Naquele dia, a sala de audições do Parlamento encheu-se de risos e comentários baixinhos, trocados entre os deputados, enquanto assistiam a um questionário pouco habitual. Não é costume, mas o deputado socialista Carlos Pereira, que estava para ser nomeado para a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), ouviu naquela audição — estávamos a 17 de outubro de 2018 — todo o tipo de questões técnicas. “Sabe qual é a diferença entre energia e potência?”. “E entre megawatt elétrico e megawat térmico?”. O PSD atirava as perguntas e o resto dos deputados ria-se. Ao lado, um colega do PS, Luís Testa, queixava-se: “Nunca foi perguntado a alguém da Anacom a diferença entre byte e terabyte”.
O episódio ficou bem marcado no currículo de Carlos Pereira: a oposição ao seu nome, com os outros partidos a queixarem-se de uma nomeação que diziam resultar do facto de ter cartão de militante do PS, foi tão vincada que resultou em adiamentos da votação de um parecer parlamentar, numa audição ao próprio ministro da Economia para que justificasse a escolha, e finalmente numa votação em que o PS ficou isolado (e em minoria) a defender Carlos Pereira, até contra os parceiros da geringonça. Apesar de a CRESAP ter aprovado o nome e de o parecer não ser vinculativo, perante o chumbo o deputado decidiria retirar-se da corrida, apontando aos outros partidos terem tomado a decisão com base em “critérios político-partidários” — e dizendo não ter “vergonha” da sua experiência política.
Está longe de ser a única situação em que Carlos Pereira se tornou alvo de ataques da oposição. Na semana passada, foi para este deputado socialista, vice da bancada, antigo líder do PS-Madeira e coordenador do partido na comissão de inquérito da TAP, que a CEO da companhia aérea, Christine Ourmières-Widener apontou quando disse, com sotaque francês, que era ele que tinha estado a representar a bancada socialista na polémica reunião preparatória que juntou a CEO, Governo e este deputado, em janeiro. A revelação provocou uma onda gigante de críticas, com o deputado a garantir que não via nisso nenhuma violação ética.
Quem o conhece justifica que o feitio e as características de Carlos Pereira levam tanto a que seja uma pessoa a quem se podem entregar pastas quentes como a que faça inimigos com relativa facilidade, destacando-se pelas intervenções em tom corrosivo no Parlamento.
“Deve ser um dos nossos deputados mais combativos e isso também gera uma animosidade por parte dos adversários políticos”, defende ao Observador o líder parlamentar socialista, Eurico Brilhante Dias, atribuindo as últimas críticas a Carlos Pereira, a propósito da reunião com a CEO da TAP, a “perseguição pessoal” e a um “ambiente pouco saudável” que se vive no Parlamento. E garante que será o deputado que mais sabe sobre o dossiê da TAP: “Se havia pessoa que fazia sentido que fosse [à reunião preparatória] era ele”.
Não é uma avaliação totalmente consensual mesmo entre os socialistas, embora as opiniões, mais ou menos simpáticas, acabem por cruzar-se: os mais benevolentes falam numa tendência para “absorver espaço político” e para “zelar pelo seu espaço”, os mais críticos fazem a descrição de alguém “excessivamente ambicioso e vaidoso” que “drena tudo à sua volta”.
Nunca desliga da política — descrito como um homem que tem dois vícios, a política e a “cultura física”, quando vai correr, todas as manhãs, está o tempo todo a ouvir nos seus phones intervenções de adversários, podcasts e programas de debate político. Também não gosta de perder muito tempo: “À terça-feira apanha sempre o primeiro voo da Madeira para Lisboa porque gosta de começar logo e de chegar à Assembleia quando ainda não está mais ninguém”. (Antes disso já foi ao ginásio, nem que seja às seis da manhã). Os voos já lhe saíram mais baratos: foi um dos deputados das ilhas que acumulavam o pagamento que recebiam do Parlamento pelas viagens até casa com o subsídio de mobilidade que todos os ilhéus têm direito a receber, polémica que acabou com uma alteração das regras no Parlamento para essas viagens.
O madeirense de 53 anos, que joga padel, ouve Supertramp e U2, já entrou em choque com António Costa e foi conquistando e mantendo uma posição de influência no Parlamento — à custa de algumas inimizades, em Lisboa e na Madeira.
As guerras na Madeira e a guerra contra Costa
O episódio da nomeação falhada para a ERSE é o primeiro que Carlos Pereira diz ao Observador ter causado um sério “amargo de boca”, por ser um “ato anormal” em que considera que os deputados da oposição “não estiveram bem”, mas não foi o único momento de conflito numa carreira política que tem tido uma boa dose de polémicas à mistura.
Depois de ter estudado Economia no ISEG, feito uma pós-graduação em Desenvolvimento Rural (fez também outra em Gestão do Turismo) e regressado à Madeira, onde ingressou no Centro de Ciência e Tecnologia da Madeira, e se tornou depois diretor geral da Câmara de Comércio e Indústria da Madeira, Carlos Pereira começou a tornar-se um crítico muito visível de Alberto João Jardim, altura em que arranca a sua carreira política — primeiro na Madeira, antes de dar o salto para o continente. Aliás, foi sobre a gestão do social-democrata que escreveu o seu livro “A Herança — saiba como o governo da Madeira escondeu a dívida”. Ainda independente, candidatou-se em 2005 à Câmara do Funchal (demoraria mais meia dúzia de anos a filiar-se no PS).
Na ilha, Carlos Pereira foi eleito deputado, liderou a bancada socialista e tornou-se mesmo líder do PS-Madeira. As histórias de inimizades (para dizer o mínimo) que ainda duram surgem nessa altura: é nessa fase que Emanuel Câmara, presidente da câmara de Porto Moniz, surge como candidato ao PS-Madeira — num ticket que incluía o então independente Paulo Cafôfo como candidato para o governo regional –, o que dava à Câmara “muita pujança”, admite fonte socialista. Pereira, que estava desde 2015 a presidir à estrutura e a “fazer um caminho de construção da oposição”, saiu derrotado.
Ainda assim, quem conhece a vida interna do PS-Madeira garante que mantém peso na estrutura e continua a ter, mesmo à distância, bastante influência. Outra coisa que permanece é a “absoluta hostilidade” entre as duas linhas — sendo que no Parlamento nacional se senta ao lado do ex-chefe de gabinete de Cafôfo (e ex-líder parlamentar do PS na Madeira), Miguel Iglésias.
Hoje em dia, Pereira resume assim a relação que resultou das guerras fratricidas dessa altura: “Não é boa nem má”. É público, explica, que não tem sido do seu “agrado” nem tem apoiado de forma “intensa” o caminho da direção desde essa altura. E fica claro que não está de todo fora dos planos voltar a tentar conquistar o partido na Madeira — embora esteja consciente de que as feridas profundas dentro da estrutura não devem ser reabertas.
“Decidi ser candidato à câmara do Funchal por achar fundamental que houvesse uma alternativa política na Madeira. Naturalmente esse bichinho, essa ambição de poder presenciar e até ser ator nesse processo não saiu de dentro de mim”, reconhece ao Observador. Mas convém não repetir os fantasmas do passado: “Há sempre um conjunto de circunstâncias que tinham de se reunir: jamais entrarei num combate político na Madeira como em 2017, com camaradas e amigos, tão duro como foi. Isso tem impactos muito grandes na mobilização do partido e pode colocar em causa resultados bons e mesmo vitórias”. Ou seja: se uma futura candidatura sua não for “consensual” nem gerar “tranquilidade”, cenário difícil de imaginar nesta altura, Pereira promete que não se mete nisso.
Já em 2015 Pereira tinha entrado em choque por causa da sua posição no PS Madeira (e em Lisboa) — mas, dessa vez, ganhou. António Costa queria impor o ex-secretário de Estado Bernardo Trindade, que chegou mesmo a indicar, como cabeça de lista pelo círculo da Madeira, provocando a fúria de Carlos Pereira. O secretário-geral do PS, que então ainda não era primeiro-ministro, chegou a falhar o encerramento do congresso do PS-Madeira (na altura com a justificação de que Maria Barroso se encontrava muito mal de saúde), entre ameaças de Pereira de que se demitiria se Costa não recuasse de uma decisão tomada “à revelia do PS-Madeira e à má fila“, como contava o Expresso.
O impasse acabou com uma cedência, mas não foi do lado de Pereira: perante o finca pé do líder da estrutura, que disse com isto estar a defender a autonomia do PS-Madeira, foi o próprio Bernardo Trindade que decidiu retirar-se e abrir a passagem a Pereira, que acabaria mesmo por ser o cabeça de lista pela Madeira e assim continuar nas eleições de 2019 e 2022, passado o drama inicial com Costa. Mesmo assim, os conflitos deixaram marcas na relação — e na relação com os outros protagonistas madeirenses também.
Quem o conhece aponta-lhe a ambição de ainda voltar a liderar o PS-Madeira, onde continuou a impôr-se como cabeça de lista apesar de a sua linha política estar arredada do poder. Será esse, de resto, o principal motivo para, dentro da sua agenda “própria”, como coloca uma fonte socialista, se mostrar sempre muito “disponível” e até “voluntarista” para participar em todo o tipo de debates em nome do PS e sobretudo nos assuntos da Madeira — por mais polémicos que sejam e por mais “custos políticos” que lhe possam colocar.
“Está sempre disponível para estar nos debates todos, com mais ou menos audiência, em nome do PS”. Para uns, por vaidade, “autoestima elevada” e para promover a sua agenda pessoal; para outros, numa combinação saudável entre ambição e voluntarismo. Desde 2015 que o faz a partir da Assembleia da República, sendo que diz orgulhar-se dos resultados que tem tido como cabeça de lista (embora ainda não tenha conseguido mais deputados do que o PSD): “A melhor série de resultados do PS aconteceu comigo como cabeça de lista. Não foi só por mim, mas acho que protagonizei bem”. Há meses, num evento em Leiria, Costa picava publicamente Pereira: falta ao PS ganhar a Madeira.
“Um tipo que se faz respeitar” ou alguém que “drena tudo à volta”?
Foi ali que se instalou em 2015, que se tornou vice-presidente (também porque há um acordo tático de manter sempre Açores e Madeira representados na direção do grupo parlamentar, explicam fontes socialistas) e que tomou conta do dossiê da TAP, ganhando peso na bancada e transitando entre as direções de Carlos César, Ana Catarina Mendes e Eurico Brilhante Dias. “Ensaiei um modelo de discussão dos temas que interessam a Madeira diferente do passado, era muito o que vinha do PS nacional e os deputados tinham pouca influência”, garante o deputado.
“Carlos Pereira não só conhece bem as empresas, mas conhece particularmente bem o dossiê da TAP, que acompanha há muitos anos. Não é por acaso que o atacam”, defende Brilhante Dias. O líder parlamentar garante que foi graças ao empenho e às investigações do deputado sobre o dossiê que o PS agarrou o tema da privatização aérea em 2015 ganha por David Neeleman com dinheiro da própria companhia. “Ele tem muita informação e muita perspicácia política”, justifica.
Ironicamente, se esse tema era precisamente um daqueles em que o PS planeava focar-se durante a comissão de inquérito, desviando as atenções para a privatização e para o Governo de Pedro Passos Coelho em vez das trapalhadas recentes na gestão da empresa, o tiro parece ter saído ao lado, e logo por causa de informações como a revelação da reunião em que Carlos Pereira participou.
Na bancada do PS, desvaloriza-se a importância da reunião — há preparatórias “quase todos os dias”, justificam os deputados, embora tenham mais dificuldade em explicar se isso costuma acontecer também com entidades externas e frisem que a responsabilidade de convidar a CEO da TAP não foi do PS.
Ao Observador, o deputado diz compreender que o país possa ter “algumas dúvidas” sobre o que se passou, mas acusa os outros partidos, que conhecem o “modus operandi e também participam nestas coisas”, de “hipocrisia”: “Não tenho dúvidas nenhumas de que o PSD em particular utilizava este modelo. Era quase mandatório perguntar a Luís Montenegro se em nenhuma circunstância [enquanto líder parlamentar do PSD] se reuniu com entidades públicas. Não acredito que não tenha acontecido”.
De qualquer forma, Carlos Pereira acabou por ser o rosto do PS no encontro — para Brilhante Dias, uma escolha natural; para outros colegas, mais uma prova de que Pereira se “impõe”, tanto no dossiê da TAP como noutros.
Daí que haja quem lhe aponte uma ambição muito notória e uma tendência para “secar” o espaço à sua volta. “Ninguém tem coragem para se meter nas coisas dele, é um tipo que se faz respeitar”, aponta outro deputado. Entre colegas há quem o descreva como alguém que não gera necessariamente simpatia num primeiro momento e que tem “opiniões fortes” nas discussões, o que pode gerar alguns anticorpos. Mas, ainda assim, também é descrito como uma pessoa “leal”, com quem o PS sente que pode contar e que é muito dedicado à defesa do Governo.
Também coube, aliás, ao deputado fazer, em outubro, a defesa de uma posição polémica no Parlamento, argumentando que a audição a Pedro Nuno Santos sobre a empresa onde tinha uma participação com o pai devia ser encurtada para apenas uma ronda de perguntas dos deputados (mas já estava decidido que seriam duas e, dessa vez, falhou o objetivo do PS).
A descrição da “lealdade” de Carlos Pereira fica, pelo menos publicamente, em xeque com um dos momentos mais bizarros que protagonizou, e que foi notado não só no PS, mas também no Governo. Aconteceu quando, em plena polémica por causa da opinião do ministro da Economia, António Costa Silva, de que o Governo devia baixar de forma transversal o IRC — uma medida que o António Costa e Fernando Medina não queriam tomar, e não tomaram — Pereira decidiu, para estupefação do PS, perguntar ao ministro no Parlamento a sua opinião sobre a medida.
Costa Silva seguiu e não respondeu. Já o deputado chegou a ser questionado pela Renascença sobre as suas motivações para atrapalhar o ministro em público, admitindo que a pergunta poderia gerar “alguma questão sobre isso”, mas negando ter algum tipo de segunda intenção ao fazê-la. No Governo, a questão do IRC teria, aliás, consequências bem duras e visíveis: foi a última gota de água numa relação má entre Costa Silva e os seus secretários de Estado, que também o contrariaram em público sobre a medida e acabaram remodelados. No PS, a pergunta de Pereira foi recebida com estranheza e algum ceticismo.
“Muita gente acha que ele tem umas gafes quando se entusiasma…”, admite um colega de bancada com quem até tem uma boa relação. Exemplo disso será também a intervenção que fez em 2019, no Parlamento, em que acabou por chamar “empecilhos” aos parceiros da esquerda do PS, embora lhe seja apontado um gosto especial por “malhar no PSD e PSD Madeira”. Nesse dia, para irritação de Bloco de Esquerda e PCP, disparou ataques que mais pareciam dirigidos a verdadeiros adversários do PS: “No ruído da pré-campanha para outubro de 2019 até parece que a atual solução governativa foi desenhada a pensar no BE e no PCP, como se os portugueses ansiassem pela coletivização forçada dos meios de produção, com expropriações em massa e nacionalizações em catadupa.”
Mesmo que por vezes exagere, a “combatividade” e a “agressividade” são apreciadas na direção da bancada. Pereira é considerado um bom orador, um político preparado — diz que tem “pavor” de chegar impreparado a qualquer debate ou reunião — e um daqueles deputados em quem o PS pode confiar para destinar missões espinhosas e defender o partido, atacando em força os adversários. Está sempre pronto para isso e “faz um trabalho muito ativo na defesa do PS e do Governo”, resume um colega da direção da bancada — o problema é quando, como aconteceu nos casos de Costa Silva ou da geringonça, não está exatamente a falar para adversários, mesmo que pareça que sim.
Um dos outros episódios em que teve dificuldades em gerar um consenso foi também no Parlamento — mas dessa vez não teve propriamente culpa. É que do currículo de Carlos Pereira consta também um quase-relatório de uma das comissões de inquérito à Caixa Geral de Depósitos.
O documento, que culpava a crise pelas dificuldades do banco, foi redigido por Carlos Pereira, que tinha sido escolhido como relator. Estranhamente, acabou chumbado por… falta de comparência do PS. Bloco de Esquerda e PCP até alinharam, nessa votação, com o PS — mas dois deputados socialistas não estavam na sala à hora marcada (João Galamba e Susana Amador) e o documento que remataria uma das experiências mais destacadas de Pereira no Parlamento acabou chumbado. Agora lidera a bancada do PS numa nova comissão de inquérito, a da TAP, que promete gerar ainda mais polémica.