamento local está a comer habitação que nunca existiu nos centros históricos. A habitação aí só caía, mas por alguma razão agora o culpado é o alojamento local. E é uma galinha dos ovos de ouro, o que cria falsas expectativas e atraindo gente de forma quase enganosa. Temos de fazer contas à propaganda e dizer às pessoas: “atenção que isso não dá tanto”. Depois começa-se a exigir a suspensão imediata cega. E depois vem na própria lei essa possibilidade de suspensão cega. Resta saber como a Câmara vai fazer essa suspensão. Lisboa, que foi a primeira, acabou por não conseguir lidar bem com esse processo. Porquê? Porque não passou uma ideia clara. Sempre dissemos que tudo isto teria de ser feito com regras claras e transparentes. É preferível esperar, fazer um bom regulamento e então anunciar em vez de ir fazendo ameaças de suspensão e deixar os rumores tomarem conta do mercado. Foi o que aconteceu.
Rumores?
As próprias zonas: começa-se com anúncios de um bairro específico, e as pessoas até entendem. E o tema gera só algumas questões pontuais, mas depois logo a seguir amplia-se: já não é só Castelo, Alfama e Mouraria, já entra Bairro Alto e Madragoa. Depois quando é anunciado — por fuga de informação, nunca oficialmente — afinal Bairro Alto não é só Bairro Alto, é tudo. É Chiado, é Bica. Alfama não é só Alfama. Isso cria uma desconfiança. E depois surgem os presidentes da Junta de Freguesia a dizer que também querem uma suspensão nesta zona e naquela.
Bairro Alto, Madragoa, Castelo, Alfama, Mouraria. Câmara suspende novos alojamentos locais
A que se deve essa forma de comunicar da Câmara? É para influenciar o mercado sem, sequer, chegar a aplicar qualquer regra?
Essa ameaça resulta é numa corrida irracional e emotiva (aos registos), que não interessa a ninguém. Até nós perdemos o controlo. Veja estes mais de 1.000 registos feitos desde o dia 11 de outubro quando foi mal anunciado, quando houve uma fuga de informação: é impossível achar que alguém rescindiu um contrato em cinco ou seis dias. Isso não aconteceu. Há uma mistura de vários fatores: alguns ilegais nessas zonas aproveitaram a última oportunidade; muitos outros que tinham em vista ou estavam em final de obra, anteciparam o registo. E depois houve toda uma outra escalada irracional de gente a registar-se: muitos residentes. Pessoas que vivem na casa que agora registaram, portanto que em nada afetam a habitação. E nunca faria sentido ter um regulamento a proibir o registo destes residentes.
Ainda assim, foram a correr registar-se.
A forma como a informação foi passada — em que ninguém sabe muito bem quais são as zonas, já que estas vão mudando, em que ninguém sabe quais são as regras, se vai ser proibido ou não. Então, à cautela — como não custa nada — e sem sequer estarem a pensar de imediato em alojamento local, ‘vamos lá registar’. Isto aumenta a pressão e cria um círculo vicioso. Pior: criou-se outra vez uma campanha que já tínhamos ultrapassado, que colocava o alojamento local como o culpado de tudo. Isso é péssimo para o turismo. Vai virar-se contra o turismo e a hotelaria.
Por falar em alojamento local, turismo e hotelaria, o que representa o alojamento local para o turismo em Portugal? Qual é, hoje, o seu impacto?
Um terço de tudo o que é o contributo dos turistas que vêm para cá. Não há cálculos precisos devido à forma como a estatística é feita hoje pelo INE. O INE e a Eurostat, em geral, nunca pensaram que o alojamento local ia tornar-se em algo relevante. Por isso só contabilizam os alojamentos locais com dez camas ou mais. O que quer dizer que 90% do alojamento local não está incluído nas estatísticas. Os dados oficiais do alojamento local podem ser multiplicados 4 ou 5 vezes, facilmente, em dormidas. O INE fala em 14% das dormidas e nós sabemos que vai quase aos 40% e, em algumas zonas, até ultrapassa isso. Há uma importância do AL que ainda não está estatisticamente reconhecida. Depois sabemos que em Lisboa e arredores são 10 mil empregos diretos e indiretos, quase mil milhões de impacto na economia. Estamos a falar de mais de 30 mil famílias que dependem disso. Não é brincadeira.
Mais razões para garantir que o processo é bem gerido.
É absolutamente fundamental que Lisboa retome as rédeas da comunicação, expondo explicitamente quais são as regras e já antecipar um pouco o que será o regulamento. Porque está a passar uma mensagem errada, a de que a suspensão do AL é uma solução. Quando por lei a suspensão é temporária e só até ao momento do regulamento. O regulamento dá hipótese de integrar o AL de forma equilibrada em todas as questões da cidade.
Quem é que deveria estar a liderar o tema do regulamento na CML, no entender da ALEP?
Isto foi passado para o Urbanismo [vereador Manuel Salgado] e essa é uma das questões: isto deveria estar ao mais alto nível na Câmara. O presidente da Câmara, Fernando Medina, sempre mostrou equilíbrio e bom-senso, porque é preciso ver isto como um todo: os interesses da cidade. Ninguém está a pôr em causa a importância da habitação, nem o crescimento. Mas é preciso ver o todo e não tratar isto como uma questão meramente técnica. É preciso integrar isto na estratégia da cidade. É preciso critérios e objetivos claros, senão é a confusão no mercado. Tenho de explicar por que razão estou a fazer isto, quem vai fazer. Não posso dar margem à especulação. Se não fizer este regulamento bem feito vou criar este efeito de pânico generalizado.
Câmaras têm poder arbitrário nas questões da contenção
Este é o cenário atual, com as regras como existem. Como vê o futuro do alojamento local, com estas novas regras, dentro de um ano?
Vamos separar duas regras: uma delas é o poder municipal de restringir o alojamento local. E essa, se for mal aplicada, tem um poder enorme de criar grandes constrangimentos à atividade. E outra coisa são as regras de funcionamento que servem para todo o país e que estão a ser pouco discutidas. Muitas dessas regras vemos como positivas: seguro obrigatório de responsabilidade civil — desde que não seja uma coisa inviável — todos nós achamos que é importante; a necessidade de informar os condomínios da atividade de alojamento local; a obrigatoriedade de ter manuais e dar informação explícita sobre as regras do condomínio aos hóspedes. Tudo isso é preventivo e construtivo e ajuda a criar sustentabilidade. Desde que isso não seja pretexto para criar regras que inviabilizem a atividade, é bem-vindo. Podem até ser tecnicamente mal-feitas — o seguro foi mal feito, mas vai ser resolvido.
E riscos?
O risco que tem é a arbitrariedade que se deixou para as câmaras na questão da contenção. Sem indicadores claros, deixou-se para cada câmara a possibilidade de inventar o que quiser. Claro que a lei diz que tem de ser fundamentado, mas nós já vimos o que uma fundamentação… ‘eu crio zonas e faço o que quiser delas’. Depois ninguém entende. Por isso é que é fundamental Lisboa dar o exemplo. O regulamento [de cada câmara] dá uma margem que nenhum país conseguiu. Nós somos o único país que tem uma lei nacional [sobre o alojamento local] e isso permite criar uma regra homogénea para todo o país. Depois a sua adaptação às zonas de pressão é feita por cada município. Isso permite a cada município não seguir só a linha da suspensão cega.
Diz que há uma forma cega de lidar com as coisas. Mas há fiscalização efetiva aos alojamentos locais? Ou há regras rígidas impostas à cabeça porque as autoridades receiam dificuldades em aplicá-las?
Eu acho que nem é tanto por aí. Na nova lei, o que eu vejo é que muitas dessas regras que parecem mais emblemáticas são medidas de mensagens políticas, para parecerem duras. Mas na verdade muitas delas não são aplicáveis, não têm sentido prático nenhum. Algumas delas só vão criar confusão. É o tal erro de que quando eu transformo isso numa coisa mediática, política. E depois é decidida onde? Isto foi decidido numa comissão de ordenamento do território. Ou seja, [à partida] o alojamento local já era apenas um problema de habitação. O turismo não estava envolvido… havia um único membro, do PSD, que era do grupo de trabalho do turismo. Portanto, à partida foi logo completamente visto de uma forma única e parcial.
E de que forma é que essa visão influenciou as regras adotadas?
Exemplos concretos? A situação do limite dos sete [alojamentos locais por cada proprietário]. Se for olhar o processo, vai entender perfeitamente. A primeira proposta disso era uma proposta meramente de acordo político, para receber ali algumas das mensagens políticas mais à esquerda. Então, o PS coloca uma proibição de limite de sete no país inteiro. No país inteiro. Isto é discriminatório. Porquê sete? Porquê, se não há pressão nenhuma, se não há motivo nenhum para impedir, porquê sete? Quer dizer que um associado meu, num caso prático, que quer recuperar vinte aldeias no interior, não pode. Porquê? Porque é um capitalista? Porque os sinais de riqueza são proibidos no país? Ele está a reconstruir casas em aldeias… qual é racionalidade?
Mas a regra não ficou assim.
Percebendo que isto era uma mensagem política, feita num acordo, nitidamente um acordo para passar uma mensagem de que estavam a conter os capitalistas e os grandes, o que é que fizeram? ‘Metem isso dentro da zona de contenção’. Eu estou a dizer isto porque é público, se for ver as propostas, estão lá. E isto de um dia para o outro. Estamos a falar de negociações que acontecem entre o dia 2 ou 3 de julho e o dia 18 de julho. E quase todas decididas no dia 17, na véspera. É impossível coordenar bem. E meteram isto na zona de contenção. A proposta era uma mensagem política, mas como não fazia muito sentido meteram na zona de contenção. Só que neste momento isto é uma medida inócua, porque se suspender para todos, tanto faz se eu tenho um ou se tenho sete. Não faz sentido e é difícil de explicar, assim como outras medidas.
Quais?
A placa identificativa obrigatória. É um problema complicado, até de segurança. Colocar ali a placa é o mesmo que dizer ‘venham cá, porque aqui há atividades interessantes para assaltos e tudo mais’. Até de privacidade, para quem faz isso no Algarve e noutras zonas duas ou três semanas por mês. E depois, as únicas em que não é preciso pôr placas identificativas são as moradias. Não é preciso. Então, mas porquê? Hostels. Os hostels precisam de ter uma placa identificativa, mas não pode ser na porta do apartamento, tem de ser na porta exterior do prédio. Isto foi um potpourrie de medidas, de uma negociação de mensagens políticas.
Lei do Alojamento Local em Portugal trata todos por igual, do pequeno ao grande
Mas no entender da ALEP também há aspetos positivos nas regras, certo?
Primeiro, para não estar só a criticar, já mencionei alguns pontos que são positivos: seguros, condomínios, a informação aos hóspedes, etc. E talvez o mais positivo é que se conseguiu mostrar um discurso, a certa altura, mais equilibrado, que é um grande trunfo a nível nacional. E evitaram-se as medidas completamente radicais que destruíam o alojamento local. E nós sabemos a origem dessas medidas todas: a questão de só se poder fazer alojamento local na residência própria permanente, que nós já vimos o quão irreal é este tipo de situação. Felizmente, afastaram-se disso. São coisas que estão a ser usadas numa estratégia de contenção do alojamento local internacional e que aqui não faziam sentido. Felizmente, aqui não passaram essas medidas porque somos um dos únicos países — para já, na Europa, o único que eu conheço — que trata todos, desde o pequenino, ao médio, ao grande, como profissionais, em termos de obrigações e fiscalidade.
Mas isso é bom.
Aquilo que eu considero, para os nossos associados, é: isto é desproporcional para os mais pequenos, é verdade. Mas nós estamos aqui para ajudar. Eu prefiro ter uma carga adicional de trabalhos desde que seja viável, desde que não signifique matar a atividade, mas que ninguém possa dizer que nós não estamos a trabalhar dentro da lei, a contribuir em termos fiscais. É o único país em que se pode dizer que se passou de 100 milhões para 170 milhões na retribuição direta e indireta do alojamento local. Isto é inédito a nível internacional. Passamos de 14 mil para 70 e tal mil registos, muitos desses era atividade que existia em paralelo, ilegais, e que hoje estão na economia formal. Ou seja, é um esforço enorme. Se existem ainda alguns? Ainda existem, como em qualquer atividade, mas cada vez menos. Nós hoje somos um exemplo de como é que se consegue integrar e legalizar uma atividade.
E a hotelaria tradicional? O novo ministro da Economia é casado a presidente executiva da Associação da Hotelaria Portuguesa, que faz lobbi pelo setor. Tem receio de algum favorecimento aos hotéis?
Começo pela questão do ministro. Não vejo isso como um problema, mal de nós se tivéssemos um ministro a favorecer a mulher. Mais, eu diria que é quase como um obstáculo, porque dificulta, vai ter um escrutínio muito maior e uma monotorização muito maior. Porquê? Porque todo o lobby, no sentido da influência — não estamos a falar aqui de nenhuma ilegalidade — todo o lobby já foi feito antes, já foi feito a todos os níveis. Portanto, o trabalho de casa [da hotelaria] já foi feito e muito bem feito, em termos de lobby para contrariar o alojamento local. Isso não está em causa e eu nunca colocaria essa relação pessoal… acho que até vai criar obstáculos. Agora, a nossa questão principal é que esse trabalho já foi feito e a visão hoteleira já está impregnada nos mais diversos setores.
Em que consistiu essa visão hoteleira para o alojamento local em Portugal?
Esta não é uma questão nacional, é uma questão internacional. Aliás, podemos começar por aquilo a que chamaram o Plano da Hotelaria para Combater o Airbnb. Isso é público, não é uma teoria da conspiração, saiu no New York Times, no Wikileaks. A associação americana de hotelaria dizia qual era a estratégia, que depois passou para a Europa, onde é igualzinha e tem os mesmos princípios. É isto que está impregnado nos mais diversos setores. Qual era a estratégia essencial, a primeira prioridade para acabar com o alojamento local? Mudança de utilização. Mudar o uso de ‘habitacional’ para ‘comércio’, mudar o uso para ‘turístico’. Esta é a bandeira número um, porque isto acaba com a atividade do alojamento local. Nós avisamos sobre isto, na altura, quando havia propostas nesse sentido.
Ou seja, influenciar os decisores para que as regras obriguem a equiparar uma casa que tem alojamento local a um edifício criado especificamente para turismo.
Como tem atividade económica, já não é habitação, é uma atividade turística. Então é preciso obter uma licença turística.
Essa pretensão não passou.
Não passou a nível nacional. Mas a semana passada — em Lisboa começa a ouvir-se — saiu na semana passada um artigo, outra vez, a dizer que fontes oficiais da CML estavam a ponderar a mudança do uso no urbanismo, estavam a pensar mudar o uso para turístico no alojamento local. Isso é matar o alojamento local. Isso é o que nós chamamos transformar o alojamento local num alojamento local com perfil hoteleiro, que é só para prédios inteiros e grandes. Obviamente, eu espero que isso sejam apenas rumores e boatos porque o próprio presidente da CML, com muito bom senso, disse ‘não quero ir por esse caminho, porque além de matar um terço da oferta turística, eu ainda estou a roubar a habitação’.
Qual é o principal problema prático dessa obrigatoriedade, caso venha a acontecer?
É que exige autorização sem oposição de todo o condomínio. É quase impossível de conseguir. E mesmo que se consiga, depois mais tarde o apartamento não volta à habitação, porque o proprietário vai ter o mesmo problema da unanimidade. Isso é um tiro no pé gigantesco que só interessa aos… atenção, quando eu falo da hotelaria, eu estou a falar institucionalmente, das associações que se defendem, um grupo muito específico de uma hotelaria mais tradicional. Há grandes hoteleiros com visões bastantes pragmáticas e visões bastante avançadas. E há grandes hoteleiros que conhecem bem o alojamento local, sabem o que vale, sabem que não é concorrência. Portanto, é uma coisa muito mais corporativa e institucional, de um determinado grupo que se sente mais ameaçado. Mesmo associações, como a do Algarve, não fala nisso.
Quais eram as outras estratégias propostas pela hotelaria?
A outra estratégia era o limite das noites. E uma outra é colocar os condomínios contra o alojamento local, obrigando à autorização do condomínio. Agora veja como é engraçado: se olhar para a proposta da Associação de Hotelaria de Portugal falava justamente disto. Engraçado porque a estratégia é mundial, não é nacional. É ‘mudança de uso’, ‘limite de noites’ — 60, 90, tanto faz — e ‘contar com os condóminos’. Foi esta visão — um trabalho muito bem feito — que conseguiu impregnar-se em todos os setores. Esse dossiê americano identificava muito bem a questão quando lá estava escrito ‘aproximem-se de todas as associações e partidos de esquerda que estão a defender a habitação’. E venderam perfeitamente a ideia. Veja a proposta do Bloco de Esquerda e algumas do PCP e do PS, também na questão dos condomínios, é interessantíssimo ver que encaixam exatamente com as propostas de interesse da hotelaria. Como é que se conseguiu conciliar aqui pólos que pareciam tão opostos? Os partidos de esquerda, o Bloco de Esquerda e o PCP, nas suas propostas, a defenderem, sabendo ou não, exatamente os pontos que estavam na proposta da AHP.