O bispo auxiliar de Lisboa, D. Américo Aguiar, responde com “um suspiro” a todos aqueles que, dentro da Igreja Católica, têm tentado pôr em causa a credibilidade do relatório produzido pela Comissão Independente que estudou os abusos sexuais de crianças no contexto da Igreja em Portugal. “É fundamental, é credível, só temos de agradecer”, diz o bispo sobre o documento elaborado pela comissão liderada pelo psiquiatra Pedro Strecht, que estimou a possibilidade de terem existido pelo menos 4.815 crianças vítimas de abusos na Igreja em Portugal desde a década de 1950. Mesmo admitindo que poderá haver falhas e dificuldades do lado da Igreja e do lado da comissão, o bispo sublinha que este não é o momento para “discutir o que não tem discussão” e que o relatório dissipa as dúvidas de que “isto aconteceu” e “destruiu vidas”.
Numa entrevista ao programa Sob Escuta, da Rádio Observador, D. Américo Aguiar fala também sobre a controvérsia que tem marcado a última semana na Igreja Católica: o modo como os bispos estão a lidar com as listas de nomes de alegados abusadores entregues pela comissão independente. Questionado sobre a diferença entre a atuação das dioceses de Angra e Évora (que afastaram de imediato os padres suspeitos) e o patriarcado de Lisboa, que ainda aguarda mais informações, o bispo auxiliar sublinha que aqueles dois bispos fizeram o que Lisboa teria feito se tivesse recebido “os dados mínimos”. Aliás, D. Américo Aguiar diz até que se as listas recebidas pelos bispos tivessem associadas as siglas correspondentes aos casos relatados no relatório o trabalho da Igreja seria mais fácil.
Para D. Américo Aguiar, é impensável afastar um padre só com base no nome na lista — é necessário que a Igreja saiba, pelo menos, quais as acusações que recaem sobre o sacerdote. “Chamar um sacerdote e dizer-lhe ‘o senhor está na lista’, sem termos qualquer informação suplementar, é uma violência e é qualquer coisa muito grave, sobretudo se a pessoa não tiver nada a ver com o assunto objetivamente”, diz. Ainda assim, D. Américo Aguiar garante: “Não pode é ficar no ar a ideia de que alguma diocese ou algum bispo não vai agir como deve agir porque não lhe apetece ou porque não concorda.” Sobre o patriarcado de Lisboa, o bispo auxiliar assegura: assim que houver dados sobre os padres suspeitos, o afastamento será “imediato”.
Num esforço de clarificar as recentes palavras de D. Manuel Clemente, que classificou como “insultuoso para as vítimas” falar em indemnizações, D. Américo Aguiar mostra-se favorável à possibilidade de a Igreja indemnizar as vítimas nos casos em que ficar provado “que a Igreja encobriu, que a Igreja facilitou, que a Igreja criou o ambiente propício a isso ter acontecido”. Aí, disse, há a obrigação moral de indemnizar as vítimas.
D. Américo Aguiar salienta ainda que é fundamental que a Igreja não opte por “enterrar outra vez a cabeça na areia” no que toca aos abusos e admite que a conferência de imprensa de D. José Ornelas, que motivou a polémica dos últimos dias, foi uma “hora má” e uma “tarde péssima” que teve como danos colaterais “naquilo que foi um caminho feito e construído e de mútua confiança”.
“Chegar junto de uma vítima e oferecer-lhe dinheiro, sem mais, é insultuoso”
Estima-se que a Igreja em todo o mundo já tenha gasto cerca de 4 mil milhões de dólares em indemnizações às vítimas de abusos. Só nos EUA, pelo menos 28 dioceses católicas chegaram ao ponto de declarar falência devido aos pagamentos. Aliás, basta olhar para o caso da diocese de Boston — liderada pelo insuspeito cardeal O’Malley. Já disse que não partilha da opinião de D. Manuel Clemente de que falar em indemnizações é insultuoso para as vítimas. No que depender de si ou se depender de si, como será feito este processo?
Primeiro, não colocaria a questão de não concordar com o senhor D. Manuel Clemente, porque não é disso que se trata. Concordo com a interpretação que faço do que disse o senhor D. Manuel.
Que é insultuoso?
O entendimento que tenho é diferente da interpretação que possa estar a fazer — e que aceito que a maioria das pessoas que viram e ouviram também possam fazer. Chegar junto de uma vítima e oferecer-lhe dinheiro, propor-lhe uma quantia em dinheiro em razão daquilo que foi o infeliz e doloroso acontecimento da sua vida, sem mais, é insultuoso. Sem mais, é insultuoso. Não estou a dizer que não devemos equacionar e não devemos fazer tudo para possa existir como um paliativo… porque a indemnização não vai resolver absolutamente nada, infelizmente. Nós não podemos esquecer uma coisa — tenho dito isso repetidamente: a dor não prescreve. E estes acontecimentos acompanham as pessoas em toda a sua vida, permanentemente. Não é um valor, muito ou pouco, que vai resolver o que quer que seja.
Mas em vários países do mundo a Igreja deu indemnizações, isso foi insultuoso?
Não, não devemos sublinhar a questão de o senhor patriarca estar a dizer que não equaciona — ou não se equacionam indemnizações –, porque isso é insultuoso. Porque dizer isso soa insulto.
Foi D. Manuel Clemente que o disse.
Mas acho a interpretação errada. Penso que o que o senhor patriarca está a dizer, a interpretação que faço, é: ‘Acolhi e acompanhei duas vítimas presencialmente, daquilo que foram os casos apresentados à comissão de Lisboa, nunca o assunto foi colocado por elas e, quando colocado, foi liminarmente rejeitado’.
Foi colocado pelo patriarcado?
Quando nós colocamos a questão, ou reduzimos a questão grave, profundamente dolorosa, a dar ou não dar uma indemnização, em transformar aquilo que é a dor por um valor que vai por ventura atenuar, isso é insultuoso para as vítimas. Portanto, não é isso que as move. E essa é aquela que deve ser a leitura.
Então o que defende?
Vamos à questão das indemnizações propriamente ditas, àquilo que sinto. Muitas vezes reflito que nós não somos uma ONG, não somos uma organização não governamental, nós somos uma instituição. Ponto. Sinto-me vocacionalmente — e dei a minha vida em razão disso, sou sacerdote sucessor dos apóstolos — e penso todos os dias o que é que Jesus faria e faz nesta circunstância. Acredito que Cristo vive e essa é a minha missão, a minha vocação. Portanto, diariamente na minha vida equaciono o que é que Cristo faria, o que é que Cristo faz, o que é que Cristo quer que faça.
E a que conclusão chega?
Perante esta circunstância não posso desistir de fazer tudo o que estiver ao meu alcance e depender de mim para acompanhar, cuidar, defender, amar qualquer uma destas pessoas têm vivido essa circunstância. E quando se coloca a questão das indemnizações é óbvio que moralmente nós temos que estar na primeira linha da frente para corresponder a qualquer uma dessas circunstâncias que se coloque.
A Igreja poderá, por exemplo, em Portugal criar um fundo para indemnizar vítimas?
Mais fundo, menos fundo, aquilo que significa a minha leitura é o seguinte: nós temos, porventura, um sacerdote ou um agente pastoral que foi acusado e que foi condenado a uma pena e a uma indemnização. Se essa pessoa não tem condições ou por alguma razão é complicado concretizar o que foi determinado, a Igreja deve imediatamente suprir e concretizar essa indemnização. Se, num qualquer caso, ficar claro, de forma evidente e provada, que a Igreja encobriu, que a Igreja facilitou, que a Igreja criou o ambiente propício a isso ter acontecido, moralmente a Igreja tem obrigação de concretizar essa circunstância da indemnização. Obrigatoriamente. Não há sequer dúvidas. E também não nos podemos colocar atrás do muro ou atrás do biombo, com a justificação de que prescreveu ou que juridicamente ‘não sei quê’, ou mesmo que canonicamente ‘não sei o quê’. Esse não é o nosso posicionamento.
Então qual é?
A Igreja tem deveres morais, tem obrigação de ser referência, de ser farol e de, neste ambiente que estamos a viver, ser exemplar para a comunidade carente, exemplar para a sociedade em geral, exemplar junto das vítimas, das crianças e das pessoas vulneráveis — para que aquilo que aconteceu seja definitivamente parte da história, seja passado. Tenhamos consciência de que isso não passa no coração das vítimas e façamos tudo para que não se repita e que seja claro para toda a gente que a tolerância zero é efetiva, na parte da Igreja e na parte da sociedade. Há dias falava com a doutora Manuela Eanes, que me contava a história do Instituto de Apoio à Criança. Dizia-me ela que há 40 anos esta temática foi colocada por ela e por outras pessoas da sua convivência: criaram o Instituto de Apoio à Criança, criaram o SOS Criança, mas, na altura, infelizmente o assunto não deu um salto. Passadas umas décadas tivemos a vivência da Casa Pia — e também parecia que tudo se ia resolver, que tudo ia tomar um novo rumo e infelizmente também não foi o que aconteceu. Acredito que tenhamos evoluído muito, mas não resolvemos o assunto. Agora temos esta circunstância profundamente dolorosa e gostava que esta vivência que estamos a ter — o pós-relatório, o pós dar a voz ao silêncio — fosse uma nova era naquilo que significa a vivência e o posicionamento da sociedade e do cidadão perante um crime que é horroroso.
“O que me causou alguma perplexidade foi a maneira de expor os relatos”
Sobre o relatório, a comissão independente diz: “Parece-nos evidente que a Igreja, durante as décadas que interessam a este estudo, não só conviveu com a prática no seu interior de inúmeros crimes de abuso sexual de crianças, como primou pela sua ocultação”. Parece-lhe justificável aquela ideia da CEP de que só os abusadores é que são responsáveis e responsabilizáveis pelos crimes e não a Igreja?
Se nós formos para o patamar jurídico, o discurso é um. Se formos para o patamar moral, o patamar daquilo que significa a Igreja na sua essência, sou herdeiro daquilo que aconteceu no passado. Totalmente. Sinto-me herdeiro. Dói-me, magoa-me, desconforta-me, mas sou o seu herdeiro.
E agora a Igreja tem que pensar em qual desses patamares: no jurídico ou no moral?
O nosso patamar terá de ser obrigatoriamente moral. Em novembro de 2021, a Conferência Episcopal tomou a decisão de encomendar, de pedir a alguém que fizesse este trabalho, que foi e é fundamental. Aqui não devemos criar nem nuvens, nem ruídos à volta do relatório para o destruir, para o desvalorizar… não é um produto 100% eficaz… não digo que não seja eficaz; que não é puro, também não é puro que quero dizer. Não é 100% bem feito, pronto não é…
Quais são os erros que identifica?
Não é isso que quero dizer, se não vou acrescentar… Como é que hei de dizer? Não é uma obra prima, uma coisa fechada. Com mais tempo e, eventualmente, com menos paragens e menos tropeços se calhar tínhamos uma ferramenta até mais purificada.
Ou se tivesse havido maior agilidade da Igreja em abrir os arquivos…
Tudo, tudo, tudo. Como disse antes de começarmos esta conversa, não foi por falta de convite que não vim cá antes, pelo contrário. Tinha um acordo tácito com o doutor Pedro Strecht que era: enquanto a comissão estivesse a fazer o seu trabalho, não me pronunciava, porque faz parte daquilo que também foi meu empenho em dar voz ao silêncio. E foi muito importante e é muito importante que, durante o período de tempo de trabalho da Comissão Independente, se desse a voz ao silêncio. Já comecei a ouvir a entrevista do Observador ao Dr. Laborinho Lúcio — ainda não consegui ouvir toda. É importante neste momento que não estejamos a pôr focos e a divergir, porque sim, porque não, porque não sei, porque isto e aquilo. Isso é querer enterrar outra vez a cabeça na areia e isso é negativo. O que nós temos que fazer é alcançar o tempo da ação, da justiça e da verdade. Com aquilo que é esta ferramenta fundamental — o relatório é, digamos, um terreno cultivado onde agora nós temos que edificar. E temos que edificar, evitando que as vítimas sejam vítimas outra vez. Porque se me colocar no papel da vítima e ouvir estas conversas, estes desencontros — ‘o outro deu, o outro não deu e a lista tem e a lista não tem e devia ter…’ –, isto é revitimizá-las outra vez. Não é respeitar as pessoas que abriram o seu coração, que se disponibilizaram.
Mas tem sido a Igreja e a sua hierarquia, de facto, a ter vários desses posicionamentos públicos. Por isso é que lhe perguntava ainda há pouco se, tendo em conta tudo isto, lhe parece justificável essa ideia da Conferência Episcopal, de que só os abusadores podem ser responsabilizáveis pelos crimes e não a Igreja, quando há toda questão da ocultação no relatório…
Não sou erudito, não sou muito erudito. E, portanto, aceito que nós podemos falar destas questões ao nível jurídico e canónico — ‘prescreveu, não prescreveu, os culpados são pessoas individuais, que são condenadas e têm que cumprir pena e nós acreditamos que o sistema de reinserção social’… essas coisas todas jurídicas. Aceito, não as domino, mas aceito e estamos num Estado Direito e não pode ser de outra maneira. Agora, esse não é o meu sentimento e não é o meu o meu registo. Nós somos herdeiros de uma situação que aconteceu no passado e desejava que só tivesse acontecido no passado, que fosse um dossiê que estava lá guardado e que agora nós abrimos e queremos resolvê-lo dentro daquilo que é minimamente possível, porque, infelizmente, não é possível resolvê-lo. E, portanto, aquilo que é o meu posicionamento, aquilo que é o meu sentir e aquilo que Cristo vivo me impele a dizer, a testemunhar e a trabalhar é para que nós acompanhemos as vítimas em toda a plenitude, em todas as circunstâncias, de maneira que as pessoas não cicatrizem a ferida, porque isso é impossível acontecer, não apaguem o sofrimento e a memória dolorosa que tenha desse acontecimento. Mas que se sintam amadas, respeitadas, acompanhadas e cuidadas — com ou sem indemnização. Que da nossa parte haja uma total disponibilidade para acompanhar cada pessoa na sua realidade.
No dia 13 de fevereiro, quando o relatório foi apresentado pela Comissão Independente, naquela longuíssima conferência de imprensa na Gulbenkian, não estava na primeira fila por não fazer parte do conselho permanente, mas terá acompanhado tudo ao minuto. O que é que sentiu naquele momento? Estava à espera de uma realidade com esta dimensão, um número de quase cinco mil potenciais casos?
Quando passar o tempo da ação, da verdade e da justiça poderemos refletir, esmiuçar os números e as tabelas e todas essas circunstâncias.
Mas qual foi o seu sentimento?
Penso que vocês e eu não ficámos muito admirados. Quem, ao longo dos últimos anos, tem acompanhado, tem lido, tem estudado, tem investigado e tem tentado aproximar-se deste dossier e desta realidade… Não fiquei nem muito nem pouco [admirado]. A única coisa que me causou alguma perplexidade, mas compreendo as duas partes, foi a maneira de expor os relatos. Aliás, já ouvi o doutor Daniel Sampaio, já ouvi o Pedro Strech, já ouvi o doutor Souto Moura, já ouvi várias pessoas. Acredito que isso possa sensibilizar e fazer acordar o cidadão para a gravidade e para o horror do acontecimento, mas também aceito que algumas vítimas se possam ter sentido desconfortáveis ao identificarem-se de uma maneira tão pública com aquilo que foi um relato íntimo e privado da sua vida, de um momento tão doloroso. Tirando isso, a mim não me surpreendeu, infelizmente. Agora, reforçou, reforça e tem de reforçar em todos e cada um de nós — pessoas com responsabilidade na Igreja e na sociedade — a decisão definitiva da tolerância zero e da transparência total.
Se assim é, se não ficou surpreendido, depois desta realidade já ser conhecida em vários países do mundo, ao longo das últimas quatro décadas, porque é que vários bispos portugueses continuaram até tão recentemente a dizer que em Portugal isto eram casos pontuais? Que era uma realidade dos países anglo-saxónicos?
Lembra-se que quando me colocaram a questão do relatório, a certa altura, disse — e disse sem qualquer peso negativo ou de sacudir — que achava importante que fosse transversal à sociedade. Porquê? Exatamente pelo conhecimento, infelizmente, da realidade do terreno. Mas a leitura que foi tida é que estava a sacudir, que era só para fazer a todos e assim diluir os da Igreja. Não era esse, sinceramente, o meu sentimento, mas pronto faz parte da Via Sacra que temos que percorrer. Nós temos 21 dioceses, isso também é importante sempre dizer. Não há Igreja Católica portuguesa, são 21 realidades, com 21 bispos: novos, menos novos, mais experientes, menos experientes, mais sensíveis, menos sensíveis. Há quem diga que alguns são progressistas, outros conservadores, altos, magros, gordos e baixos, etc. A reação e a leitura que fizeram antes e que fizeram depois deixa, de facto, uma sensação evidente a qualquer pessoa que há um desfasamento, seja de tempo, seja de reação, seja de assimilação da profundidade — da gravidade não creio — mas da profundidade e da necessidade de cada diocese agir em conformidade. Isso acredito que sim. Mas, como tenho dito, acredito profundamente, porque conheço os bispos em causa, que nós vamos chegar, mais semana menos semana, a um ponto de maior sincronização e de acerto de passo naquilo que é essencial. E o essencial é não perder o balanço, não perder esta fase de ação, de verdade e de justiça. E não podem ficar dúvidas. Tenho muita pena, neste processo das listas e da reação das dioceses, do modo como as coisas aconteceram — criando-se mais uma vez um ruído à volta do que é essencial.
“O que é que nos foi entregue? Foi uma folha A4 com 24 nomes. Ponto.”
Era importante, ainda sobre a questão da ocultação, sublinhar um ponto: a Comissão Independente disse ao longo do trabalho que havia bispos portugueses envolvidos na ocultação de casos em Portugal. Há um relato no relatório que diz que uma vítima foi há dois anos ter com o seu bispo para lhe apresentar um caso e que ouviu uma espécie de ameaça de processo por difamação. Não há interesse da parte dos próprios bispos em saber quem são estes bispos que ocultaram casos?
Total, total e não pode haver dúvidas, nem hesitações. Se alguém sabe que um bispo ou um responsável de uma congregação ou de um instituto ou um eclesiástico de circunstância qualquer encobriu, ocultou, facilitou ou teve um posicionamento proativo num crime desta gravidade deve denunciá-lo.
Não tem conhecimento nenhum destes casos?
Não, não. É para mim uma obrigação moral e uma obrigação de cidadão agir imediatamente se soubesse de uma situação dessas. Não conheço. Conheço os bispos, os meus colegas, os meus irmãos e não estou a ver que isso possa ser possível. Não estou agora na fase negacionista, mas não estou a ver que seja possível. Se alguém sabe e se há uma circunstância comprovada dessa situação, deve ser revelada e devem ser tomadas as medidas.
No dia 3 de março, quando ouviu a conferência de imprensa de D. José Ornelas, o que lhe passou pela cabeça? Aquelas palavras traduziam fielmente o que tinha sido a reunião dos bispos ou, por outro lado, era uma tentativa de conciliar sensibilidades muito diferentes?
Não ouvi a conferência de imprensa. Isto não é uma fuga à pergunta. Estava, aliás, a essa hora a iniciar, eventualmente, a viagem dos símbolos da Jornada Mundial da Juventude de comboio. De comboio, de Braga para Aveiro. Foi uma viagem épica, divertidíssima e, portanto, não acompanhei. A única coisa que li foi, passado algum tempo, o comunicado. E o comunicado confortou-me, o comunicado não tem muito a ver com a conferência de imprensa. Depois disso, constatei que alguma coisa correu mal. Aliás, o senhor D. José Ornelas já o disse, disse que alguma coisa correu mal, que não foi feliz na sua prestação. E só tenho pena, porque não podia ter acontecido, já temos semanas, meses e anos de preparação, de obrigação de preparação de tudo o que é trabalhar, viver e tratar desta temática do relatório. Portanto, foi uma hora má, foi uma tarde péssima que teve, infelizmente, muitos danos colaterais naquilo que foi um caminho feito e construído e de mútua confiança. Nessa tarde, as reações foram muito, muito negativas em relação àquilo que se passou nessa conferência de imprensa e desejamos que possamos retomar o caminho com que estávamos todos confiantes.
A insistência na ideia de que a Igreja só recebeu uma lista de nomes não acaba por ser um descrédito para a comissão? Afinal, foi uma lista de nomes compilada por esta comissão independente e ainda há poucos dias ouvimos Laborinho Lúcio dizer ao Observador que funciona como um apenso do relatório.
Não queria acrescentar ruído ao caminho que estamos a fazer. Nós temos de agradecer muito ao dr. Pedro Strecht e a toda a equipa da comissão independente o trabalho que fez. Temos de agradecer ao Grupo de Investigação Histórica, do Dr. Francisco Mendes, que em menos tempo — em razão das etapas da Via-Sacra do acesso aos arquivos — aconteceu. Temos de agradecer, ponto. Podemos, daqui a algum tempo, refletir sobre o que podia ser diferente, o que se podia ter combinado para que as coisas fossem diferentes, o que se podia ter articulado. Podemos fazer isso tudo. Mas isso é criar nuvem à volta do que é essencial.
Mas nem estava a perguntar-lhe se é só uma lista. Estava a perguntar-lhe se todo esse ruído que foi criado — e foi criado com muitas declarações públicas por parte da hierarquia da Igreja —, em si, e na sua opinião, acabou por se transformar num certo descrédito para esta comissão independente, cuja criação partiu da própria Igreja.
Não creio. Tudo isso só ajuda a criar um nevoeiro e a desviar o olhar do que é essencial.
As declarações que foram proferidas?
Não digo as declarações. Era da comissão diocesana de Lisboa. Vamos ser factuais: o que é que nos foi entregue? Foi uma folha A4 com 24 nomes. Ponto.
Mas a comissão garante que os bispos sabiam…
…é assim, o que é que foi entregue? Vamos aos factos. Uma folha A4 com 24 nomes. Ponto. Se sabia, se não sabia, se tem dados, se podem ter acesso… Pode ser tudo. O que é que foi entregue à comissão diocesana de Lisboa, nas mãos do senhor patriarca, que recebeu no dia 3? Uma folha A4 com nomes.
E conheciam esses 24 nomes?
Essa lista de 24 nomes, eu não — não nos podemos esquecer de que estamos a falar de uma lista de 1950 até à atualidade.
Quando digo se conhecia, não é pessoalmente, mas se a diocese tinha conhecimento.
Oito nomes foram identificados como sacerdotes falecidos, quatro nomes foram identificados como desconhecidos — portanto, até ao momento não conseguimos identificar, podem ter sido sacerdotes, podem ter sido leigos. Depois, há quatro ou cinco casos que são os já conhecidos, trabalhados e mediatizados, há um leigo — concluímos que é um leigo, que tem um petit nom. Tenho dado o exemplo de “Toy”, de brinquedo ou do cantor, mas não é o que está lá, é um petit nom desse género, que pode ser qualquer pessoa, de qualquer circunstância. E, depois, temos os tais sacerdotes…
Os cinco.
Os cinco ou seis, sobre os quais, naquilo que é o arquivo histórico, naquilo que é o conhecimento direto mais recente da vida no patriarcado, não há qualquer indicação de que tenha havido, de que possa haver, de que houve ou que não houve. No dia em que recebemos a lista, na quinta-feira, ainda estava na comissão, o que é que se fez de imediato? O normal, que foi contactar um membro da comissão independente para conversarmos, para nos ajudarem a complementar a lista nominal, para se agir em conformidade. E é isso que se está a fazer, que se deve fazer sem ruído, sem stress, sem nada. É um processo que quem esperou 30 anos, 40, 20, ou 10 ou 5, também não há de ser fatal esperar 15 dias ou uma semana. O respeito pelas vítimas também tem de significar o respeito pelos tempos. A diocese A respondeu logo na terça-feira ou na segunda; a diocese A teve uma lista de dois ou três que já conhecia, que já estavam validados, portanto, não há problema nenhum. Agora, no nosso caso, eventualmente na situação do Porto — que não conheço —, que tem uma lista extensa e também, penso eu, solicitou dados à comissão, tudo isto devia ter sido feito com mais reserva, sem criar ruídos que desviam a atenção para o que não é essencial, porque o essencial foram as pessoas que abriram o seu coração, arriscaram partilhar um momento tão negro e tão doloroso da sua vida, e agora nós estamos aqui a discutir outra coisa que não tem importância.
Mas só para que fique clara esta questão: voltou a dizer que aquilo que foi factualmente entregue foi uma folha com nomes. Esta lista, esta compilação de nomes, funcionava como um apenso, um anexo do relatório, com uma possibilidade de estabelecer ligação entre os casos descritos no relatório e a lista de nomes? Ou não?
Estou a perceber. Lamento que estejamos a alimentar o assunto.
Mas é importante para a opinião pública perceber o que é que foi realmente recebido.
Com certeza, correspondo. Uma coisa que penso que poderia ter feito toda a diferença: quando vemos o relatório, há uma lista imensa que tem umas siglas, um código. Vamos imaginar que esses códigos estavam à frente de cada nome.
Aí, os bispos podiam associar os casos.
Era o mínimo. Se tivesse, à frente de cada nome, o código, ia ao relatório ver o texto e tinha ali o mínimo dos mínimos. Às vezes, as pessoas devem julgar que faço exercícios de ficar bem com todos no fim, é fazer pontes. Porque é assim: compreendo o que diz o Dr. Laborinho Lúcio. Aliás, tenho muita estima por ele, é uma pessoa e uma personalidade da vida pública, com responsabilidades que exerceu, a quem devemos todo o respeito. Nem ouso, sequer, fazer qualquer apreciação negativa sobre o que ele disse. Agora, ele está a dizer certo, mas nós também. Estamos todos a dizer certo. O Dr. Laborinho Lúcio está a dizer que esta lista é um ponto final de um percurso. E, portanto, que será normal que quem recebeu a lista tenha acompanhado todo o processo e a lista não seja nada de novo em relação ao processo que foi feito. Mas vamos ver uma coisa: a comissão esteve na diocese, acompanhou os arquivos e vamos imaginar que o senhor bispo da diocese de não sei onde acompanhou todo o processo, portanto, chega ao fim e essa lista é-lhe familiar. Mas vamos imaginar que na diocese B e C, o bispo não acompanhou o processo — acompanhou o chanceler, acompanhou o vigário-geral, acompanhou o responsável do arquivo. Portanto, chegamos ao fim e ele não tem a perceção da ligação dos nomes àquilo que foi, porventura, o processo que foi desenvolvido.
Não tem, mas o vigário ou o chanceler terão.
Sim, acredito que sim. Agora, o que posso dizer — porque não é justo fazer juízos sobre ninguém, compreendo todos os que se estão a pronunciar e temos de dar o benefício da dúvida —, está a dizer bem e também acho que as dioceses não tinham razão nenhuma para dizer o contrário. Agora, de Lisboa, que é o caso que conheço efetivamente, a lista chegou, fomos capazes, com a ajuda do vigário geral e com a ajuda de outras pessoas, fomos capazes de sinalizar e identificar as pessoas, e sobraram estes cinco, seis, sobre os quais, no arquivo ou no histórico recente da diocese, não há qualquer indicação. Nenhuma, zero.
“Lisboa pediu os dados mínimos para poder agir”
Na conferência de imprensa de D. José Ornelas insistiu-se bastante — e depois D. Manuel Clemente voltou a falar dessa ideia — que é necessário que haja provas, factos comprovados, contraditório, até para uma medida cautelar, que a ideia de que afastar do exercício público do ministério é uma medida grave que exige factos comprovados. Durante décadas, esta exigência de provas e, muitas vezes, a contraposição entre a palavra das vítimas e a palavra dos agressores foi uma maneira de silenciar as vítimas e não dar relevo aos casos. Quando se volta a esta insistência na exigência de provas, até para a aplicação de uma medida cautelar, como é que uma vítima se poderá ter sentido a ouvir um bispo dizer uma coisa destes?
Sou capelão nacional dos bombeiros portugueses, para além de escuteiro, portanto, estou sempre na posição de alerta e disponibilidade, de ir em socorro das situações. A certa altura, tivemos aqui vários diálogos e pronunciamentos sobre suspensão. Se se pode suspender, se não se pode suspender, e fomos para o patamar jurídico-canónico.
Fomos para a semântica.
Sim, vá. Em que o váde-mecum diz: não se utilize a expressão “suspensão a divinis“, “suspensão ad cautelam“, porque isso é errado, porque suspensão implica um processo e uma condenação e não sei o quê, e diga-se “proibição do exercício público do ministério” ou “afastamento”. E disse, acrescentei, que a forma mais fácil de resolver este assunto é assim: no café, isso significa suspensão. Na conversa do café, é suspensão, ponto final. No patamar jurídico-canónico, é outra coisa. Mas no café é suspensão. E nós em Lisboa já fizemos isso, pontualmente, em relação a várias situações.
Mesmo antes de D. Manuel Clemente, o próprio D. José Ornelas tinha dito que era necessário ter mais dados, inclusivamente a identidade das vítimas, etc.
O fait-divers em volta da terminologia, da semântica, também é mais uma secção de nevoeiro, de afastar aquilo que é o essencial.
O fait-divers foi criado pelo cardeal-patriarca.
O que é que peço, como cidadão, como bispo e como pessoa interessada nesta matéria, em relação a estes sacerdotes de Lisboa: a perceção que tenho da realidade do território, diocesano de Lisboa e até do país, é que tenho, nós temos, as comunidades paroquiais espalhadas pelo país, temos um sentimento de muita gratidão em relação aos sacerdotes e aos agentes da pastoral. A esmagadora maioria são homens e mulheres santos, que se esforçam todos os dias por fazer bem. E, portanto, não estamos aqui a espalhar uma suspeita sobre toda a gente.
Mas isso não é posto em causa.
Agora, o que é que peço em relação a estes sacerdotes de Lisboa, e por isso é que há estes dias: nós estamos num estado de Direito. Tudo isso, as provas e não sei que mais, é na fase própria da investigação prévia, que se deve tentar corresponder. E também temos de torcer aqui uma coisa: há aquele ditado que diz que entre marido e mulher ninguém mete a colher. Isso é um dos responsáveis dos bloqueios para resolvermos o problema da violência doméstica. E também há outro agora que se aplica aqui e que não ajuda muito, que é “in dubio pro reo“. Ora, nós estamos num patamar em que temos de torcer: “In dubio, pro vítima“. Mas isto não é fácil, porque se formos ao patamar jurídico, se formos a outros ambientes, isto é liminarmente recusado.
Mas o “in dubio pro vítima” não foi o que passou daquela conferência de imprensa. E gostava de pôr aqui um ponto que é importante nesse aspeto da proximidade com as vítimas: um dos obstáculos levantados pela Conferência Episcopal foi a questão do anonimato dos testemunhos. D. José Ornelas disse que era preciso saber mais informações, incluindo a identidade dos acusadores. Mas isto era assumido pela CEP: sabia-se que a comissão independente ia recolher testemunhos em anónimo. Isto não torna o trabalho da comissão inconsequente na prática?
O que é importante, nesta fase, para aquilo que é o meu interesse imediatamente direto em relação aos sacerdotes de Lisboa, e aquilo que nós pedimos à comissão: não quero o currículo e os dados até ao tutano de tudo o que foi dito, quem disse, como disse, e quando disse. Quero é ter o mínimo dos mínimos para poder chamar o sacerdote e poder dizer: “Meu caro irmão, o teu nome está nesta lista porque alguém colocou uma denúncia, um testemunho, neste contexto, e até que tudo se esclareça, até que a verdade e a justiça se esclareçam, sejas tu o agressor, sejas tu porventura no fim até a vítima, vais ser proibido do exercício público do ministério, vais ser afastado. Isto não é nenhuma sentença nem nenhum juízo de valor sobre ti, mas é o modo como, na sociedade, na Igreja e no contexto em que estamos a viver, a transparência total tem de ser efetivada, e vai acontecer.” Agora, chamar um sacerdote e dizer: “Olhe, não sei o que é que disseram, nem quando, nem como, não sei nada, mas o seu nome está aqui e o senhor a partir de hoje está suspenso.” Estes 15 dias são essenciais para que nós tenhamos o mínimo dos mínimos para podermos agir em conformidade. Não sei como é que isto depois se concretiza. É lógico que estamos num Estado de Direito, é lógico que a presunção de inocência deve ser uma realidade, é lógico que o direito à defesa, tudo isso tem de ser garantido. Mas estamos perante um crime que tem muitas fragilidades de prova, e temos de ter todos consciência disso.
Então, para concretizar: não foram pedidos muitos dados, mas a identificação das vítimas é pedida?
Penso que a identificação das vítimas não deve ser dada aos possíveis abusadores.
E às dioceses?
Não sou erudito das leis e posso estar a dizer baboseiras. Nesta fase, naquilo que significa tomar uma decisão de afastamento do exercício público do ministério, não é essencial. Absolutamente, não é essencial.
Lisboa não pediu?
Lisboa não pediu nada em especial. Lisboa pediu os dados mínimos para poder agir.
As palavras de D. Manuel Clemente foram muito criticadas, exatamente por ter entrado numa lógica de legalismo de que já falámos aqui. Acha que se deveria ter entrado por esta lógica, neste caminho que está a ser feito no pós-relatório?
Acredito, conhecendo o senhor D. Manuel como conheço, que ele tenta ser sempre muito preciso, muito objetivo, muito sistemático e muito académico. Não tenho essa capacidade, nem tenho conhecimento direto nem tenho a prática dessas circunstâncias. Compreendo o que ele disse e sou capaz de o contextualizar. Aceito que o grande auditório tenha dificuldades em entender e acompanhar esse patamar ou esse posicionamento. Agora, aquilo que posso testemunhar a quem nos ouve e quem nos lê é que, da parte do senhor D. Manuel, desde a criação da comissão de Lisboa, em abril de 2019, até hoje, é que a sua disponibilidade, o seu empenho e o trabalho que fazemos em conjunto, naquilo que significa a comissão diocesana e naquilo que significa as decisões, ele tem sido exemplar.
Como vê, então, por exemplo, a atitude dos bispos de Angra e Évora, que foram os primeiros dois a anunciar as suas decisões, que afastaram preventivamente os nomes que tinham nas listas justamente enquanto averiguam, enquanto recolhem informação?
Eles fizeram aquilo que nós faríamos também se tivéssemos os dados mínimos, que eles já tinham.
Portanto, justifica essa diferença com as dioceses que já tinham dados.
Se, em relação a este número de sacerdotes de que estamos a falar em Lisboa, estivessem referenciados nos arquivos, ou tivéssemos conhecimento de situações, não havia aqui necessidade nenhuma de informação complementar para agir em conformidade imediatamente. A questão é que não existe. Se nós formos aos comunicados das dioceses, até entendemos isso em relação a algumas, que dizem que já era do conhecimento, etc. Temos de criar um espaço de tempo aceitável, naquilo que é a relação da comissão independente com cada uma das comissões diocesanas, para que se esclareça o que há a esclarecer, se reforce aquilo que são as informações partilhadas e cada um aja em conformidade. Não pode é ficar no ar a ideia de que alguma diocese ou algum bispo não vão agir como devem agir porque não lhes apetece ou porque não concordam. A única coisa que está a causar algum intervalo é o acesso a informações mínimas para agir.
Disse recentemente que o patriarcado de Lisboa nem sequer contactou os padres visados antes deste pedido adicional de informações. Porquê? Os próprios até poderiam, livremente, querer afastar-se enquanto decorre a investigação ou até admitir os factos, como, aliás, aconteceu em Viana do Castelo. É percetível que possam precisar de mais informações, mas porque não contactar logo os padres?
Aceito essa leitura, mas não concordo. Aceito quem pensa diferente. Chamar um sacerdote e dizer-lhe “o senhor está na lista”, sem termos qualquer informação suplementar, é uma violência e é qualquer coisa muito grave, sobretudo se a pessoa não tiver nada a ver com o assunto objetivamente, se for um dano colateral de uma referência, de um equívoco ou de uma coisa qualquer. Aceito quem pensa diferente e considero positivamente quem pensa diferente, mas o nosso posicionamento e o nosso pensamento é que mal tenhamos os dados mínimos contactamos e falamos com cada um dos sacerdotes, por respeito a todas as partes.
Para clarificar, tenho de retirar do que diz que discorda de Laborinho Lúcio quando ele diz que todos os bispos portugueses tinham dados suficientes para tomar medidas preventivas já numa primeira fase.
Não concordo nem discordo.
Mas está a dizer o oposto.
Só posso responder sempre em relação a Lisboa. Em relação a estes sacerdotes sobre os quais pedimos dados, o patriarcado de Lisboa, o senhor patriarca e eu, não temos dados que nos permitam ter tomado uma decisão antes daquela que vamos tomar após as informações. Faltámos a uma reunião? Faltámos a um momento em que isso foi partilhado? Pode ser que sim. Mas não temos informação que nos permita, em relação a esses sacerdotes, tomar uma decisão com o mínimo de segurança e de conforto. Não temos. Não é culpa do Dr. Laborinho Lúcio, não é culpa da comissão independente, não é culpa absolutamente de ninguém. E, se for culpa, é nossa, porque porventura escapou-nos alguma parte do processo.
Recebendo essa informação, confirmando-se suspeitas de crimes de abuso em relação aos nomes que constam e sobre os quais têm agora dúvidas, o patriarcado está disponível para este afastamento preventivo?
Imediato.
“A formação dos seminários não pode ser uma caixinha fechada com sete chaves”
A parte final do relatório tem várias recomendações à Igreja e um dos aspetos mencionados com maior clareza é o de que a Igreja ainda insiste muito numa certa linguagem que não coloca a vítima no centro. Por exemplo, ao continuar a classificar, até no váde-mecum que citou, os abusos de crianças como um “pecado externo contra o sexto mandamento do decálogo cometido por um clérigo contra um menor”. O sexto mandamento é “não cometerás adultério” e o Catecismo, nesse capítulo, ainda faz uma outra coisa como incluir no mesmo saco das “ofensas à castidade” coisas tão diferentes como uma violação e o sexo fora do casamento ou a masturbação. Esta forma de diabolizar permanentemente a sexualidade humana, na sua opinião, não contribui para que, ao longo da história, a Igreja tenha ocultado crimes sexuais e até, em certos momentos, culpabilizado as vítimas, forçadas ao silêncio como se fossem cúmplices de um pecado?
Creio, acredito e confio totalmente naquilo que é o caminho que o nosso querido Papa Francisco nos está a ajudar a percorrer. Mesmo nesta secção, neste assunto, até no contexto que acabou de descrever e com a gravidade que isso significa, acredito muito que vamos fazer caminho. Aliás, costumo dizer que para nós, Igreja, há três temas que são sempre muito… A sexualidade, o dinheiro e o poder. São três alicerces, três colunas sempre muito, enfim. Acredito que nós vamos fazer um caminho e o Papa Francisco é o nosso guia, é a nossa referência. Estamos e vamos fazer um caminho. Espero podermos estar aqui os três, daqui dez anos ou 20, já um bocadinho gastos, mas felizes por constatarmos que as coisas fizeram caminho e foram ultrapassadas, foram resolvidas, que não repetimos estes crimes, que não existem vítimas fruto destes crimes, e que foi feito o que devia ter sido feito.
Pode ser preciso, por exemplo, mudar o Catecismo neste aspeto?
Confio totalmente. Aliás, já falou aí do cardeal O’Malley, há muita gente a nível da Santa Sé e do Vaticano, o padre [Hans] Zollner, há muita gente a trabalhar. Acredito que em cada momento, em cada circunstância no futuro próximo, sejamos brindados e presenteados com isso.
A Conferência Episcopal também já prometeu, neste âmbito, que é necessário rever o processo de formação dos padres. Creio que em abril haverá novidades sobre o assunto. O que é que nos pode contar sobre isso? A formação vai incluir mais atenção à formação sexual, à sexualidade humana e dos padres?
Agora nem é a questão de Lisboa: só posso responder em relação à experiência que tive entre 1995 e 2001, no Porto. Nestes 20 anos que passaram, vou dizendo, vamos dizendo muitas vezes que há muitas áreas em que é preciso um upgrade, é preciso uma atualização, um aggiornamento [termo italiano para “atualização”, usado no contexto da Igreja Católica para o pensamento sobre os princípios cristãos no mundo contemporâneo]. Uma das questões é a comunicação. Estamos fartos de dizer que é fundamental que os sacerdotes, que os seminaristas, que os jovens que se preparam para uma vida consagrada — eles e elas — tenham uma especial preparação na área da comunicação e nestas áreas, seja da sexualidade, seja da relação uns com os outros, seja dos afetos. Tudo o que for possível fazer para termos pessoas cada vez mais felizes, equilibradas, bem consigo e na relação com os outros, tudo o que nós pudermos fazer, temos de o fazer. O esquema, a formação dos seminários não pode ser entendida como uma caixinha fechada com sete chaves, alheia àquilo que é a realidade do mundo, a realidade da sociedade, sem colocar em causa o que é o essencial da formação.
Mas muitas vezes é, na medida em que um seminarista passa seis, sete anos no seminário, a viver numa comunidade com as suas próprias regras, organizada, para depois, muitas vezes, sair para uma paróquia onde vai viver sozinho. Essa questão tem sido muito colocada.
Uma grande alteração que aconteceu, não me lembro se foi nos anos 80: as aulas do seminário eram no seminário. A certa altura, Porto, Lisboa e as principais dioceses passaram a formação para a Faculdade de Teologia. Essa mudança já foi uma coisa muito significativa. Passar das 8h30 às 17h no contexto da universidade, no convívio total, livre, com jovens, com realidades, com experiências, com vidas, essa mudança foi significativa e muito importante para a aprendizagem e o ciclo formativo. Depois, há os seminários das congregações e dos institutos, que são uma realidade totalmente diferente. Penso que temos vindo a caminhar, todas estas realidades têm vindo a fazer o seu caminho. Agora, a Santa Sé até recomenda a Ratio Fundamentalis dos seminários, e portanto as coisas estão a evoluir, estão a ser equacionadas. Só temos a agradecer que se possa evoluir, que se possa melhorar, de maneira a que um sacerdote, um religioso, uma religiosa, um consagrado ou uma consagrada, quando inicia o exercício público do ministério seja feliz, seja uma pessoa equilibrada e possa corresponder aos desafios que a sociedade lhe vai colocar.
A comissão também recomendou uma revisão da imposição do sigilo de confissão para os casos de abuso de menores. Acha que isto alguma vez seria possível? Ou partilha da opinião, por exemplo, do arcebispo de Melbourne, que diz que era preferível ir para a prisão do que quebrar o segredo da confissão?
Não vejo que seja, sequer, equacionável essa questão. Aliás, também me coloco na fila dos mártires, se for necessário. Não estou disponível para revelar a quem quer que seja aquilo que me foi dito em confissão. Não estou disponível. E ao longo dos séculos a Igreja teve mártires, está aqui um disponível se for necessário.
Mesmo que seja um crime de abuso sexual?
Aliás, já vi filmes em que se vive a tensão e o sofrimento disso. Portanto, em relação ao segredo da confissão, ponto final, na minha opinião. Agora, há outra questão, que às vezes penso: não sei se, a partir do momento que eventualmente fosse equacionável essa situação, se o pedófilo se ia confessar disso.
Portanto, punha em causa a eficácia do sacramento?
Vou-me confessar e sei que ele pode ir dizer… Não sei se isso tinha causa-efeito. Não sei. Vi um filme em que é muito bem materializada essa tensão e esse sofrimento — e não gostaria de passar por ele.
Imagino que esteja também a acompanhar o debate em torno da divulgação pública do relatório e, por isso, também algumas reações daqueles mais céticos dentro da Igreja. Tem havido vários — membros do clero, inclusivamente — a pôr em causa a credibilidade do relatório, a afirmar que aquele número é falso, etc. O que é que lhe parecem os argumentos destes elementos, associados a alas mais conservadoras ou tradicionalistas da Igreja, que recusam a credibilidade do relatório, desde a afirmação de que os dados não têm valor científico até à mais radical proposta de que foram feministas anticlericais a preencher os inquéritos? Que resposta é que a Igreja, a partir dos bispos, deve dar a estes argumentos?
Um suspiro… Nós tomámos uma decisão, em novembro de 2021, arrojada, importante, penso que todos com a consciência do que iríamos viver. Não quero que a Igreja seja alvo de méritos, mas foi uma decisão arrojada e importante que foi tomada. Houve um grupo de trabalho que trabalhou empenhadamente, com falhas, dificuldades e problemas, algumas da nossa responsabilidade, outras porventura não. Daqui a um ano ou dois, podemos discutir o que podia ter sido diferente, mas isso é só poeira. Agora, este relatório é fundamental para construirmos o edifício novo.
E é credível?
É fundamental, é credível, só temos de agradecer. Não adianta nada estarmos a discutir o que não tem discussão. Podíamos fazer outro relatório. Se me disser assim: “Ah, o 4.800 e não sei quantos.” Não sei se isto ajuda ou se é alimentar, mas digo sempre assim: “Ó meus amigos, quando vou ler, quando diz que estão aí 20, ou que está também o colégio todo.” Aquilo não me dá segurança nenhuma.
A comissão diz que essas estimativas são conservadoras e que poderíamos estar a falar de muito mais.
Exatamente! Para mim o que é importante é que o relatório, para quem dúvidas tivesse, veio-nos dizer, com a generosa heroicidade de homens e mulheres que tiveram coragem para o fazer… Podemos dizer que alguns são falsos, podemos dizer isso tudo, mas não interessa nada, não é o importante. O importante é que, para quem dúvidas tivesse, isto aconteceu, isto magoou profundamente vidas, destruiu vidas e nós temos aqui um documento indispensável para construir um edifício novo de verdade, de justiça e de tolerância zero, como o Papa nos pede, a Igreja nos exige e o mundo também nos pede e exige. Não adianta nada estar, ninguém, absolutamente ninguém, com exegeses, com avaliações. Este não é o tempo. Hoje, o tempo não é das avaliações, das exegeses, dos juízos, “podia ter sido assim”, “podia ter sido assado”, “não são 4.815, são 2.390, não não, são 10.580, não não”. Isto não interessa nada.
São muitos e são demais.
São muitos, são demais, exatamente. A resposta é: o relatório, fomos nós que o pedimos, agradecemos e ele é a base da construção de um edifício novo. Ponto final.
“Temos de travar esta luta para que a tolerância zero seja efetiva”
Um edifício que conta também com comissões diocesanas. Está de saída da comissão do patriarcado de Lisboa. Que balanço faz deste trabalho ao longo de quatro anos? E tem esperança de que agora, só com leigos, a comissão possa ser mais eficaz, nomeadamente no que tem sido o ponto questionado por muito, a confiança que as vítimas têm nestas comissões?
Eu próprio, durante estes quatro anos, pontualmente, fui refletindo e até conversando com outros colegas sobre a bondade, da oportunidade, da eficácia da minha presença e da presença de eclesiásticos nas comissões. Temos de ser muito gratos a estes homens e a estas mulheres que constituem as comissões diocesanas. Aliás, a certa altura, sentia algum desconforto pelo nome da comissão independente; em contraste, parece que as outras não são. Podemos fazer todos os juízos sobre as comissões diocesanas, mas que não são independentes, não. Parece que foi aqui um contraste.
Na medida em que estão dentro da instituição onde aconteceram os abusos.
Sim, sim. Mas, primeiro, agradecer muito. Estive num encontro em Fátima com todos: profissionais qualificados e reconhecidos da sociedade, de cada uma das dioceses, que fazem um trabalho pro bono magnífico. Depois, a presença ou a ausência. Acredito que a ausência dos clérigos possa facilitar o contacto. Agora, a experiência que tive em Lisboa é contrária, mas não é a prova. Nos pedidos de apresentação de denúncia presencial em Lisboa, fizemos sempre o mesmo: respondemos à pessoa que tínhamos todo gosto em acolhê-la e podia ser acolhida por um bispo, por um padre, por um leigo ou por uma leiga. Todos escolheram o bispo.
Porque é que acha que isso aconteceu? Queriam chegar mais diretamente ao topo da hierarquia?
Não sei dizer, porque também veio contra o que era o meu pensamento. Confesso que não esperava que a escolha fosse sobre a minha pessoa. Agradeço a confiança e tive a oportunidade de um conhecimento direto, na primeira pessoa, de vivência e de partilha, que também me marcou e também me alicerçou para esta luta que temos de travar, contra tudo e contra todos porventura, para que a tolerância zero seja efetiva. A concretização, da parte das dioceses, em relação à recomendação que a Conferência Episcopal fez está a acontecer. Até antes disso o meu irmão Nuno Almeida, [bispo auxiliar] de Braga, saiu. Portanto, isto vai acontecer. Se isto reforçar a confiança que é necessária junto das pessoas para virem ao encontro das comissões diocesanas, excelente. Aliás, nós em Lisboa recomendámos que possam fazer isso junto da comissão diocesana e junto da APAV, naquele protocolo que fizemos.
“Tudo vamos fazer para que a JMJ não passe ao largo desta circunstância”
Está aqui também, naturalmente, na qualidade de grande responsável, da parte da Igreja, pela organização da Jornada Mundial da Juventude, em agosto deste ano. O que é que vai ser feito na JMJ para integrar este tema? O Papa Francisco vai encontrar-se com algumas vítimas de abuso portuguesas? Já recebeu algum contacto nesse sentido?
O Santo Padre, em todas as suas visitas de estado ou pastorais, no contexto das jornadas e noutros, tem as suas prioridades, a sua agenda, e a questão dos abusos de menores e pessoas vulneráveis tem feito parte disso. Portanto, acredito e estou confiante de que também acontecerá em Portugal. Quando, como, quem, não é o tempo de se falar, nem é o contexto, mas acredito que isso se vai concretizar.
Mas está a ser preparado algo nesse sentido?
Acredito que se vai concretizar.
Laborinho Lúcio, na entrevista que deu ao Observador esta semana, diz que a Igreja foi infeliz em algumas declarações dos bispos, mas ainda tem, na JMJ, a oportunidade de dar o exemplo sobre o modo como se tratam estas questões. Por exemplo, dá até uma recomendação: que o Parque do Perdão, onde vão ser instalados os confessionários, não seja apenas um lugar em que a Igreja tem o poder de dispensar o perdão, mas em que a própria Igreja também pede perdão. Vai ser feito algo nesse sentido?
Vai. O Parque do Perdão não é para os jovens se confessarem em exclusivo. O Parque do Perdão é para eu me confessar, para os bispos se confessarem, para os cardeais se confessarem, para o Papa se confessar, para qualquer pessoa…
E para a instituição também se confessar?
A instituição não se confessa, não é? A instituição propriamente dita não se confessa. Mas todos nós, com exagero do todos, somos sensíveis àquilo que é o acontecimento da JMJ. E não imaginam aquilo que têm sido estes meses e estes anos, tantos problemas e dificuldades da sociedade, nas várias áreas, que nos solicitam que a jornada possa sinalizar, pontualizar tantas coisas. Este dossiê é óbvio que está no coração da pessoa mais importante, que é do Papa — ainda mais, está no coração de Cristo vivo, que é quem me motiva todos os dias para me levantar e ir à luta —, e acredito que da parte do Papa, da parte da organização, da parte de todos os envolvidos, tudo vamos fazer dentro do que seja possível para que a JMJ não passe ao largo desta circunstância. Seja o Parque do Perdão, seja outra coisa qualquer, não deixará de ser uma marca importante no respeito pela vivência sofredora de homens e mulheres que infelizmente tiveram essa vida.
Toda a questão em torno do palco parece já estar resolvida ou, pelo menos, houve alguma acalmia com a redução dos custos. Na sua opinião, toda esta polémica acaba por manchar também a imagem da JMJ em Portugal?
Nós podemos ter sempre um chavão, a que já me vou habituando e que faz parte da Via-Sacra, que tudo mancha, tudo estraga, tudo põe em causa. Da minha parte, só posso pedir desculpa e perdão daquilo que são as minhas fragilidades e culpas diretas nos processos. Mas, tirando isso, as coisas continuam, os processos estão em andamento e tento — conseguimos ou não conseguimos — cativar as pessoas para a grandeza do evento, para a dimensão do evento. Se formos ao Parque Tejo, onde nasceu o principal problema, estamos a falar de um espaço de 100 campos de futebol, três ou quatro quilómetros de extensão, mais de um milhão de pessoas nesse local e de logísticas impensáveis. Nunca aconteceu em Portugal e nem acredito que volte a acontecer uma coisa do género. Vamos ter 10% da população portuguesa a mais, durante uma semana, num certo espaço geográfico — com tudo o que isso implica.
Incluindo custos.
Custos, investimento, economia. Ainda agora vinha para cá e vinha a ouvir problemas na restauração, da liquidez. Nós vamos ter dezenas de milhões de euros de alimentação, que vão significar injeção de capital, de dinheiro, na economia dos cafés, dos restaurantes, dos snack-bars e todos os agentes de restauração de Lisboa, de Santarém e de Setúbal nesses 15 dias. E no país inteiro, porque na semana anterior à volta de 300 mil jovens estão espalhados pelo país.
Mas aqui houve uma questão concreta, um único palco, uma única estrutura onde se iam gastar mais de 5 milhões de euros. Chegou, na altura, a dizer que só soube do custo do altar quando leu a notícia do Observador. Acha compreensível para o público em geral que o bispo responsável pelo evento não soubesse do custo daquela estrutura?
Se consideram que é importante voltarmos ao Adão e Eva, volto ao Adão e Eva, se isso não significar repor a neblina, para voltarmos a fazer o percurso outra vez. A Fundação JMJ, o Estado português no que significa o Governo de Portugal e as autarquias, neste caso mais direto de Lisboa e Loures, estabelecemos um acordo, um memorando, em que cada entidade ficou com responsabilidades. Dentro dessas responsabilidades, há a questão do Parque Tejo-Trancão. A escolha do local é uma escolha arrojada. Foi uma escolha política, depois pastoral, e é muito arrojada. Porquê? Porque estamos a dizer que vamos fazer a JMJ em cima de um aterro sanitário e que vamos prolongar a JMJ para um espaço desclassificado, onde há um terminal de contentores e onde há um espaço abandonado, de limite, com o rio Tejo e o rio Trancão, do concelho de Lisboa e do concelho de Loures. O resto que sobra da intervenção do Parque das Nações, da Expo 98. Desde o início, todos sabemos que esta escolha tem custos suplementares de reabilitação, de preparação, para a JMJ naqueles dias, mas depois para o parque que vai nascer imediatamente a seguir, um parque verde que vai duplicar o espaço verde do Parque das Nações.
Essa parte está esclarecida. A questão normal é se era normal o bispo não saber o valor.
Vou chegar lá. Cada entidade ficou com as suas responsabilidades. Naquilo que significa o desenvolvimento das estruturas — e estamos a falar do palco —, a Fundação, o Comité Organizador Local, acompanhou, primeiro com a equipa do arquiteto Manuel Salgado, na SRU, o processo de desenvolvimento daquilo que seria a estrutura. Nós, dando os nossos inputs, que gostaríamos que o palco possibilitasse fazer isto e aquilo, e ao mesmo tempo as engenharias e as arquiteturas foram trabalhando naquilo que é um dos problemas do espaço: o palco tem de subir o mais alto possível para ser visível o mais longe possível. E ficou uma estrutura a nove metros de altura, para ser possível ser visualizado o mais longe possível. A certa altura, acontecem as eleições autárquicas e, em resultado das eleições autárquicas, há uma mudança de responsáveis da SRU. Esta mudança de responsáveis da SRU também levou à mudança dos técnicos com quem trabalhávamos estas estruturas. O COL foi acompanhando o desenho e o redesenho — aliás, houve uma nova proposta, um novo desenho —, e quando as coisas ficaram fechadas, e aqui faço o mea culpa, nós desligámo-nos do processo.
Deixaram de acompanhar?
Está fechado, a SRU vai fazer o caderno de encargos, vai fazer a consulta, é uma responsabilidade da instituição, e desligámo-nos do assunto. Isto faz sentido? Agora eu digo que não. Devíamos ter acompanhado. Mas não há que se lhe faça. Não acompanhámos. Era uma responsabilidade da instituição. Como em relação a tudo o que está a acontecer, adjudicações de Loures, adjudicações da SRU, adjudicações da câmara de Lisboa, adjudicações do grupo de projeto do Governo, agora temos tentado acompanhar mais de perto, mas não é responsabilidade nossa. Nós temos apenas de pedir que partilhem connosco os processos, para irmos acompanhando, para que depois não possa dizer que não sabia.
Aprenderam a lição e agora estão mais atentos a esses processos de contratação?
Tenho uma coisa que costumo dizer, mesmo que depois fique com orelhas de burro no fim. À primeira, é humano falhar. À segunda, já é um bocadinho desconfortável. E, à terceira, orelhas de burro, virado para a parede.
Falou já de como este processo começou ainda com Manuel Salgado e das eleições autárquicas, que tiveram como desfecho a alteração de rumo na câmara de Lisboa. Em algum momento se sentiu entalado numa luta política em torno dos custos, já nesta fase em que passa a saber do valor?
Aeito que a noite eleitoral, que provocou a mudança dos protagonistas, nos tenha colocado, em relação a alguns dossiês e assuntos, no ponto zero. Ou seja, aquilo que tinha sido, de 2019 até 2021, o trabalho conjunto com o Dr. Fernando Medina e com o Dr. Bernardino Soares, em Loures, significou a mudança de protagonistas. O meu medo, o meu receio, o meu desconforto nunca foi com os protagonistas — os protagonistas é uma questão de nos conhecermos e, depois, aprendermos a caminhar juntos. Aqui, a minha preocupação maior sempre foi a mudança das equipas, dos corpos intermédios. E aí, sim, sentimos alguma dificuldade. Não de obstáculo de ninguém em especial, mas da mudança efetiva das equipas. Nós tivemos, da parte de Lisboa e da parte de Loures, uma mudança quase total dos responsáveis diretos das estruturas, das empresas municipais, e isso gerou algum hiato, alguma dificuldade, que está ultrapassada e tudo está a correr da melhor maneira. Mas não deixou de gerar, como é normal, alguma gaguez.
Ainda sobre a JMJ, há alguns relatos de que há um atraso ainda significativo do plano de mobilidade, que é uma peça fundamental para a organização, para os transportes e até para a programação dos eventos e das dormidas, que está a provocar atraso em toda a organização do evento. Neste momento, como está este processo? Já têm o plano de mobilidade, já podem começar a concretizar a programação da JMJ?
Não concordo com o alarmismo de que ainda não temos ou de que está atrasado. Aliás, gostava de partilhar aqui com os nossos ouvintes e leitores o seguinte: há grupos de trabalho que se reúnem semanalmente há muitos anos e que trabalham a saúde, os transportes, a segurança — já aprendi o safety e o security, as emergências, todas as áreas. E só tenho de agradecer muito a todos os intervenientes. Aliás, às vezes estamos em registos de alguma maledicência dos serviços públicos, dos trabalhadores públicos, isto, aquilo e aqueloutro. Só tenho de dizer bem de todos os intervenientes. Todos, ao longo destes anos, magníficos: forças armadas, forças de segurança, Serviço Nacional de Saúde, todos. A questão do plano de mobilidade/acessibilidades é, de facto, uma peça estruturante. Foi adjudicada pelo grupo de projeto no final do ano 2022. Nesta semana que passou, estive presente na última reunião com a empresa que está a fazer o plano de mobilidade, em que estavam presentes várias pessoas importantes nas instituições, e as coisas estão a acontecer. Se estivesse mais cedo, se pudesse ser mais rápido, se, se, se, isso é tudo verdade que sim. Agora, está alguma coisa fora do calendário, totalmente grave? Isso não é verdade. Ajudava, dormia melhor, não tinha tantas preocupações? Certamente que sim.
Até porque houve um ano adicional que foi dado pela pandemia.
Quando fizer as memórias — que não vou fazer, não gosto de fazer memórias, é sempre injusto porque falta as outras pessoas pronunciarem-se —, este ano a mais não é efetivamente um ano a mais. Infelizmente, nós fomos todos chamados a outras prioridades, a outras preocupações, e este prolongar não foi um tempo a mais. Até, em algumas coisas, foi uma pausa e foi um desgaste para muitos dos nossos colaboradores.