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Ana Gomes tinha 45 anos quando chegou a Jacarta, para abrir a secção de interesses de Portugal na Indonésia, depois de anos de relações diplomáticas cortadas e no meio de um processo negocial sobre Timor-Leste, na altura ainda ocupado pelos indonésios. O convite foi-lhe feito pelo ministro dos Negócios Estrangeiros português, Jaime Gama, à saída de um encontro que havia tido com o homólogo indonésio, Ali Alatas. “Como é que acha que se vai sentir em Jacarta?”, perguntou de chofre à coordenadora da delegação portuguesa no Conselho de Segurança da ONU. O convite apanhou-a desprevenida, como conta nesta entrevista ao Observador, mas Ana Gomes percebeu de imediato que iria aceitá-lo. Já estava demasiado envolvida na questão de Timor, conquistada pela “resistência extraordinária” daquele povo, para recusar a oportunidade.
Seria a partir de Jacarta que a diplomata portuguesa acompanharia os momentos decisivos para a independência de Timor-Leste, em particular o referendo que tornou clara a vontade pela independência — com quase 80% dos votos a favor disso mesmo —, a 30 de agosto de 1999. A violência que se seguiu, provocada pelas milícias pró-Indonésia, traria momentos “de muita angústia”. “Era evidente que a destruição do território e a política de terra queimada dos militares era deliberada, era para deixar uma lição não apenas aos timorenses, mas sobretudo a outros territórios onde havia lutas na Indonésia. E por vingança. Portanto, a partir de certa altura, todos congregámos esforços para pedir a missão internacional”, conta. Os telefonemas sucediam-se, os encontros diplomáticos também. O mais decisivo, diz, terá sido o do primeiro-ministro António Guterres com o Presidente norte-americano Bill Clinton, onde foi feito um ultimato: ou os EUA apoiavam essa força internacional, ou Portugal retirava os seus homens do Kosovo. A jogada surtiu efeito, mais um dos sucessos da diplomacia portuguesa ao longo de todo o processo que levou à independência de Timor-Leste, oficialmente anunciada em 2002.
Em Jacarta, Ana Gomes teve o privilégio não apenas de acompanhar o que se passava em Díli, mas também de contactar de perto com Xanana Gusmão, líder da Resistência timorense que estava detido na casa-prisão de Salemba. Desses tempos ficaram as recordações dos telefonemas que tinham todos os dias, às 5h da manhã. E também a noite em que festejaram a assinatura do Acordo de 5 de Maio entre Portugal e Indonésia, onde ficou definida a realização do referendo: “Fizemos um belo bacalhau à Gomes de Sá e tivemos uma noite de conversa extraordinária. Uma noite de memórias, fazendo-o contar histórias dos tempos mais duros. Foi muito emocionante.”
Antes disso, contudo, havia já um longo percurso. Como o momento em que chegou à Indonésia, apenas três dias depois de o Presidente indonésio B. J. Habibie ter surpreendido tudo e todos, ao anunciar a disponibilidade para que se realizasse uma consulta popular. A diplomacia portuguesa ficou virada do avesso: “A partir daí, no fundo, não era nada importante o que era o conteúdo da autonomia, o importante era que se fizesse o referendo sobre a autonomia”, resume Ana Gomes. O presente foi como se tivessem oferecido aos timorenses “um Mercedes em vez de uma bicicleta”, explica.
Na altura em que se assinalam 20 anos do referendo que inaugurou o caminho de Timor-Leste até à independência, o Observador publica uma entrevista com Ana Gomes, uma das figuras da diplomacia nacional que assistiu mais de perto ao nascimento do país, sobre esses momentos. Uma conversa que incluiu referências às muitas vidas perdidas durante esse processo, mas também esperança pelo futuro de Timor-Leste. E gargalhadas, como quando recordou a vez em que levou oito mil rupias guardadas numa saca para entregar ao bispo de Baucau.
O referendo. “Na noite anterior acho que não dormi muito…”
Começo por lhe perguntar precisamente sobre o dia do referendo: estava em Jacarta ou em Díli? Como é que acompanhou aquele dia?
Estava em Jacarta, que era o meu posto. E estava em contacto com as autoridades indonésias, mas também com os ativistas timorenses, a começar por Xanana. Na noite anterior acho que não dormi muito… [Risos] De manhã estive ligada a tudo o que era noticiário, indonésio e internacional, para ir seguindo o que se estava a passar em Timor. Havia já grandes filas de pessoas para votar. Havia um clima de angústia, naturalmente. Xanana foi transferido uns dias depois para a embaixada britânica, a pedido das próprias autoridades indonésias. Ele estava na casa-prisão de Salemba [em Jacarta], onde regularmente o ia ver, mas as próprias autoridades indonésias consideraram que não estava em segurança e pediram-nos que o transferíssemos para outro local [a 7 de setembro, três dias depois de anunciados os resultados]. Nessa altura não tínhamos embaixada, tínhamos uma secção de interesses na embaixada da Holanda que não tinha condições nenhumas. Nem tínhamos segurança.
Era uma secção com poucos meses de vida ainda, em termos práticos…
Sim. A secção de interesses tinha sido aberta no dia em que cheguei a Jacarta, no dia 30 de janeiro de 1999. Após o referendo chegámos à conclusão que o sítio que teria melhores condições para hospedar Xanana seria a embaixada britânica. Ao fim da manhã [em que foi transferido] fui vê-lo à zona onde estava hospedado, uma espécie de clube que lhe tinha sido posto à disposição pelos britânicos, com uma grande sala e uma cozinha. Almoçámos e estávamos em grande júbilo. Por um lado, porque as pessoas tinham votado massivamente — ou pelo menos dentro das nossas expectativas, porque já tinha havido um registo muito elevado de votantes. Mas, ao mesmo tempo, também em grande apreensão, porque sabíamos que ia haver um backlash, uma reação violenta. Toda a gente no fundo sabia, era um risco que tinha sido assumido pelos timorenses e por nós — uma vez que uma das condições essenciais para o Acordo de 5 de Maio, que deu origem ao referendo, era que a Indonésia ficava responsável pela segurança. E, portanto, nós sabíamos que isso significava grandes oportunidades para insegurança. Mas tínhamos de arriscar. Depois, foi também na embaixada britânica que vivi com Xanana as notícias da violência e depois da entrada da INTERFET.
Como foram aqueles dias entre o dia do referendo e o dia em que foram anunciados os resultados [quase 80% a favor da independência], a 4 de setembro? Imagino que tenha sido uma angústia grande, sem saber o que ia acontecer.
Sim. Foi um período de grande angústia, porque como lhe digo havia esse risco, que era uma condição sine qua non para se fazer o referendo. Ou arriscávamos e se fazia o referendo, ou não se arriscava e ficava tudo na mesma. Havia uma janela de oportunidade única, hoje mais do que nunca estou perfeitamente convencida disso. Portugal e os timorenses tomaram a decisão certa, arriscando naquela altura. Mas sabíamos que, de facto, o risco de violência era tremendo e portanto esses dias foram vividos com grande angústia.
Até que chegou a violência.
A cidade ficou meia povoada. E começámos a ouvir notícias de incidentes, de casas que tinham sido incendiadas… Portanto, muita angústia, muita angústia. Era evidente que a destruição do território e a política de terra queimada dos militares era deliberada, era para deixar uma lição não apenas aos timorenses, mas sobretudo a outros territórios onde havia lutas na Indonésia. E por vingança. Portanto a partir de certa altura todos congregámos esforços para pedir a missão internacional que iria restabelecer a ordem e a segurança, porque as forças indonésias eram as principais responsáveis pela violência. E é evidente que isso foi uma campanha intenssíssima em que o Governo português — nessa altura com o primeiro-ministro António Guterres, o Presidente Jorge Sampaio e o ministro Jaime Gama — se empenhou nos contactos com líderes internacionais. Lembro-me que nessa altura fiz telefonemas para vários amigos meus, para todas as partes do mundo, a pedir, a suplicar que fizessem pressão, para que de facto houvesse uma missão internacional. Era a única maneira de restabelecer o mínimo de segurança e de se pôr cobro àquela destruição terrível.
Mas passaram-se dias até se reunir o Conselho de Segurança da ONU…
Exatamente.
Tudo ia andando a passo de caracol na diplomacia, enquanto nas ruas de Díli a violência crescia e as milícias estavam cada vez mais descontroladas.
Não foi por acaso que o ataque, digamos, mais particular foi precisamente ao Hotel Mahkota, que é hoje o Hotel Timor, onde estavam alojados jornalistas portugueses e de todo o mundo. Porque eles sabiam que, a partir do momento em que saíssem os jornalistas, podiam fazer o que quisessem. Seria difícil haver testemunhas. Nesse sentido é importante destacar o papel de alguns jornalistas que decidiram ficar, designadamente portugueses: o Luciano Alvarez, o Hernâni Carvalho, o José Vegar e o Jorge Araújo. Decidiram ficar e relataram depois o que se passou, designadamente na UNAMET, para onde fugiram muitos timorenses e para onde teve de ser também evacuada a própria missão portuguesa, que lá estava para observação do referendo. Por isso sim, foram dias de muita angústia, mas estas coisas duram o tempo que é preciso durarem. Foi uma campanha intensa até que conseguíssemos fazer vir a INTERFET e eu penso que foi absolutamente decisivo a intervenção dos nossos governantes. Lembro-me que nessa altura quer o Presidente Sampaio, quer o ministro, quer o primeiro-ministro, telefonavam para Jacarta muitas vezes e iam-me dando conta do que estavam a fazer. Lembro-me perfeitamente de António Guterres me telefonar a contar a conversa que tinha tido com Bill Clinton para o convencer que era fundamental os americanos apoiarem uma missão com as características que acabou por ter a INTERFET. E ameaçando que retiraria os nossos homens que estavam no Kosovo — que era nessa altura muito importante para os americanos. O Presidente de facto apoiou e acabou por pôr cobro aos desmandos e à violência em Timor. E isso foi decisivo, essa posição de braço-de-ferro.
É uma posição de força que não é muito usual na diplomacia portuguesa, pois não?
Pois não. Mas é preciso justamente homens de coragem e visão para usar o argumento. Se calhar muita gente em Portugal perguntou “Porque é que estamos no Kosovo?”. Se calhar foi exatamente porque tínhamos homens no Kosovo que tivemos o argumento que o primeiro-ministro na altura certa, e da forma certa, pôde esgrimir para conseguir um comportamento que pretendia por parte dos nossos aliados americanos. E depois houve também muita sabedoria nisto tudo, visto que, por exemplo, prescindimos de integrar a INTERFET. Portugal não fazia parte. E não fazia parte não porque os nossos homens não estivessem preparados, capazes e cheios de vontade de integrar tal missão, mas porque obviamente queríamos ajudar a salvar a face da Indonésia.
A desilusão pela saída da missão portuguesa da UNAMET. “Era fundamental que a comunidade internacional, em todo o seu colorido — incluindo o da bandeira verde e rubra — estivesse em Timor”
Era importante não hostilizar ainda mais a Indonésia?
Claro. E portanto houve aqui de facto momentos decisivos, em que houve grande capacidade diplomática e de decisão política do nosso lado. Por exemplo, muita gente — e lembro-me que na altura até o líder da oposição, Durão Barroso — criticou o Governo por ter aceitado o Acordo de 5 de Maio, que no fundo confiava a segurança até ao referendo à Indonésia. Dizendo “Bom, mas isso é entregar o ouro ao bandido”. Só que ou se fazia assim ou não se fazia. E felizmente houve de facto essa capacidade diplomática portuguesa de entender o que estava em causa — neste caso, a responsabilidade foi claramente do ministro Jaime Gama — e de ter o respaldo dos líderes timorenses para essa solução, em particular dos que representavam o interior, como era o caso de Xanana. Todos estes riscos foram calculados, assumidos e corridos. Não tenho a mais pequena dúvida de que aproveitámos uma janela de oportunidade que não mais se repetiria. Estou neste momento na Indonésia e ainda hoje tive encontros com vários dos nossos interlocutores neste processo, designadamente o ministro-coordenador da Segurança que depois viria a ser Presidente da Indonésia [Susilo Bambang Yudhoyono] e com o ministro dos Negócios Estrangeiros que sucedeu a Ali Alatas [Hassan Wirajuda]. Ainda hoje tomei pequeno-almoço com o meu colega Hassan e ele dizia exatamente isso: ou aquilo se tinha feito naquela altura, naquele momento, quando o Presidente era Abdurrahman Wahid (mais conhecido por Gus Dur), ou nunca mais se teria feito. Sem dúvida que outros seguintes presidentes e designadamente a Presidente que se seguiu não teria tido as condições objetivas e subjetivas, aqui na Indonésia, para permitir que fosse por diante um referendo nos termos que foram negociados entre Portugal e a Indonésia a 5 de maio.
Foi fruto daquilo a que chama muitas vezes o PREC indonésio?
Claro. Até porque, repare, nós no quadro das Nações Unidas, naquela conversa de surdos de vários anos… De que nós nos queixávamos mas também ainda hoje o ex-ministro Hassan também se me referiu a ela nos mesmos termos, que era uma conversa inútil…
Os dois lados queixavam-se?
Exatamente, era uma conversa de surdos. Mas nós depois da queda de Suharto aproveitámos para iniciar uma conversação significativa que se baseava na ideia de um estatuto autonómico para Timor, deixando a questão da consulta popular para mais tarde. De repente, tudo muda quando, nas vésperas de eu chegar a Jacarta o Presidente Habibie, que era um Presidente interino que tinha sucedido a Suharto sem nunca ter sido eleito, sem mais nem ontem sai-se com uma resposta ao primeiro-ministro da Austrália a dizer “Que se faça então um referendo, esses timorenses são uns ingratos”. Era a perspetiva dele: “Que se faça um referendo e se acabe com este problema de uma vez por todas”. É evidente que isso mudou completamente os termos do que estávamos a negociar. Eu usava sempre a imagem de ter alguém a quem vão dar uma bicicleta e a pessoa quer muito a bicicleta. Mas se de repente lhe dizem “Não, eu dou-te um Mercedes”, mesmo que a pessoa não saiba guiar o Mercedes vai querer o Mercedes, não vai querer mais a bicicleta! Portanto isso tinha mudado completamente os termos da negociação. Isto é, a partir daí, no fundo não era nada importante o que era o conteúdo da autonomia, o importante era que se fizesse o referendo sobre a autonomia.
Nos dias a seguir ao referendo, em que houve toda a onda de violência e a missão portuguesa esteve refugiada na UNAMET, esta acabou por ser retirada [não é certo se por ordem de Lisboa ou a pedido do chefe de missão, José Pereira Gomes, com quem Ana Gomes já trocou acusações]. Sei que era contra essa decisão. Porque acha importante que Portugal tivesse lá ficado enquanto a ONU lá estava?
Não quero pronunciar-me sobre esse episódio, que considero triste. Já disse o que tinha a dizer, algum dia se for preciso esclarecerei mais alguma coisa. Mas só quero dizer o seguinte: quando vim a Timor em maio “vender” o Acordo de 5 de Maio, ou seja, explicar às pessoas o que era o acordo, vim dizer-lhes “A partir de agora as Nações Unidas vão entrar no território e vamos ter um referendo onde os timorenses vão poder votar e Portugal vai cá estar a observar. E Portugal vai continuar com o resto da comunidade internacional a apoiar Timor-Leste”. Porque obviamente, na cabeça de todas as pessoas, estava a pergunta sobre se havia condições para se fazer o referendo em liberdade e o que é que se seguiria depois. Portanto era fundamental que a comunidade internacional, em todo o seu colorido, incluindo o da bandeira verde e rubra, estivesse em Timor. Era fundamental! Aliás, muitos timorenses tinham uma visão agridoce em relação a Portugal por termos saído em 1975. Nessa altura eu estava a receber telefonemas de muita gente, não só da nossa missão em Timor, mas também de muitos timorenses, que me diziam “Como é que é? Vão-se todos outra vez embora e nós ficamos aqui a arrostar com elas?” Portanto sim, era absolutamente uma questão essencial, vital, de honra, que quem pudesse estar presente estivesse presente. Felizmente que as Nações Unidas ficaram e estiveram presentes e só saíram mais tarde, quando já estava anunciada a INTERFET. Não digo mais nada sobre isso.
Quando é que conseguiu voltar a Timor depois do referendo?
O meu trabalho era na Indonésia, por isso só depois. De repente houve 250 mil timorenses que vieram para Timor-Ocidental, muitos deles arrastados pelas milícias e a partir de dezembro/janeiro, comecei a ir a Timor-Ocidental, a tentar convencer as pessoas a voltarem para Timor-Leste. Tinha a ajudar-me um homem, João de Freitas da Câmara, funcionário da nossa embaixada timorense, que tinha vindo trabalhar comigo a pedido de Xanana. E o João foi fundamental. Ia comigo nessas viagens e temos histórias muito complicadas, mas também extraordinárias. Ele convenceu aldeias inteiras a voltar para Timor. Eu levava e trazia cartas de Xanana para os líderes locais a dizer que podiam voltar. Acabámos por pôr em pé um programa, em conjunto com as próprias autoridades indonésias, para dar um incentivo financeiro para as pessoas voltarem para Timor. Ainda hoje, falando com o Presidente Susilo Bambang Yudhoyono, lembrei-me dos sábados de manhã em que, durante uns meses, eu, ele (que nessa altura era ministro-coordenador da segurança) e o já falecido ex-ministro Ali Alatas, nos juntávamos num último andar de um hotel indonésio onde havia uns estúdios de rádio, e falávamos especificamente para as comunidades timorenses que estavam refugiadas em Timor Ocidental a persuadi-los de que já havia condições em Timor e de que podiam voltar em segurança.
E a Timor-Leste?
A Timor-Leste só fui já no ano 2000, exatamente no contexto em que fui de Kupang até Atambua — o grosso das comunidades estavam em Atambua, que é junto à fronteira de Timor-Ocidental com Timor-Leste. Fui falar com as comunidades nessa zona, entre Atambua e Betun, e depois consegui passar para o lado de lá, passei a fronteira. Ia justamente ter com os líderes timorenses para lhes dar conta do que é que tinha visto do lado de cá. Estava tudo destruído, as pessoas estavam a recuperar daquele tempo em que andavam como zombies num território todo destroçado. Começava a haver um reinício de vida. Já lá estava a UNTAET, com Sérgio Vieira de Mello. Entretanto tinham começado as chamadas comissões de Verdade e Reconciliação, que era também uma forma de ajudar a curar as feridas. Porque muita gente que voltava tinha medo de retaliações, por terem sido aliados das milícias, etc. Portanto, esse processo das comissões foi também muito importante para ajudar as pessoas a terem confiança para voltar.
A relação com os indonésios. “Fui ver o ministro e disse-lhe: ‘Como é que é possível que este homem, Eurico Guterres, ainda não esteja preso?’ Dois dias depois, estava.”
E como é que foi possível ter um programa de rádio com três altos representantes de Portugal e Indonésia? O embaixador Fernando D’Oliveira Neves diz no seu livro recente [O Negociador, com Bárbara Reis, ed. D. Quixote] que admira a sua capacidade de encaixe com os indonésios e que ele, depois de todo aquele processo de negociação, tinha dificuldade em criar uma relação com eles. Que a Ana Gomes conseguia, muito embora tenha sido apelidada de “Madame East-Timor.” Como é que se faz essa ponte depois de ter havido momentos de tensão tão grandes?
Ao longo dos anos que fui trabalhando na questão de Timor, mesmo antes de vir para a Indonésia, tinha a perceção das nossas relações com a própria Indonésia. Relações que são muito intensas, até culturalmente. Os portugueses não sabem os extraordinários vestígios da cultura portuguesa que ainda hoje permanecem vivos na Indonésia. É uma coisa fantástica! E depois de cá estar ainda mais impressionada fiquei com o que aqui descobri. Também tive a sorte de vir para cá no contexto do PREC indonésio, onde havia muita gente que era amiga de Timor, que tinha visto o combate por Timor ser parte do seu próprio combate contra a ditadura. E tive sempre o cuidado — e acho que era esse o meu papel — de dizer aos indonésios “Do lado de Portugal não temos nenhuma animosidade contra a Indonésia. O que fazemos é por Timor, não fazemos contra a Indonésia”. Pelo contrário, se a Indonésia conseguisse resolver esse problema, era muito melhor para a Indonésia. E Timor precisa obviamente da Indonésia para viver em paz e em prosperidade. E também tive a sorte de ter, do lado indonésio, interlocutores que percebiam bem a importância da memória histórica e das relações históricas com Portugal, designadamente Ali Alatas, que era ministro dos Negócios Estrangeiros quando aqui cheguei e que eu já conhecia há muitos anos. Ele tinha essa perceção. E foi também extraordinário em perceber a mudança que se tinha operado com a queda de Suharto, a grande oportunidade que havia para a Indonésia de resolver o problema. Ele podia ter sido secretário-geral das Nações Unidas se não tivesse aquilo que mais tarde veio a chamar de…
…de pedra no sapato.
A pedrinha no sapato que era Timor-Leste! Portanto ele tinha interesse em resolver o problema para a Indonésia. E foi de facto absolutamente nosso aliado. Isso facilitou a minha capacidade de, por um lado, ter grande simpatia pelos indonésios, que estavam a viver um processo revolucionário como eu já tinha vivido em Portugal, com todos os choques, retrocessos, avanços, num sentido positivo, democrático. E, por outro lado, percebendo que havia forças nossas aliadas e também havia forças que teríamos de neutralizar, designadamente ao nível dos militares, porque eram os que tinham mais sentimentos anti-Timor.
Mas mesmo entre os militares havia militares inteligentes, que percebiam o que estava em causa. Um deles foi o então ministro-coordenador da segurança, Susilo Bambang Yudhoyono. Ainda hoje lhe disse que me lembro bem de ter mandado um telegrama para ele quando, a certa altura, as milícias comandadas por Eurico Guterres assassinaram três funcionários do ACNUR em Atambua.
Fui ver o ministro e fui dizer-lhe: “Como é que é possível que este homem, Eurico Guterres, ainda não esteja preso?”. Ainda por cima isso tinha acontecido quando o Presidente indonésio tinha acabado de fazer um discurso nas Nações Unidas sobre a nova Indonésia, a democracia, as relações com Timor, etc. E fui dizer ao ministro isso e lembro-me de ter escrito um telegrama para Lisboa a dizer: “Se este senhor não faz a diferença, então ninguém faz”. E dois dias depois ele tinha prendido Eurico Guterres. Fez a diferença e aí nasceu a nossa amizade, até hoje. Ainda hoje ele me contou, por exemplo, que mais tarde, quando era ministro da Presidente Megawati Sukarnoputri, teve um papel a convencê-la, contra a influência de outros generais cujo nome não direi, a ir às cerimónias da independência de Timor, em 2002. O que acabou por acontecer. E a Presidente disse-lhe: “Mas isso vai indispor os nossos militares”. E ele disse: “Não. Eu sou militar, sou seu ministro e vou consigo.” E ela foi.
Portanto foi um homem que continuou a ter influência, até mesmo depois do processo do referendo.
Claro, porque a história do relacionamento entre Timor e a Indonésia é exemplar. E aí as duas partes têm grande quota-parte de responsabilidade, porque ambos perceberam que precisavam um do outro. Ambos perceberam que não podiam hostilizar um ao outro. Ambos perceberam que tinham tudo a ganhar se cooperassem. E sem dúvida os nossos amigos timorenses tiveram grande sagacidade em também perceber quais são as linhas vermelhas para não fazer perder a face mesmo aos sectores que mais precisavam de ter sido castigados pelo seu comportamento. Aí, a sabedoria timorense da própria reação indonésia foi muito importante.Por muito que ainda haja pessoas naturalmente com um sentimento de que não foi feita justiça, não é? E por muito que haja de facto famílias em Timor que pagaram duramente. Dessa violência pós-referendo calcula-se que haja cerca de mil mortos e eu nem sei se foram já todos identificados hoje.
Mas, da mesma maneira que a violência foi o preço a pagar para se fazer o referendo, acha que este foi o preço a pagar para ter Timor independente que conseguisse sobreviver com a Indonésia ali ao lado?
Acho que valeu a pena. Sabe, há umas semanas conheci um jovem quadro timorense cujo pai foi morto no massacre de Liquiçá, um dos mais terríveis, que aconteceu em abril de 1999, numa igreja. Morreram cerca de 50, 60 pessoas, se bem me lembro. Uma coisa horrível. Este jovem disse-me que o pai tinha morrido nesse massacre, a mãe tinha ficado sozinha com oito filhos. Tremendos sacrifícios… Uma perda irreparável e inesquecível. Mas hoje este jovem vive com esperança em Timor-Leste, vive com esperança no seu país e no futuro. Portanto foi um preço terrível, mas foi o preço que foi preciso pagar para hoje Timor-Leste viver em paz e em progresso. Há muita gente em Portugal que diz “Ah, ainda há muita pobreza” e etc. Sim, claro. Estamos a falar de um país com 20 anos. E que vem de trás, do zero, daquela destruição terrível que viveu em 1999. E hoje é uma referência, por exemplo, em termos de democracia na Ásia a nível global. É um dos parlamentos com maior número de mulheres no mundo. Já teve quatro rondas de eleições democráticas, legislativas e presidenciais, todas consideradas absolutamente impecáveis. As últimas, em 2017, organizadas apenas pelos timorenses. Estamos a falar de um país onde o índice da malária diminuiu 95%, onde as inscrições nas escolas no ano 2000 eram 65% e hoje já passa dos 95%… Claro que ainda tem desafios pela frente. Com problemas, com crises políticas, crises de crescimento, mas que vai crescendo apesar de tudo e vai indo no bom caminho. E num caminho democrático.
Ao longo dos anos, antes do ano de 1999, Portugal ia abordando a questão de Timor nos meios diplomáticos. Mas a sensação que tenho é que os outros países olhavam para Timor como uma espécie de causa perdida…
E também havia muita gente em Portugal que achava exatamente isso. E diziam-no!
Dentro desta equipa de diplomatas que quis avançar para as negociações com a Indonésia houve algum momento em que se lembra de ter sido pensado “Isto talvez não seja possível”? Ou o envolvimento era tão grande que não se colocava a hipótese de desistir?
Acho que houve muitas pessoas que em muitos momentos pensaram que não era minimamente realista ou que Timor se pudesse resolver por uma via semelhante àquela que ocorreu. Havia quem pensasse que esse era um daqueles problemas que o tempo resolveria, isto é, deixando-o cair no esquecimento. Mas aqueles de nós, sobretudo diplomatas, que entrávamos no assunto, o estudávamos e, sobretudo, contactávamos com os timorenses, tínhamos a perceção de que estávamos a lidar com um povo muito forte, muito determinado, de grande resistência, coragem e sacrifício. E com líderes muito capazes. Líderes na diáspora, mas também no interior, com quem a partir de certa altura começamos a ter contacto, graças aos desenvolvimentos tecnológicos, como telefones-satélite. Portanto, quem estava por dentro, quem se envolveu profissionalmente percebendo o que estava em causa, passou a ser ganho para a causa. Só quem não sabia, ou tinha um conhecimento marginal, ou tinha uma atitude cínica é que achava que este era um problema que se havia de resolver.
Portanto mantinham a esperança?
A partir de certa altura passámos a perceber que essa mudança iria ocorrer quando caísse Suharto. Que era inevitável que ele caísse, porque o regime seria vítima do seu próprio sucesso económico, com a criação de uma classe média com novas aspirações de liberdade. Essa seria a janela de oportunidade e era importante que Portugal estivesse em diálogo com a Indonésia e estivesse a perceber a realidade indonésia. A ideia de se abrir secções de interesses mutuamente já tinha sido discutida por nós com o ministro Durão Barroso, mas não havia condições, porque do lado indonésio havia uma total impenetrabilidade. Mas quando se opera a queda de Suharto, todos percebemos que havia a janela de oportunidade e ela foi imediatamente aproveitada. Suharto cai em maio e foi no dia 5 de agosto de 1998 que, no encontro entre o ministro Ali Alatas e o ministro Jaime Gama em Nova Iorque, sob a orientação do secretário-geral, Kofi Annan, se decide que se vão abrir as duas secções de interesses. E é também nesse mesmo dia que o ministro Jaime Gama se volta para mim e me pergunta como é que acho que me vou sentir daí a uns meses em Jacarta.
Estava à espera da proposta?
Não [Risos]. Mas comecei logo a preparar-me nesse dia.
A reunião de D. Ximenes Belo que convenceu Mário Soares. “A Igreja Católica teve um papel-chave em Timor”
Como é que olha para o papel que as Nações Unidas tiveram nesta negociação e depois em tudo o que aconteceu a seguir ao referendo? Como é que homens como Ian Martin e Jamsheed Marker se comportaram em todo este processo? Foram decisivos? Podiam ter ido mais longe?
Foram muito importantes. Mas digamos que os homens mais importantes são outros. Quer dizer, todos tiveram importância em determinado momento, mas de forma persistente destaco dois homens imbatíveis, que se chamam Francesc Vendrell, catalão que era o diretor da Ásia-Pacífico nas Nações Unidas e que sempre manteve a questão de Timor viva quando ninguém queria ouvir falar de Timor e que sempre foi nosso absoluto aliado. E o seu funcionário Tamrat Samuel, que hoje trabalha com António Guterres, um eritreu que foi o homem que veio com o professor Koojimans, relator para a tortura quando foi o massacre de Santa Cruz. Quando Xanana foi preso e levado a julgamento e é encenada a ideia de que ele se teria vendido, ele aproveita para fazer uma defesa da independência de Timor. Quem passa para o exterior o que Xanana diz em tribunal — que obviamente era à porta fechada — chama-se Tamrat Samuel. Isso foi publicado depois no The Guardian e eu ajudei a traduzir, de umas folhas manuscritas horríveis [Risos] São dois homens que estiveram sempre na sombra e que todos os diplomatas portugueses que trabalharam em Timor sabem que são absolutamente fundamentais e se chamam Franscec Vendrell e Tamrat Samuel. E espero agora encontrá-los em Díli e que tenham finalmente o reconhecimento devido por parte de Portugal.
E a resistência timorense, até que ponto foi relevante? Pelo menos para Portugal perceber que ali estavam pessoas sólidas…
[Interrompe] Não só para isso. Oiça, não havia rigorosamente nada se não houvesse resistência timorense, isso é que foi essencial. Portugal foi só advogado, digamos.
Claro. Mas era uma resistência com características específicas.
Era uma resistência extraordinária. Não eram só as montanhas, o grupo dos 200 guerrilheiros que a certa altura lá estavam e operavam aqui e ali, era também uma resistência civil. Quando vou a Timor em 1999, já nós estávamos fartos de saber que a resistência civil era fantástica, poderosíssima. E obviamente tinha como pilar essencial a Igreja também, sem dúvida. Ainda há pouco contava a alguém que está aqui comigo umas coisas que um dia vou ter de contar, em particular a minha ida a Baucau em maio de 1999, para entregar ao bispo umas coisas que Lisboa me tinha mandado entregar. Entre elas uma saca enorme com oito mil dólares em rupias, o que era uma coisa sinistra que me obrigou a dormir e a viajar sempre com a porcaria da saca às costas, porque obviamente não a queria perder [Risos]. O bispo de Baucau, tal como o bispo de Díli, eram absolutamente peças-chave nessa resistência civil, que tinha formas de organização e onde o papel da Igreja era absolutamente notável. Nunca me vou esquecer da segunda vez que fui a Timor e vieram buscar-me a um sítio combinado, para me reunir com algumas pessoas da resistência. Andei duas horas de carro às voltas pela cidade até que me fizeram entrar num sítio que à altura não reconheci — mais tarde vim a perceber que era a sede da Cáritas. Estavam 40 dirigentes das várias áreas do país e recebi uma chamada ali do comandante Taur Matan Ruak que estava ainda nas montanhas e, tal era a articulação entre a resistência civil e as montanhas, sabia que eu naquele dia e àquela hora ia estar naquele sítio para receber uma chamada telefónica. E nunca mais me vou esquecer quando no meio daquilo tudo entra uma figura de batina branca e toda a gente se põe em pé, deferentemente. Só mais tarde é que vim a saber que era o padre João Felgueiras, o padre português. Aquilo era suposto ser uma reunião clandestina e no entanto o padre entrou ali e ficou sentadinho na primeira fila [Risos].
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A Igreja acabou também por ter esse papel porque de certa forma os timorenses identificaram-se com o catolicismo quase como forma de identidade nacional, não é? Quase como se dissessem “Somos diferentes dos indonésios”?
Completamente. Ainda há dias dizia aqui a uns amigos indonésios que a Indonésia tinha feito um grande erro. A maior parte da população timorense, quando Portugal saiu em 1975, era animista, só uma pequena parte é que seria católica. Mas depois, sob o domínio indonésio e com os indonésios a forçar as pessoas a declarar a sua religião, as pessoas declaravam-se católicas. Era uma forma de se afirmarem com uma identidade diferente. É extraordinário, em 24 anos a Indonésia conseguiu o que os portugueses não conseguiram em 500 anos, que foi transformar a população de Timor em 90% ou 95% católica. Sendo a Indonésia o maior país muçulmano do mundo… Havia ali obviamente uma questão de afirmação de uma identidade diferente, é o que isso revela.
E a Igreja também compreendeu isso?
A Igreja Católica teve um papel-chave, sem dúvida, e ainda continua a ter. Devo dizer também que o próprio Dr. Mário Soares — que durante muito tempo talvez tenha tido uma perceção sobre a questão de Timor que era exatamente a de que era um dos tais problemas que só o tempo resolveria — muda completamente de perceção a partir de uma conversa que tem com o monsenhor Belo [bispo D. Ximenes Belo] na nunciatura em Lisboa em novembro de 1985, quando monsenhor Belo vai clandestinamente a Portugal e tem um encontro com o Dr. Mário Soares e com o então representante da Casa Civil do Presidente Eanes, o Dr. Caldeira Guimarães, já falecido. Lembro-me perfeitamente do Dr. Caldeira Guimarães vir dessa reunião a contar-me como o que o bispo tinha dito nesse almoço, àqueles dignatários portugueses, sobre a Fretilin e a resistência tinha absolutamente contribuído para uma nova perceção por parte do Dr. Mário Soares. E foi isso que levou a que o Presidente Mário Soares, eleito uns meses depois, tivesse tido um papel-chave num Conselho de Estado, ao obrigar a que se faça a pergunta concretamente no referendo. Portanto, há muitas maneiras onde a Igreja foi decisiva, não só no apoio ao povo de Timor, a viver com o povo e a ajudá-lo na própria organização da resistência, mas também no papel diplomático da Igreja timorense, que é insubstituível.
A relação com Xanana Gusmão. “Tem extraordinárias qualidades e também tem alguns extraordinários defeitos. Mas é um líder de coragem”
Falávamos há pouco de Xanana Gusmão… Quando é que o conheceu, quando o foi visitar à prisão pela primeira vez?
Sim. Foi quando o fui visitar à prisão, poucos dias depois de chegar a Jacarta.
Que impressão é que teve dele, quando o conheceu nesse mês de fevereiro [de 1999]?
[Faz uma pausa] Visitei-o na prisão e obviamente que as condições na prisão não eram as melhores. Mas ficámos em contacto. Já tínhamos telemóveis e ele passou a telefonar-me todos os dias, tipo às 5h da manhã, que era quando ele podia falar sem o chatearem. E passámos a discutir muito, tudo. Tenho uma grande amizade por Xanana Gusmão e uma grande admiração por tudo o que fez, pelas decisões que tomou. Sendo que, como todas as pessoas, tem extraordinárias qualidades e também tem alguns extraordinários defeitos. Ninguém é perfeito. Mas sem dúvida que é um líder com grande sentido estratégico e com uma qualidade de comunicação com o povo extraordinária. E com coragem para assumir riscos e determinar certos aspetos absolutamente estratégicos. A casa-prisão de Salemba era uma verdadeira romaria diária de timorenses a ver Xanana e a aconselharem-se com ele e a passarem-lhe informação. Portanto Xanana estava claramente ligado ao que se passava no interior do país. E a perceção de Xanana revelou-se absolutamente fundamental e decisiva, inclusivamente para nós assumirmos os riscos que assumimos.
Também chegou a ter alguns momentos de alegria com ele. Quando festejaram a assinatura do Acordo de 5 de Maio li que houve um bacalhau à Gomes de Sá, é verdade?
Exato! [Risos] Trouxe uns ingredientes, a Paula Pinto trouxe outros e fizemos um belo bacalhau à Gomes de Sá e tivemos uma noite de conversa extraordinária. De memórias, fazendo-o contar memórias dos tempos mais duros. Foi muito emocionante.
E agora que passaram 20 anos do referendo e quase o mesmo da independência efetiva, olhando para trás…
[Interrompe] Valeu a pena. Foi uma oportunidade única, que não se voltaria a repetir. Não tenho a mais pequena dúvida sobre isso. Os líderes timorenses também não têm. Lembro-me de uma conversa que tive em Banguecoque, dois ou três anos depois, com Ramos-Horta a dizer exatamente isso. Valeu a pena. Timor-Leste é um país que está num caminho de desenvolvimento. É um exemplo na região e para o mundo. Pode obviamente fazer melhor, tem condições para isso, e nós portugueses não podemos abstrair-nos de Timor. Não podemos continuar a morrer na praia, com falta de sentido estratégico. Houve alguns aspetos que não vale a pena agora detalhar mas em que acho que podíamos ter tido uma intervenção mais estratégica no apoio que Timor precisa, designadamente a questão fundamental da língua portuguesa. Que é uma escolha estratégica deles, por afirmação da sua própria identidade, e onde nós já fizemos muito, mas muito mais poderíamos fazer. E outros aspetos, até de desenvolvimento económico, onde não se pode esperar que sejam os privados a ter a perceção estratégica, o Estado tem de ter uma intervenção em suporte dos agentes privados. Portugal não pode desligar-se de Timor, tem de ajudar Timor. Nós, país com 900 anos, não podemos julgar um país que tem 20 anos e que passou pelo que passou. Temos é de o ajudar a corrigir e a ganhar capacidades. Em Portugal somos bons a fazer na hora o que é preciso e depois morremos na praia. Ou largamos quando já estamos na praia e é altura de começar a desbravar o terreno para além da praia.
São dores de crescimento que só estamos a discutir porque aconteceu o que aconteceu há 20 anos?
É isso. Olho para trás e digo “Caramba. Valeu a pena. Valeu tudo a pena.” Por muito duro que tenha sido e com tantos sacrifícios de vidas, hoje as pessoas em Timor-Leste vivem com alegria, com esperança, com orgulho no seu país. Com boa vizinhança. Sinto que tive um tremendo privilégio por ser um dos portugueses, diplomatas e não só, que trabalharam para ajudar a resolver o problema de Timor. E por ver hoje, 20 anos depois, o que é Timor-Leste e por ter, ao mesmo tempo, contribuído para o restabelecimento das relações entre Portugal e a Indonésia, o que me dá uma grande satisfação pessoal. Sinto-me cheia de sorte e privilegiada por ter vivido o que vivi.