Lapas, Brisa Maracujá. Pausa para o almoço. Lapas, Brisa Maracujá. Pausa para o jantar. Por culpa dos ventos, os aviões desviam do Funchal e é-me impossível sair da Madeira. Passa um dia, dois, três, seis. Onze. No total, onze. Como uma equipa de futebol. Onze dias retido na ilha. Dá tempo de sobra para centenas de lapas e dezenas de brisas. Vá, admito, e algumas espetadas. Nos entretantos, vejo um jogo do Marítimo e falho dois do Nacional, ambos adiados por mau tempo. O tal que faz os aviões desviarem-se para as Ilhas Canárias, a 487 quilómetros de distância. E agora? Ora essa, lapas e Brisa Maracujá. Sem parar. De repente, uma lapa assim-assim devolve-me ao planeta Terra e lembro-me do Amir Abedzadeh. Hum? Amir, então suplente do brasileiro Charles, agora titular da baliza do Marítimo.
Em circunstâncias normais, é uma complicação XXL para chegar a qualquer jogador. Porque o departamento de comunicação é uma nódoa em matéria de comunicação. O que é um contra-senso, obviamente. Quando alguém nos dá o telefone de um responsável ou vice-responsável ou co-responsável, o whatsapp entra e das duas, uma: ou deixam-nos pendurados por horas, dias até, ou respondem na hora ao primeiro contacto e depois chapéu. Comunicação, o tanas. Tudo menos isso, é um silêncio confragedor. Inexplicável. Válido para muitos clubes da 1.ª divisão e a própria federação. À exceção do Marítimo, honra lhe seja feita. E Honra com agá maiúsculo. Ludgero Castro, figura incontornável do maritismo, arranja-nos o telefone de dois assessores de comunicação do Marítimo. Envio mensagem ao primeiro da lista, Eduardo Azevedo, e há comunicação. Segue-se a promessa de uma resposta em menos de 24 horas e, espante-se, aí está. O Amir está disponível para falar no dia tal, às xis horas, no complexo do Marítimo. Assim mesmo, descomplicado. Co-mu-ni-ca-ção. Simples e ao primeiro toque. Tão bom. Tão fácil. Quando chego ao complexo, a cinco minutos da hora combinada, Amir já está sentado numa das mesas de café, junto à janela, a olhar para um dos relvados à sua direita.
Heyyyyy, Amir? [em português nos entendemos]
Rui?
Ya, tudo bem? [a partir daqui é em estrangeiro: entre inglês e persa, escolho o bloco A]
Tudo, e tu? Queres um café?
Aceito.
Deixa-te estar, senta-te na boa e eu pago-te o café [entra o assessor Eduardo Azevedo em ação: ‘ai é assim: a mim, nunca me pagaste um café e ao Rui é à primeira tentativa? Amir sai de cena a rir-se sem parar e vai ser assim o tempo todo].
Só soube há pouco que o teu pai é um dos heróis do Irão no Mundial-98.
[Amir esboça um riso do tamanho do mundo] Pois é, toda a gente me fala disso.
Tinhas quantos anos em 1998?
Cinco, só cinco.
E lembras-te?
Lembro-me de ter gente em casa para ver os jogos, lembro-me da agitação. Agora lembrar-me lembrar-me dos detalhes, de como foram os jogos, de como defendeu o meu pai, dos golos, isso é que não. As pessoas é que me falam dele, do histórico jogo do play-off na Austrália, em que estivemos a perder por 2-0 e conseguimos o empate 2-2, essencial para nos qualificarmos para o Mundial de França.
E depois?
O Irão ganhou um dos jogos do grupo.
Aaaaah, pois foi. Aos EUA, certo?
Dois-um. E aí, mais uma vez, o meu pai fez uma exibição fantástica. Toda a gente me fala dele, é incrível.
E tu, como é que reages?
Com orgulho. Ter um pai assim é uma constante fonte de inspiração. Devo-lhe a paixão do futebol.
Qual é a tua memória mais antiga do teu pai?
Não tenho grandes memórias sobre o meu pai, só flashbacks. Lembro-me de ir vê-lo a treinar. Devia ter uns seis/sete anos. Ele levava-me aos treinos e ficava atrás da baliza dele a tentar imitá-lo, ahahahahah.
Ele defendia as bolas, tu defendias o ar, é isso?
Ya, something like that, ahahahahahah.
E a tua mãe? Dois guarda-redes em casa é muita fruta.
Ahahahahah, ela queixa-se imenso. Quando o meu pai vinha dos jogos, ela é que fazia-lhe os curativos nas pernas. Depois, passou a fazer os curativos para mim e ela ‘oh no, not again‘. Ahahahah, hard life.
Por falar em hard life, és um self made man: Tottenham (Inglaterra), LA Blues (EUA)
Noventa por cento dos guarda-redes iranianos olham para o meu pai como um modelo e eu próprio faço parte dessa percentagem, mas também quero seguir o meu caminho. Daí o interesse em fazer carreira fora do Irão. Quando a oportunidade aparece, tens de agarrá-la. Foi o que fiz. Nos EUA, por exemplo, tive de esperar uns quatro/cinco meses para fazer 18 anos e assinar um contrato profissional. Só então é que pude jogar e, curiosidade, era o mais jovem da liga. Foi um momento importante para mim, porque não é qualquer equipa que aposta num guarda-redes de 18 anos. Mas lá está, eles apostaram em mim por causa do apelido. A pressão é imensa, eu só quero dar conta da situação com extra work.
Depois voltaste ao Irão?
Ya, assinei pelo Persopolis.
E então?
Encontrei uma série de amigos do meu pai, heróis desse Mundial-98.
Como por exemplo?
Madhvadikia, autor do decisivo 2-1 sobre os EUA. Era o seu último ano de jogador e foi meu companheiro de quarto. O Karimi, outro jogador importante dessa geração, também fazia parte do plantel. Tal como o Bagheri. E o treinador era o Ali Daei.
Uauu, isso é muito jogo.
Yeah, ahahahahah. Conhecia-os desde pequeno e, agora, estava ali a jogar com eles. Uma honra. Até porque eles ensinaram-me tanta coisa no dia a dia, sem falar no apoio constante. Quando assinei pelo Persopolis, lembro-me que eles escreveram-me coisas muito bonitas no Instagram a dar mais força ainda.
Porquê Portugal em 2016?
Sentia uma necessidade de crescer, o meu jogo precisava de evoluir e sempre vi a Europa como um destino essencial. Já pensava assim quando jogava nos EUA e a ideia cresceu mais ainda no regresso ao Irão. Porque não jogava no Persopolis e, depois, senti que não estava a aprender nada no Rah Ahan. Passei para mim mesmo que seria uma boa oportunidade para recomeçar e aceitei a proposta do Barreirense.
Porquê Barreirense?
Bento, Manuel Bento. Conheces?
Claaaaro.
Conheço-o de ouvir falar através dos tempos e sei que ele começou no Barreirense. Assinou depois pelo Benfica e fez uma carreira ímpar, reconhecido internacionalmente. Pensei ‘porque não eu?’ Fui como que empurrado para o Barreiro. Também recebi propostas de outros clubes do mesmo campeonato, que não quero dizer porque não vale a pena falar disso, mas acabei por escolher o Barreirense por causa do Bento.
E gostaste do Barreirense?
Muito, aprendi muito. Sabes quando acertas numa decisão? Foi o que me aconteceu. Correu tudo bem: cheguei a um país novo, aprendi uma língua nova e assimilei outros processos.
Aprendeste o quê, de vocabulário?
Obrigado.
E mais?
Tudo bem.
E mais?
Não digo, é só palavras feias, ahahahahahahahahah.
Vivias no Barreiro ou em Lisboa?
No primeiro mês, em Lisboa. Tinha de apanhar o barco todos os dias, ahahahahah. Bela viagem, acredita. Depois, passei a viver no Barreiro.
https://www.youtube.com/watch?v=puoCrAWqtl4
Ainda te lembras do primeiro jogo pelo Barreirense?
Yeah yeah, vs Oriental. Perdemos 2-0 e defendi um penálti do lateral-esquerdo [Amir puxa pela cabeça]… Não sou muito bom com nomes, sabes? Daniel something [Daniel Almeida]. É o mesmo jogador que me marcou um penálti esta época, no desempate entre Marítimo e Cova da Piedade para a Taça de Portugal.
Um ano depois já estavas no Marítimo. O que sabias da Madeira?
Que era a terra do Cristiano Ronaldo.
Só?
Só. Palavra. Nem sabia que a Madeira era tão bonita, estou encantado por estar aqui e jogar. É como se estivesse no céu.
Qual é o teu objetivo?
O de sempre: jogar no Real Madrid, jogar em Espanha. Falo disso todos os dias e, claro, há quem brinque comigo. Eu levo o assunto muito a sério. É a minha equipa desde pequeno.
E a seleção do Irão, como é que vês o grupo com Marrocos, Portugal e Espanha?
Sou entusiasmado e otimista, por natureza. Se, há quatro anos, a Costa Rica passou num grupo com Itália, Inglaterra e Uruguai, porque não pensar em chegarmos aos oitavos-de-final em 2018? A esperança tem de nos acompanhar sempre, sempre, sempre. Tudo é possível. Temos de acreditar. Em 2014, quase empatámos com a Argentina. Se não fosse um golo do Messi ao minuto 90, festejávamos um resultado histórico. Agora vê só, o comentador da nossa televisão passou o jogo todo a dizer que já não era nada mau se perdêssemos 2-0. Essa atitude é a errada. Temos de entrar confiantes e temos de pensar na vitória. Ainda há pouco, ganhámos 2-0 ao Chile. Ao Chile, bicampeão sul-americano. Portanto, somos capazes de muitos feitos. Porque somos jogadores com muito coração e porque temos um grande treinador.
Queiroz, que tal?
Big character. Quer dizer, é o homem que nos levou a dois Mundiais seguidos. Só isto já é um feito extraordinário. Além disso, é um líder na verdadeira aceção da palavra. E fez carreira de guarda-redes. Por isso, já me ensinou uns truques.