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Amaro Freitas e um piano, entre a História e o futuro: “Quis criar uma música brasileira que revela o que somos agora"

O pianista capta o sons e desconstrói as memórias da sua cidade. Frevo de um lado, maracatu do outro, uma matemática complicada que resulta no melhor jazz brasileiro. Atua em Espinho e em Loulé.

Está tudo parado. Os vendedores ambulantes apertam-se entre os carros, as janelas servem de ponto-de-venda, entra e sai coxinha, bebe-se caldo de cana, cercados pelo subúrbio de Recife, construções ao acaso, mata e lamaçais, um trânsito infernal com destino que se não fosse verdade era perverso: Encruzilhada. “A música está atrelada às vivências daquele período e eu vivia todo esse engarrafamento, o ônibus lotado”, descreve o pianista Amaro Freitas, que a caminho do bairro da Encruzilhada, com as antenas no alto, como os caranguejos do mangue, captava o frenesim de bossas e buzinas, baiões e maracatus, o ritmo alegre do frevo, num grande carnaval que só existe nesta cidade. “Essa agonia, esse calor, soava-me como frevo”, continua, a guiar-nos pela estrada que embaralha trânsito, canção, e a identidade do povo. “Quis criar uma música brasileira que revela o que somos agora”.

“Encruzilhada” é uma canção do primeiro álbum de Amaro Freitas, dos tempos da faculdade, quando se manifestou uma epifania: afinal a composição de música popular brasileira tem tanto de hoje — do trânsito e deste autocarro — como de ontem — do choro de Pixinguinha ao baião de Luiz Gonzaga, da Bossa Nova de Johnny Alf aos escravos refugiados nos quilombos, em batucada pela noite fora. A epifania é registada em três álbuns que transcendem o nicho do jazz brasileiro: Sangue Negro, Rasif, e Sankofa. “São três álbuns que falam muito de uma pesquisa, de uma dedicação. Se queremos chegar num lugar interessante, não tem como ser rápido, não acontece em um ano”. E aqui, no outro lado do oceano, aguardámos pacientemente três anos desde a última visita de Amaro Freitas, que regressa em todo esplendor, com um piano a baralhar as contas ao passado e futuro da ginga brasileira. Os concertos estão marcados no Auditório de Espinho, dia 29 Abril, e no Cine-Teatro Louletano, em Loulé, dia 30 de Abril.

[o tema que dá título ao álbum “Sankofa”:]

O mais recente álbum de Amaro Freitas é Sankofa, editado no ano passado, com o título a remeter a um símbolo ideográfico dos povos Acã, da África Ocidental, um pássaro com um ovo no bico e a cabeça virada ao contrário. Ou seja, trocado por seres não místicos, Sanfoka é uma simbologia que se adequa à mundivisão do pianista, é necessário olhar para trás — a cabeça do pássaro invertida — para caminhar em frente — o ovo. “Comecei a ter mais experiências de conhecimento sobre a minha ancestralidade. O estudo sobre a ancestralidade é muito defeituoso no Brasil, existe a ideia que os povos originários de África eram mais primitivos, que as tecnologias e modelo de vida eram ultrapassados, e isso é muito ruim para a construção social de um povo.” Um exemplo prático é uma excursão de Amaro ao sertão, a zona campestre de Pernambuco, onde acompanha o Mestre Assis Calixto e o coco de Trupé — outro ritmo e dança característico da região. “Conheci a tradição das pessoas que quando queriam assentar a terra das suas casas de barro, chamavam os vizinhos para dançar em cima dessa terra, e assentavam dançando o coco”. O pianista capta os sons, e desconstrói as memórias, uma conta rítmica de somas e subtrações, com frevo de um lado, coco do outro, e afinal é um baião. Sankofa é a expressão absoluta do pianista percussivo, a fincar os dados ao longo do teclado, como um ágil batuqueiro.

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[ouça o álbum “Sankofa” na íntegra através do Spotify:]

Amaro Freitas não está sozinho em Sankofa: o contrabaixista Jean Elton e o baterista Hugo Medeiros são parte das equações complicadas por detrás destas canções, em estúdio ou em palco. “Eu conheci o Jean Elton num bar de jazz, o Mingus, em Recife, numa fase da minha vida que comecei a tocar piano-bar. Quando entro nesse circuito de jazz de Recife, começo a desenvolver a minha linguagem. Foi um período muito importante de laboratório”. As experiências, de quinta a sábado, misturam as melodias da região com os heróis do jazz — Oscar Peterson, Miles Davis, Cecil Taylor, ou Thelonious Monk — e neste tubo de ensaio emerge um Amaro Freitas renovado, desamarrado da desigualdade social, do negro suburbano nas margens da sociedade. “O papel do artista é criar algum tipo de rutura na estrutura. A estrutura está querendo dizer que tenho de ser um pedreiro, tenho que ficar no meu lugar. O artista traz um ponto de alegria, mas também traz ruído, rasga o tecido dos padrões para dizer que existem outras possibilidades”.

“Estou muito interessado em levantar essa auto-estima. Primeiro, morar no nordeste já é uma zona de desconforto, distante de Rio de Janeiro e São Paulo. E pouquíssimas pessoas conseguem ter uma carreira internacional a morar no Brasil. É muito importante tocar em Portugal e Nova Iorque, mas também voltar para Recife, e ver um músico daqui fã do meu trabalho”

O músico cresceu em Nova Descoberta, subúrbio de Recife, um retrato heterogéneo brasileiro, de população essencialmente negra que construiu a pulso o seu próprio bairro, casa a casa. “Venho de uma realidade cristã evangélica, uma coisa muito forte nas periferias do Brasil. Eu estava numa ponta da desigualdade do Brasil, da galera pobre, preta e periférica”, contextualiza. “Toda a minha primeira formação musical foi na igreja, que me trouxe a sonoridade do lirismo, os cantos europeus”. Em casa reverberam os hinos evangélicos, mas as paredes têm ouvidos, o vizinho de baixo toca brega, o de lado reggae, e o de cima candomblé. “A periferia é um atravessamento de vários sons”. Aos 15 anos, a salvação: Amaro Freitas recebe um DVD de Chick Corea, o concerto do álbum Alive, em Nova Iorque. “Até então só tinha contacto com a música de igreja, quando ouvi aquilo, que sensação de liberdade, várias modulações, improvisos, texturas, um universo colorido de possibilidades sonoras.”

O estudo de piano no Conservatório Pernambucano de Música fica-se pelos meros seis meses — “o meu pai não tinha condição de pagar mais tempo” — em compensação, abdica da brincadeira de criança para uma prática diária obsessiva, no teclado manhoso que tinha em casa, e sobretudo, em bares na cavaqueira com outros pianistas. “Existia um curso de bacharelado de piano, na Universidade Federal, mas não me identificava com esse curso, porque a grade curricular era toda voltada para o estudo do piano erudito europeu”, justifica. “Eu estava interessado em desenvolver algo que representasse a minha região. Eu queria trazer a minha região para o meu piano”. A solução era a auto-suficiência, um curso de Produção Fonográfica no Centro Universitário AESO Barros Melo, o passo determinante para gravar aquela música de laboratório em estúdio. Entra em cena o baterista Hugo Medeiros, que fecha a formação do Amaro Freitas Trio. “O Hugo trouxe uma música universal, um maior estudo da polirritmia, isorritmia, do microtonalismo”. As canções crescem em complexidade e Amaro Freitas estreia-se num álbum de vitalidade melódica, Sangue Negro, assinado por um músico recém-formado em produção, com apenas 25 anos, e uma mão-firme de catedrático.

Hugo Medeiros (percussão), Amaro Freitas e Jean Elton (contrabiaxo): o trio que corpo a "Sankofa", o álbum imaginado e criado pelo pianista do Recife

Em 2018, o pianista assina pela Far Out Recordings, editora inglesa especializada na exportação de música brasileira, dos antigos aos novos, de Azymuth a Vasconcelos Sentimento. A Far Out Recordings assina Amaro Freitas no momento certo: o nervo que estava inicialmente submerso em Sangue Negro, emerge triunfantemente no segundo álbum, Rasif, agora sim, um compositor da sua terra, um Naná Vasconcelos ao piano, de uma inventividade rítmica vertiginosa. “Quando começo a querer compor frevos ou maracatus, as músicas saem já com estruturas jazzísticas”. É o resultado de dois anos e meio de auto-descoberta, de tardes sem fim nos corredores do Paço do Frevo, o museu vivo de Recife dedicado ao género; encontros com mestres como Maestro Spok, Marquinhos Diniz ou Edson Rodrigues; o maracatu de propriedades atómicas; ou as jornadas com o Trupé de Arcoverde, o grupo que dança com sandálias de madeira e recria o ritmo do coco. Era inevitável: a malta que decide coisas no jazz, ali entre Nova Iorque e Montreux, rende-se em vénia ao novo prodígio do jazz brasileiro.

Amaro Freiras não é a velha Bossa, é qualquer coisa de novo. Mas se quiserem, ele é Bossa Nova — “Aurora” — ele é samba — “Samba de César” — assim como é o resto do Brasil, já não estamos nos tempos em que um músico de jazz brasileiro tinha que ser um intérprete exclusivo de Bossa Nova para singrar, idealmente em Nova Iorque, ou mínimo no Rio de Janeiro. “Não é fácil, mas acreditamos muito”, responde, a defender a importância de permanecer em Recife enquanto corre Brasil e meio mundo em digressão. “Estou muito interessado em levantar essa auto-estima. Primeiro, morar no nordeste já é uma zona de desconforto, distante de Rio de Janeiro e São Paulo. E pouquíssimas pessoas conseguem ter uma carreira internacional a morar no Brasil. É muito importante tocar em Portugal e Nova Iorque, mas também voltar para Recife, e ver um músico daqui fã do meu trabalho”. Além de Amaro Freitas, eleva-se um burburinho na cidade de Recife, nascem projetos jazz por todos os cantos: a excentricidade de Henrique Albino; as melodias introspetivas de Mongiovi Trio; as novas editoras como a Boa Vista Jazz Records; o Recife Jazz Festival; e claro, o centro do universo, o carnaval de Recife.

“Esta música é sobre autoconhecimento, olhar para mim, para esse homem, esse cabelo, o que está acontecendo, quem sou eu? Eu percebo que vieram várias pessoas antes de mim, para poder estar aqui, e sou uma continuidade disto tudo. Somos o milagre da vida que vieram antes de nós”

Os concertos em Espinho e Loulé apresentam Sankofa ao público português, o roteiro de memórias e símbolos que é um mapa da ancestralidade de Amaro Freitas, desde as canções “Batucada” a “Vila Bela”, esta última, em homenagem a Tereza de Benguela, que liderou a resistência de escravos em Mato Grosso. “A Tereza era uma rainha negra, e quando lutava com os bandeirantes, tirava-lhes as armas e transformava em panela. É muito simbólico transformar aquilo que mata no que alimenta. Isto representa o tempo atual, um governo que quer que tenhamos uma arma na mão, enquanto há uma miséria absurda no Brasil, com o aumento de pessoas pedindo esmola na rua”. Outra memória é de “Baquaqua”, o escravo Mahommah Gardo Baquaqua que foge do Brasil para Nova Iorque, alfabetiza-se, e escreve a sua autobiografia. Mas Sankofa não é um livro de história maçudo, a canção que dá nome ao álbum é levezinha, “Cazumba” é um mergulho imersivo à Hermeto Pascoal, enquanto “Ayeye” é de agora, ouça-se o contrabaixo portentoso e o piano com pulsação de beatmaker.

Sankofa termina com “Nascimento”, um agradecimento à figura maior da MPB, Milton Nascimento, que colaborou com Amaro Freitas em “Não Existe Amor Em SP”, uma versão de Criolo. “A experiência de viver esse ancestral vivo que é o Milton Nascimento, eu queria dar o meu melhor a essa força da natureza”. O pianista está de braços abertos à canção brasileira, acompanhou Lenine e a cantora pop Manu Gavassi com Tim Bernardes, está comprometido com um jazz universal neste mundo desagregado, de extremos intocáveis, Bolsonaro de um lado, e Lula do outro. A proposta de Amaro Freitas é prosseguir a descoberta do ser brasileiro, alguma concórdia entre esta gente abaixo do Equador, a começar pela ferramenta que todos têm à mão: um espelho. “Esta música é sobre autoconhecimento, olhar para mim, para esse homem, esse cabelo, o que está acontecendo, quem sou eu? Eu percebo que vieram várias pessoas antes de mim, para poder estar aqui, e sou uma continuidade disto tudo. Somos o milagre da vida que vieram antes de nós”.

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