Um dia será possível elaborar um mapa de todas as causas do Alzheimer. Esta é, pelo menos, a convicção do cientista espanhol Juan Fortea, do Instituto de Investigação de Sant Pau, em Barcelona. Para já isso ainda não é possível, mas a equipa que lidera quer dar um passo nesse sentido, ao propor que um fator que até agora era considerado um risco elevado para o Alzheimer passe a ser visto como uma causa inequívoca da doença: a presença de dois genes APOE4, herdados de cada um dos pais.
Esta alteração não é um mero pormenor, clarifica Juan Fortea em declarações ao Observador. É que as causas influenciam e muito o tipo de tratamentos que são disponibilizados aos doentes. Isso é particularmente importante numa área como a do Alzheimer, que no ano passado viu ser aprovado o primeiro fármaco eficaz para retardar a evolução da doença e que, nota o investigador, tem riscos associados que afetam particularmente pessoas com duas cópias de APOE4.
O investigador refere que passar a olhar para a presença destes dois genes com uma causa da doença vai permitir definir uma população de pacientes que pode ser estudada de modo isolada e proposta para testes clínicos mais adequados às suas características particulares. Isso podem ser boas notícias para quem tem dois APOE4 — que se estima que representem cerca de 15% a 20% dos pacientes com Alzheimer. “Provavelmente já ouviram muitas vezes que não sabemos a causa do Alzheimer exceto numa pequena minoria de casos [entre 1% a 2%]. Se seguirem os nossos resultados, o que estamos a dizer é que sabemos a causa de Alzheimer nessa população de 15% a 20%“, explica.
De fator de risco a causa direta de Alzheimer
A reconceptualização da doença proposta pela equipa de Juan Fortea, avançada num estudo publicado na revista Nature, gira à volta do gene apolipotreína E (APOE). Conhecido pelos cientistas há mais de 30 anos, é há muito associado à doença de Alzheimer. Mas se algumas variantes deste gene são conhecidas por um efeito neutral ou que confere uma certa proteção face à doença (APOE3 e APOE2), há uma que é considerada como o principal fator de risco genético para o Alzheimer. Chama-se APOE4 e faz com que pessoas que possuam uma cópia tenham uma maior probabilidade de ter a doença. Com duas cópias, herdadas de cada um dos pais, o risco é ainda maior. Pessoas com duas cópias, conhecidas como homozigotos APOE4, representam 2% a 3% da população mundial, mas estima-se que são 15% a 20% das pessoas com Alzheimer.
O estudo liderado por Fortea vem agora dizer que “praticamente todos os indivíduos com este gene duplicado desenvolvem Alzheimer do ponto de vista biológico”. Isto significa que, mesmo nos casos em que não há sintomas, a doença está lá. “Desde 2018 que se define a doença do ponto de vista biológico, ou seja, se alguém tem lesões no cérebro ou biomarcadores da doença, tem a doença. Foi exatamente isso que nós provamos, que se alguém tiver dois APOE4, pelos 65 anos tem a doença da forma como ela é definida biologicamente“, explica. O aparecimento de sintomas pode ser muito posterior, já que “leva até 20 anos desde que se desenvolve a patologia até que comecem a aparecer.”
Para chegar a esta conclusão, os autores do estudo analisaram os cérebros de 3297 pessoas, incluindo 273 homozigotos para o APOE4, e dados clínicos de mais de dez mil indivíduos, dos quais 519 homozigotos para o APOE4, provenientes de cinco conjuntos de dados de três países (da Europa e dos Estados Unidos) de pessoas com biomarcadores da doença de Alzheimer.
Descobriram que, pelos 55 anos, praticamente todas as pessoas com dois genes APOE4 tinham níveis mais elevados de marcadores biológicos associados à doença do que da variante APOE3. Aos 65, mais de 95% das apresentava níveis anormais de beta-amilóide, que, ao acumular-se no cérebro, começa a destruir as sinapses, originando o desenvolvimento de Alzheimer.
O estudo conclui ainda que os indivíduos homozigóticos para este gene (com duas cópias) desenvolvem sintomas da doença mais cedo do que aqueles com outras variantes do apolipotreína E. Tudo isto leva os investigadores a defender que o simples facto de se possuir duas cópias do APOE4 pode representar uma nova forma genética da doença de Alzheimer. “Isto é importante porque estes representam entre 2 e 3% da população mundial”, nota Juan Fortea.
Um jogo de forças genético
Os autores do estudo reconhecem que, apesar de praticamente todos os indivíduos com dois genes APOE4 analisados terem desenvolvido Alzheimer, há algumas exceções que não podem ser ignoradas e para as quais identificaram uma de duas explicações. Por um lado, foram analisados dados de pessoas que morreram antes de os sintomas se começarem a manifestar. Por outro lado, e esta é uma hipótese que não é novidade, é possível que uma pessoa tenha mutações genéticas noutros genes que tenham um efeito protetor contra a doença. Uma espécie de jogo de forças genético que influencia o resultado.
Em declarações ao Observador, Victor Montal, outro cientista envolvido no estudo, explica que basta pensar no modo com as diferentes mutações do APOE interagem. A esse propósito lembra o caso de um indivíduo que tinha um gene APOE4, mas também uma mutação no APOE3 — os cientistas acreditam que tem um efeito neutro no risco de Alzheimer. “Ele viveu muito mais tempo do que os irmãos, que não possuíam esse gene. Há provavelmente um fator muito competitivo entre estas mutações genéticas“, explica.
Que genes influenciam o risco e diagnóstico de Alzheimer?
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Em 2010, eram conhecidas dez áreas genéticas associadas ao Alzheimer. Hoje são conhecidas pelo menos 80, segundo dados do National Institute of Aging. Compreender os genes que têm um papel na doença e qual pode ajudar a identificar novos métodos para prevenir, atrasar ou tratar os seus sintomas.
Sabe-se atualmente que as mutações em três genes – o APP, o PSEN1 e o PSEN2 – estão relacionadas com o desenvolvimento da doença de Alzheimer auto-sómica dominante (basta uma cópia do gene mutado) de início precoce. Esta é claramente considerada genética e pode aparecer a partir dos 40 anos, segundo nota o Instituto de Investigação de Sant Pau.
Há, de resto, outros genes que têm sido associadas a um risco acrescido de desenvolver a forma esporádica (de início tardio) mais comum da doença. Entre eles o gene APOE, que tem variantes com diferente impacto na doença.
- APOE2: os cientistas acreditam que pode conferir uma certa proteção contra o Alzheimer. Se uma pessoa o tiver, desenvolve, geralmente, a doença mais tarde na vida.
- APOE3: é o mais comum. Acredita-se que tem um efeito neutro – não aumenta nem diminui o risco da doença.
- APOE4: aumenta o risco de Alzheimer e está associado a uma idade mais precoce de início da doença em certas populações. Entre 15% a 20% das pessoas têm um destes alelos e entre 2% a 3% têm duas cópias.
A investigação tem as suas limitações e está agora a ser aprofundada, reconhecem os autores. Uma das críticas que lhe tem sido apontada é que analisa uma população pouco diversa, já que os casos são na maioria de caucasianos. Isso aconteceu visto que a equipa recorreu a dados disponibilizados por vários parceiros com pouca diversidade.
Os autores consideram, por isso, que é urgente um estudo mais alargado que olhe também para os riscos associados a diferentes etnias e regiões. “Está demonstrado que as pessoas da Ásia têm um risco mais elevado relacionado com a APOE, mas também que os afro-americanos têm uma predisposição genética diferente para ter a doença se tiverem estas mutações”, exemplifica.
Na sequência da publicação do estudo a equipa também tem recebido críticas da parte de associações de familiares de pessoas com Alzheimer. Alertam que há quem pense ser geneticamente testado para ver que variante do gene possui. Isto é, no entanto, algo que os autores não recomendam, já que ainda não existe tratamento específico para esta população e “não vão ter qualquer benefício em saber que são portadores do APOE4.”
A ideia dos autores nunca foi essa e para já este é, na prática, um desenvolvimento mais útil para a comunidade científica. “Se pensarmos num corredor que depois da atividade física fica com dores num tornozelo, o tratamento a aplicar será por gelo, mas isso é numa fase já avançada dos sintomas. O que nós dizemos é que a solução é ser muito mais cuidadoso com os ténis que se utiliza, com a forma como se corre antes de se magoar”, acrescenta. Daí que conhecer a causa da doença seja tão significativo, para adaptar e moldar o tipo de testes clínicos e encontrar tratamentos adequados.
Um tratamento eficaz e à medida
Os desenvolvimentos dos últimos anos nos tratamentos e medicamentos para tratar o Alzheimer são para Juan Fortea um “sinal de esperança” no combate à doença. No ano passado, por exemplo, o regulador do medicamento dos EUA (Food and Drug Administration, FDA na sigla em inglês) aprovou a utilização do Leqembi, o primeiro fármaco que provou ser eficaz a retardar a evolução da doença. Para já ainda não foi aprovado na Europa.
O medicamento foi desenvolvido pelas empresas Eisai e Biogen e remove a beta-amilóide do cérebro, diminuindo em 27% a taxa de declínio cognitivo em doentes com Alzheimer precoce. Tem, no entanto, alguns riscos, que afetam particularmente pessoas com duas cópias de APOE4, explica o investigador espanhol. Essas apresentaram taxas muito mais elevadas de hemorragia cerebral e inchaço associados ao tratamento.
É nesta área que Juan Fortea acredita que a proposta da equipa de investigação terá um impacto mais direto. “O que estamos a dizer é que está subpopulação deve ser estuda em separado, porque teremos muito mais hipóteses de os testes clínicos terem sucesso”, defende. Isso é algo que já se faz, por exemplo, na área da oncologia. “Quando alguém tem cancro o cirurgião vai tirar o tumor e analisá-lo, ver o genética da pessoa e adaptar o tratamento ao cancro específico”, refere.
Tendo em conta os resultados, fazer uma maior aposta nas terapias com genes parece aos autores parte da solução. Alguns investigadores estão já a explorar várias destas potencialidades, nomeadamente a hipótese de converter o APOE4 na variante APOE2, que parece proteger em certa medida contra o Alzheimer. Também há outra abordagem que passa por injetar o essa variante no cérebro de pacientes para estimular a produção de mais APOE2. Para Victor Montal o caminho da terapia genética é, sem dúvida, um passo lógico, ainda que não seja fácil: “Com o cérebro, se algo corre mal, corre tremendamente mal.”