Ao largo da cidade de Sebastopol, na costa da Crimeia banhada pelo Mar Negro, as forças militares da Rússia dispararam a 22 de março uma salva de oito mísseis de cruzeiro 3M-14 Kalibr, lançados a partir de um navio da classe Buyan para noroeste, em direção ao centro da Ucrânia. O momento foi captado em vídeos, que mostram os projéteis com uma cauda incandescente a atravessar o céu sobre as ondas picadas do mar, deixando para trás um rasto de fumo no céu ao pôr do sol.
Video reportedly of a Russian Project 21631 Buyan-M small missile ship launching 8 Kalibr-NK cruise missiles from near Sevastopol. https://t.co/GcWqUpoXLh pic.twitter.com/VvU3l5yYCK
— Rob Lee (@RALee85) March 22, 2022
Muito antes de colidirem contra território ucraniano — projéteis como estes estão a atingir cidades como Kharkiv para destruir edifícios governamentais —, os mísseis começaram a fazer vítimas nas profundezas do mar. As ondas sonoras do estoiro produzido aquando do lançamento e, depois, os silvos que emitem ao longo da viagem espalham-se em todas as direções e propagam-se mar adentro. Em meios líquidos, propagam-se até mais rapidamente — três a quatro vezes mais do que no ar. E isso está a ter consequências para a vida marinha.
As evidências de que a guerra na Ucrânia está a fazer vítimas também na vida animal já deram à costa a mais de 400 quilómetros do porto de Sebastopol. Quatro dias depois daquele lançamento, a Fundação Turca de Investigação Marinha, sediada em Istambul, avisava que tinha detetado um “aumento incomum” de golfinhos-comuns-de-bico-curto mortos cujos cadáveres acabavam encalhados nas praias na costa ocidental da Turquia, voltadas para o Mar Negro. O fenómeno começou a observar-se ao longo do mês anterior — o que coincide com os primeiros dias de conflito armado na Ucrânia.
Todos os golfinhos foram encontrados nos areais da bacia marítima entre a vila de Ormanli e a cidade de Sinope, a cerca de 322 quilómetros uma da outra. Os casos registados na Rede de Desembarque de Mamíferos Marinhos têm todos uma explicação: os animais morreram por afogamento “devido à interação da pesca”. O mistério não reside precisamente na causa direta da morte, mas em como estão a ser detetados tantos casos destes nesta altura do ano: “Ainda não está claro por que motivo estão concentrados nesta região nesta época do ano e porque é que as capturas acidentais com rede aumentaram tanto”, explica a Fundação em informações enviadas ao Observador.
Porque é que morreram pelo menos 80 golfinhos no Mar Negro desde o início da guerra na Ucrânia?
Há quatro teorias em cima da mesa: os desvios nas rotas dos golfinhos podem estar relacionados com as alterações climáticas, com o tráfego incomum dos navios, podem explicar-se por uma adaptação às migrações dos peixes ou com as “intensas atividades militares submarinas ou à superfície no norte”. Esta última é, no entanto, a explicação mais aceite, porque “há um excesso de poluição sonora” desde que a guerra começou, confirmou João Correia, biólogo marinho e fundador da Flying Sharks, uma organização que defende a sustentabilidade dos oceanos, ao Observador. “Este problema acontece com mais frequência a nível mundial. No Mar Negro, que é um mar relativamente pequeno, a guerra está a ter um profundo impacto”, refere o biólogo marinho.
Para navegar, os golfinhos utilizam um sentido chamado ecolocalização, que funciona de modo semelhante ao sonar de um barco. O ar inspirado à superfície através do orifício presente no topo da cabeça (o espiráculo) acumula-se em sacos nasais e depois é pressionado ao longo dos canais, fazendo vibrar os tecidos.
Essas vibrações são expulsas para a água através do melão, uma protuberância feita de tecido adiposo e fluidos, na cabeça dos golfinhos, que direciona as ondas sonoras numa frequência tão elevada que se torna inaudível para os humanos — os ultrassons. Quando eles atingem um objeto e são redirecionados, os golfinhos captam as ondas sonoras através da mandíbula e do ouvido. Quanto mais tempo as ondas sonoras demorarem a regressar aos animais, mais longe estão os objetos atingidos por elas. “Fazem um mapa tridimensional da realidade à volta deles”, sintetiza João Correia. Tal como fazem também as baleias ou os morcegos.
Mas as ondas sonoras produzidas e emitidas pelos navios de guerra (que também utilizam sonares para vasculharem o fundo marítimo), aviões militares, mísseis e bombardeamentos perturbam a ecolocalização dos golfinhos, causando desorientação e mal-estar generalizado. “Tem um impacto no sistema imunitário e motiva ataques por agentes patogénicos que, de outra forma, eram inócuos para o organismo dos animais”, explica o biólogo marinho. Basta que os golfinhos desenvolvam uma meningite para serem condenados à morte.
Gás tóxico de Azovstal pode tornar Mar Negro inabitável
Esta pode, assim, ser uma das consequências mais evidentes do impacto da guerra na Ucrânia no ecossistema. Mas a 415 quilómetros de distância, do outro lado da Crimeia e na costa ucraniana banhada pelo Mar de Azov, há outro desastre à espera de acontecer. Ao longo dos 82 dias de resistência na fábrica de siderurgia Azovstal, as forças russas bombardearam as instalações — muitas vezes, violando o cessar-fogo acordado para a retirada de soldados feridos —, na tentativa de conquistar o controlo total sobre Mariupol. Mas uma das infraestruturas da fábrica é um depósito com milhares de toneladas de uma solução concentrada de sulfeto de hidrogénio, um gás mais denso que o ar e que é altamente corrosivo e venenoso.
Se este composto, um subproduto da utilização de fornos de coque (combustível derivado do carvão betuminoso) na produção de ferro e aço, derramar para a água, “há uma ameaça de extinção completa” da vida marinha no Mar de Azov.
Foi o que avisou em meados de maio fonte oficial da Câmara Municipal de Mariupol, cujo autarca, Vadym Boychenko, pediu “a admissão imediata no local de especialistas internacionais e da ONU para estudar a situação e evitar uma catástrofe ambiental de classe mundial”. A confirmar-se uma poluição do Mar de Azov com sulfeto de hidrogénio, o problema não ficaria estancado naquela massa de ar: o composto venenoso podia migrar para o Mar Negro através do Estreito de Kerch; e daí para o Mediterrâneo pelo Estreito de Bósforo.
Por estar isolado, o Mar de Azov é uma das maiores preocupações dos ambientalistas, a par do delta do rio Danúbio e do golfo de Odessa. “É onde a biodiversidade é mais frágil, estas regiões ficam nos destinos de migração das aves”, explica a Fundação Turca de Investigação Marinha. É nestas águas que habita uma alga vermelha em perigo de extinção, a filófora, habitat de espécies marinhas como bivalves, esponjas e ascídias.
Mas no Mar Negro a situação é igualmente preocupante porque já é naturalmente rico em sulfeto de hidrogénio: 92% da água abaixo dos 150 metros contém este composto químico. É assim porque este mar está praticamente isolado dos oceanos abertos e acumula em profundidade este produto, proveniente da decomposição da matéria orgânica vinda da superfície ou arrastada até lá pelos rios.
Ora, o Mar Negro está altamente estratificado. Por um lado, quando recebe a água do Mediterrâneo, ela desce em profundidade por ser salgada e, por isso, também mais densa — misturando-se com o sulfeto de hidrogénio que já tem naturalmente. Mais à superfície fica a água doce que esse mesmo mar recebe dos rios.
É esta camada mais superficial que funciona como um “escudo” que impede o sulfeto de hidrogénio presente em profundidade de contaminar todo o mar e os outros corpos de água com que está em contacto. Mas se esse “escudo” vier a ser contaminado com água do Mar de Azov poluído por fugas vindas da Azovstal, o novo sulfeto misturar-se-á com as camadas de água que não estão naturalmente poluídas.
É um perigo real, mas improvável — tal como aconteceu quando se temia que as forças militares russas expusessem o material radioativo das centrais nucleares de Chernobyl e de Zaporíjia. É que a poluição do Mar de Azov com sulfeto de hidrogénio seria um desastre natural, não apenas para a própria Ucrânia como para todos os territórios banhados por aquelas águas — e isso inclui a Rússia e a região anexada da Crimeia.
E, segundo o Departamento de Saúde da Universidade de Virginia, nos EUA, uma vez libertado, este composto químico pode causar irritações nas vias respiratórias e nos olhos, edemas pulmonares, paralisia do nervo olfático e, quando em concentrações muito elevadas (200 a 300 partes por milhão), a morte imediata.
Combustível dos navios e minas perdidas ameaçam vida marinha e pescadores
Outros problemas podem ser menos evitáveis, avisou a Fundação Turca de Investigação Marinha: “A ameaça para espécies que escolhem estas regiões para reprodução, alimentação, migração e desova, onde bombardeamentos e tiroteios ocorrem diariamente, é inevitável.” Ninguém sabe a quantidade de combustível que escapou dos navios atingidos em ataques aéreos e afundados junto à margem de Mariupol, voltada para o Mar de Azov. Mas os gases venenosos dessa gasolina serão libertados para a atmosfera e vão inevitavelmente atingir também terra firme quando forem depositados pela chuva.
O rio Dnieper, transformado numa verdadeira frente de batalha, está a ser poluído com bases e substâncias químicas tóxicas libertadas pelas munições de ambos os lados da barricada. Mas este é o mesmo curso de água que serve de fonte de irrigação agrícola; e de onde vem a água potável consumida nas cidades serpenteadas pelo rio. Segundo as autoridades turcas, há mesmo evidências de que o leito do rio está a ser alterado para servir de obstáculo contra os atacantes — mas isso tem o reverso da medalha: os poluentes também são arrastados para áreas onde, de outra forma, não chegariam tão depressa. É uma “guerra hidráulica”, diz a fundação de investigação marinha.
Acordo com Rússia e Ucrânia para proteger o Mar Negro pode estar a ser violado
Mas isso pode violar a Convenção sobre a Proteção do Mar Negro contra a Poluição, também conhecida por Convenção de Bucareste. Este é um acordo assinado entre os seis Estados banhados pelo mar em abril de 1992 — Bulgária, Geórgia, Roménia, Rússia, Turquia e Ucrânia — em que se estabeleceu o compromisso em três pontos: o controlo de fontes de poluição terrestres, a limitação do despejo de resíduos e a ação conjunta em caso de acidentes, incluindo derramamentos de petróleo. A missão final era “prevenir, reduzir e controlar a poluição” no Mar Negro.
Ainda assim, a própria Rússia admitiu que está a instrumentalizar os cursos de água a seu favor, depositando minas sobretudo no Mar de Azov e no Estreito de Kerch. Isso compromete o transporte marinho e as rotas comerciais, nota a Turquia, e obrigou mesmo à proibição das pescas durante a noite entre a cidade turca de Igneada e a ilha de Kefken. É “uma situação compreensível”, considerou a fundação, uma vez que o objetivo é salvaguardar a vida dos pescadores. Mas pode ter consequências económicas desastrosas: “No Mar Negro, o stock de pesca para Turquia é como o stock de cereais para a Ucrânia. Mais de 60% das capturas de peixe da Turquia são provenientes do Mar Negro”.
Só o tempo dirá a verdadeira dimensão do impacto ambiental da guerra na Ucrânia. Não há estatísticas para quantas espécies de peixes, e quantos indivíduos de cada espécie, morreram à conta das minas que caíram nos corpos de água em torno da Ucrânia. A Turquia avisa mesmo que esta frente de batalha está francamente ignorada pelas autoridades internacionais — e pede a atenção das Nações Unidas “antes que seja tarde demais”.