Demorou algum tempo a interiorizar a morte do marido, mas percebeu de imediato, racionalmente, a dureza do que teria de enfrentar. Anna Westerlund reconhece que, de lá para cá, tem tentado aprender a viver com uma dor que descreve como uma onda gigante, que vai e vem. Pelo caminho, tem tido quedas, mas também já encontrou alguma serenidade.
Na altura, em junho de 2020, foi ela quem contou aos filhos, um a um, que o pai, o ator Pedro Lima, tinha cometido o suicídio. A primeira preocupação de todos eles foi com ela, o que a ajudou a incluir-se no topo das prioridades do processo de recuperação. Aí, a terapia tem sido fundamental — tal como foi fundamental ter começado a receber essa ajuda no próprio dia. Ainda que haja coisas irrecuperáveis: a ceramista diz que não consegue deixar de sentir que “houve uma Anna que morreu quando o Pedro morreu”. E ela está a “nascer de novo”.
Numa entrevista inserida na série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental“, uma iniciativa do Observador e da FLAD, Anna Westerlund fala da confusão dos primeiros dias, dos caminhos do luto e das fases por que tem passado — e que, até agora, ainda não incluíram sentir raiva ou zangar-se com a decisão do ator. Isso será porque olha para tudo o que aconteceu como consequência de uma doença — a depressão — que considera física, mais do que emocional.
Ouça aqui a entrevista em podcast.
Anna Westerlund. “Se eu estou aqui e o Pedro não está, então tenho de aproveitar pelos dois”
Na conversa, gravada no Pestana Palace, em Lisboa, também reflete sobre as dificuldades de estar ao lado de alguém que está a passar por essa doença — e de, como no caso de Pedro Lima, os sintomas poderem não ser tão visíveis como o estereótipo faz imaginar. Se pudesse, teria mudado alguma coisa? A pergunta parece inevitável para quem perde, mas é também um exercício “inútil, ingrato e injusto”: “Se eu quisesse ir por aí para me castigar — porque, às vezes, há quase essa vontade de alimentar a dor —, não havia muito”.
[Veja aqui a entrevista completa a Anna Westerlund]
Em que momento começou o seu processo de luto? No dia em que perdeu o seu marido ou precisou de algum tempo para pôr os pés no chão e começar a fazer esse caminho?
Acho que começou no momento, logo ali. Porque foi tão violento — o momento, a notícia, o saber — que acho que começou nesse momento.
Há pessoas que descrevem o momento em que se recebe uma notícia destas como um momento em que não perceberam bem a realidade. Teve a perceção da dureza da realidade de imediato?
Acho que sim. Digo acho, mas sinto que sim, que tive essa noção. Não quer dizer que a tenha interiorizado. Tive a noção da perda nesse momento, mas demora a interiorizar. Durante muito tempo, imaginei o Pedro a chegar a casa. Por isso, acho que, racionalmente, interiorizei nesse momento, mas, emocionalmente, demora muito mais tempo.
Para quem perde, como é que são esses primeiros momentos? Tenta-se que a racionalidade nos guie ou há momentos em que conseguimos funcionar e momentos em que não conseguimos funcionar de todo?
Eu tive muitas ajudas na parte da funcionalidade, por isso não tive de tratar de muita coisa. Senti que pude só tratar da parte emocional. E quando falo da parte emocional, falo de mim, falo principalmente dos meus filhos. Pude, durante esses dias, só tratar de nós, emocionalmente. Não tive de gerir nada a nível funcional, a não ser comer e dormir, o que me permitiu, de alguma forma, trabalhar essas emoções, preparar momentos a nível emocional. Tive essa sorte, no sentido em que dei por mim a pensar que há muita burocracia, há muita funcionalidade, e deve ser muito complexo ter de gerir estas duas questões.
Nessa bolha em que pôde estar com os seus filhos, o que é que quer dizer com “gerir emocionalmente” aquele momento?
Foi mais a possibilidade de falarmos, de estarmos, de chorarmos, de nos abraçarmos, esse cuidar, de procurar o que estavam a sentir nesse momento. Consigo, por exemplo, pensar na questão da cerimónia: como os podia ajudar para preparar esse momento, o que é que era importante falarmos, o que é que era importante responder, que dúvidas e angústias é que eles tinham. É nesse sentido que eu digo que estive muito concentrada na parte emocional dos momentos e não na parte funcional, que é exigida também. Pudemos falar muito sobre o que ia acontecer. Lembro-me de os meus filhos, não todos, porem a hipótese de não quererem estar na cerimónia, por não saberem o que ia acontecer, por pensarem que podia ser ainda mais doloroso viver esse momento, para além de tudo o que já estava a ser difícil. E pudemos sentar-nos e eu explicar o que eu esperava que fosse, o que foi pensado ser, e construirmos esses momentos em conjunto.
A necessidade de fazer essa gestão também com eles foi útil para o seu processo pessoal ou, em algum momento, sentiu que tinha de se pôr um bocadinho em espera porque havia uma prioridade maior, que eram eles?
Acho que foi feito em conjunto. Quando dei a notícia a cada um dos meus filhos, a primeira preocupação deles foi comigo. E isso fez-me incluir-me nessa preocupação. Quanto mais não fosse, por eles. Ou seja, não me excluir emocionalmente do processo ou não os pôr em primeiro lugar. Estando eles em primeiro lugar, eu também estava lá, porque a maior preocupação deles era comigo. Senti isso. E isso fez-nos viver as coisas muito lado a lado, de alguma forma.
E quando é que percebe que o vosso cuidar era importante, mas se calhar também precisavam de ajuda — e a Anna precisava de ajuda — para fazer um processo que, seguramente, ia ser doloroso, difícil e prolongado?
Isso foi imediato, também. Quando recebi a notícia, estava um psicólogo do INEM que se aproximou no sentido de dizer “eu estou aqui, vai precisar desta ajuda”. E eu, no momento, disse “eu sei, mas agora não consigo”. E o “agora” não é “vou precisar daqui a um mês” ou “sei que vou precisar daqui a uma semana”. Era: “Eu sei que vou precisar agora, mas não agora, aqui”. E essa ajuda começou no próprio dia, foi imediata.
Porque é que disse ao psicólogo “eu sei”? Porque, para si, a saúde mental não era uma surpresa, não era um desconhecido?
Eu já tinha feito terapia antes, o Pedro fazia terapia e já tinha feito. Não havia um tabu em relação à terapia e, tendo em conta a violência do que estava a acontecer, era claro para mim que ia precisar de ajuda.
Teve mais pessoas a fazer-lhe essa sugestão?
Essa ajuda acabou por ser logo disponibilizada por uma pessoa amiga — “está aqui esta pessoa que está pronta para te receber, para te ouvir, se quiseres”. E isto foi ao fim do dia. A partir daí, essa questão foi resolvida, não houve necessidade de as pessoas me lembrarem, porque foi resolvida no momento e essa ajuda ficou.
Falou com essa pessoa no mesmo dia?
Falei logo no mesmo dia, de imediato.
O que é que essa pessoa representou naquele momento?
Não sei se isto faz sentido, mas talvez possa ter representado eu não ter de ter tomado calmante nenhum, nem ajuda nenhuma química para aqueles dias. Porque senti como uma ajuda médica, essa pessoa teve essa capacidade, de alguma forma, de me ajudar em termos clínicos — não sei se faz sentido o que estou a dizer.
E a organizar-se um bocadinho no meio do caos?
Sim, nesse sentido de ser uma pessoa que vai buscar alguma racionalidade no meio de um turbilhão de emoção gigante. Por isso é que digo que é uma ajuda médica. No meio deste caos, acaba por ser essa ajuda, uma ajuda muito formal, prática e direta. Não é um amigo a dizer “estou aqui para dar um abraço, para chorar”. É uma ajuda muito concreta.
A terapia que começou a fazer foi muito diferente da que já tinha feito antes? Para quem nunca fez terapia, pode ser uma experiência diferente consoante o momento que estamos a viver?
Sim, a terapia que fiz agora, que começou neste luto, na perda, foi uma terapia do momento, não é uma terapia de ir buscar o passado ou de “abrir gavetas”. É uma terapia momentânea, de uma situação que precisa de ser trabalhada, estruturada e ajudada. Por isso, é uma terapia muito diferente da terapia que tinha feito anteriormente, em que era mais de autodescoberta, autoconhecimento, de querer resolver coisas minhas. E aí, sim, há um andar para trás e um relacionar de algumas coisas. Aqui foi uma terapia muito focada.
O que é que essas consultas lhe foram dando ao longo do tempo? Apaziguavam-na em dias mais difíceis, davam-lhe ferramentas para enfrentar outros?
Senti que era um momento em que eu podia baixar a guarda, não no sentido em que não me permitia chorar fora da terapia, mas — ainda hoje brincamos com isso —, quando eu me sento, respiro fundo, antes de começar a terapia. É quase como se entrasse num espaço em que podia dizer tudo o que me apetecia. E isto é quase o básico da terapia, mas, tendo em conta o que estava a viver, era-me permitido pôr todas as questões e baixar a guarda, de alguma forma.
Às vezes há a ideia de que o facto de termos um estranho à nossa frente, que não é um amigo, é inibidor — “porque é que vou contar coisas íntimas e minhas a uma pessoa que eu não conheço?”. Para si, funcionou ao contrário, pelo facto de estar ali uma pessoa que não a vai julgar por nada que pense, que sinta, que diga?
Não sei se tive essa consciência muito real nesse sentido. Acho que era muito o saber que ali era um espaço de ajuda. E, se é um espaço de ajuda, eu tenho de estar disposta a ser ajudada. E isso funcionará de forma diferente de pessoa para pessoa. Não no sentido de pensar “aqui posso contar tudo”, não sinto que isso seja mais fácil — se calhar até contava as mesmas coisas a pessoas amigas. É nesse sentido que vou buscar a terapia como uma ajuda médica. Se calhar não estou a usar o termo certo, mas podemos contar o mesmo a um terapeuta que contamos a um amigo e a ajuda é diferente. A pessoa a quem contamos, um terapeuta, tem uma racionalidade e uma experiência sobre o que lhe estamos a dizer para podermos “bater bolas” de uma forma diferente. Sentia que ia buscar, de alguma forma, energia, força para me aguentar até à próxima semana, para me aguentar até me sentar e respirar fundo outra vez.
As consultas eram semanais.
Semanais.
E mantêm-se?
Há muito pouco tempo começaram a ser quinzenais, mas mantive-as semanalmente durante este tempo todo. E no início foram mais juntas, ou seja, sempre que sentia necessidade.
E conseguia ter essa perceção de que precisava de falar, de uma consulta?
Por acaso, essas consultas “extra” foram um bocadinho [impulsionadas por] essa pessoa que me deu este contacto e me arranjou esta terapeuta. Quando eu procurava a pessoa amiga, em desespero, passava-me imediatamente para a terapeuta, no sentido de “agora se calhar é o momento em que outro tipo de ajuda é necessária”.
A Anna dizia que o facto de ter tido essa ajuda tão cedo, e logo naquele dia ter tido uma primeira conversa, provavelmente evitou que depois precisasse de ser medicada. Isso, para si, era uma coisa que lhe faria impressão ou simplesmente aconteceu não precisar?
Diria que foi só uma coisa que aconteceu e de que não precisei. Por outro lado, tendo em conta tudo o que aconteceu, não era o tipo de medicação que quisesse tomar. Não que isso seja uma opção nossa, mas estou a ser sincera dizendo isso. Se precisasse, ia ser desconfortável.
Nem na terapia alguma vez essa questão de colocou?
Colocou-se uns meses depois, quando tive um ataque de pânico grande a conduzir. E durante três, quatro ou cinco dias fiz uma medicação natural, muito leve, só para ajudar a tentar controlar essa ansiedade que estava a provocar esses ataques de pânico. Porque, a seguir a esse primeiro, durante um período de tempo relativamente curto, durante um mês, tive vários episódios de ataques de pânico e, aí sim, tive de tomar uma medicação.
Para quem nunca teve um ataque de pânico, como é que o descreveria?
Estava a conduzir e comecei a sentir o corpo estranho. Começou pelas pernas, as mãos, senti que podia estar a ter um AVC. Tive uma paralisia facial há uns anos e esse lado da cara nunca recuperou a 100%, então comecei a sentir esse lado mais estranho.
Achou que era uma coisa física, portanto.
Completamente. E telefonei para uma pessoa amiga, que me foi ajudando, que me disse “tens de parar o carro” e eu dizia: “Estou na autoestrada, não consigo e vou desmaiar ao volante”. Depois consegui parar de uma forma segura, saí e essa pessoa amiga telefonou a outra pessoa amiga para que alguém pudesse chegar ao pé de mim o mais rápido possível. E a sensação que eu tinha — quando já tinha pessoas ao pé de mim e que me diziam para sair do carro, para apanhar um bocadinho de ar — era que, se me mexesse, o meu corpo ia colapsar. E ia morrer ou ia desmaiar. Se me mexesse, ia colapsar. Por acaso estava a caminho da terapia e então ligaram à minha terapeuta e fizemos como se fosse uma consulta, mas ao telefone, e ela também me ajudou.
E a terapeuta percebeu de imediato que talvez não fosse uma coisa física.
Sim, percebeu e lidou como sendo um ataque de pânico e uma questão emocional.
Quando se passa por um ataque de pânico e depois se tem outro a seguir, consegue-se ter racionalidade suficiente para reagir de forma diferente em relação ao primeiro?
Melhora, no sentido em que já nos disseram que aqueles sintomas são consequência de um ataque de pânico, mas, mesmo assim, é difícil controlar. Não consigo dizer o número, mas houve, se calhar, 3 ou 4 ataques de pânico em que tive de pedir ajuda novamente, em que alguém teve de vir para perto de mim. Porque, por mais que tentasse racionalizar, os sintomas físicos são muito fortes. Por mais que nos digam “ninguém morre de um ataque de pânico”, sentimos que o nosso corpo vai colapsar.
Estava a falar dos amigos a quem ligou, percebe-se que há uma rede de pessoas à sua volta. Houve algum momento em que teve de afastar um bocadinho essa rede porque precisou de viver algumas coisas sozinha, ou sempre funcionou interligada com essa rede?
Acho que funcionei muito interligada. Sei que o que senti na perda do Pedro… quase que consigo dizer isto assim: a maior dor foi a solidão, o sentir-me completamente sozinha. Sozinha sem estar sozinha, não é? Mas esse embate de: “E agora? Estou só eu, perdi tudo”. A sensação é: “Perdi tudo”. E aí esta rede de pessoas, que já era íntima mas que se fortaleceu, foi essencial nesta minha caminhada.
As pessoas que não passaram por uma experiência de perda tendem a olhar para estes momentos e pensar: “Não está nada sozinha, tem a vida toda à frente, tem a família, os filhos…”. Racionalmente, conseguia identificar isso, mas há, de facto, um momento em que era só a Anna e em que era difícil olhar para o futuro e ver alguma coisa?
Era. E, às vezes, o dizerem-nos isso… Se calhar vou exagerar, mas é quase como se fosse ofensivo. Porque o que nos dizem não deixa de ser verdade, mas aquilo que sentimos é tão distante disso que é quase violento dizerem “Mas tens os teus filhos e a vida e és tão nova…”.
As pessoas dizem muito isso? Às vezes os amigos dizem mais porque é, normalmente, o que se diz…
Claro, e sei também por experiência própria, estando eu no papel em que teria de dizer as coisas certas à outra pessoas, e se calhar tendo eu passado por uma perda semelhante, percebo que também não sei dizer as coisas certas. E se calhar também acabo por dizer coisas como “O tempo ajuda”. Era o pior que me podiam dizer. E é o que eu, se calhar, digo a alguém que possa estar a passar pelo mesmo, mais recente. E depois penso: “Como é que tu estás a dizer isso, quando era o que mais te irritava?”.
Mas é porque percebeu que ajuda, de alguma forma?
Porque percebi que ajuda.
Mas não resolve.
Não resolve, mas ajuda, porque, com o tempo, ganhamos mais serenidade, fortalecemo-nos. E porque, realmente, somos obrigados a reagir e a encontrar caminhos. Precisamos de tempo para isto acontecer. E, de facto, o tempo ajuda, mas, olhando para trás, a dor é tão grande que parece impossível que, com o tempo, a dor vá diminuindo, ou que a pessoa se vá sentir mais serena. Parece tão distante essa possibilidade que o tempo se torna tão abstrato.
E houve algum momento em que quase tivesse medo de se sentir melhor, como se isso pudesse ser um desrespeito para a memória do seu marido?
Acho que, de certa forma, essa questão vem mais dos meus filhos. Quase que aprendi isso com eles, no sentido em que são cinco miúdos em fases completamente diferentes, mas são adolescentes que precisam de estar com os amigos e precisam de rir, de se divertir, de sentir que a vida pode continuar e que pode haver alguma normalidade. E tive essa conversa com a minha filha mais velha, que me dizia isso: “Oh mãe, eu preciso de me rir”. Era quase como se estivesse a perguntar-me se estava tudo bem — “Não faz mal, pois não?” E a resposta para ela é “claro que não”. Se lhe estou a responder isso, sentindo que nós, pais, deveremos ser um exemplo no sentido em que não podemos dizer uma coisa e depois fazer outra… Se é isso que faz sentido para eles, terá de fazer sentido para mim, não posso depois dar um mau exemplo. Se calhar o que senti mais foi a injustiça. Não sei bem se injustiça é a palavra certa, mas quase como “se eu estou aqui e se o Pedro não está, então tenho de aproveitar pelos dois”. E o aproveitar é no sentido de reagir, de procurar caminho, de ajudar os nossos filhos, perceber que todos morremos. Acho que me agarrei muito a esta ideia de que toda uma vida que tiveram com o pai, e toda uma vida que eu tive com um marido maravilhoso não se podia perder por causa de uma morte, quando todos morremos. A morte não se pode sobrepor a toda a vida e às memórias e a tudo o que tínhamos construído. E acho que isto foi muito claro para mim e, diria, para todos, para a nossa família.
Neste caminho, as coisas só fazem sentido se forem surgindo de forma natural ou também há momentos em que temos de nos forçar a fazer determinadas coisas: a soltar uma gargalha porque se acabou de dizer à filha mais velha que sim, é permitido estar contente?
Aí quase que parece que estamos a forçar emoções, e isso acho que não deve acontecer. Não devemos rir se não temos vontade de rir, devemos chorar se temos vontade de chorar. O que sinto é que, se calhar, forcei um bocadinho quando procurei criar rituais, momentos. E isso ajudou-nos a lidar com momentos específicos.
Momentos em que criavam, por exemplo, esse espaço de partilha?
Se calhar estou a ir buscar isto dos rituais no sentido em que é uma coisa forçada, estamos a criar para este momento um ritual, uma coisa forçada. Ou seja, não estando a forçar emoções, estamos a forçar…
Um espaço.
Sim. Mas senti que foi importante. E são coisas que continuo a fazer.
Em que momento começou a ver em si sinais de recuperação, em que já estava a conseguir reagir?
Se calhar agora que já fez mais de um ano, em que passámos por todos os momentos uma segunda vez. E perceber que há uma maior serenidade nesses momentos. Acho que aí é quando se começa a perceber.
É o primeiro teste?
Sim, de alguma forma.
As datas são mais difíceis ou também há dias que não são nenhuma data específica e em que, de repente, se desaba?
Claro. São muitos mais esses dias, no sentido em que as datas acontecem especificamente. O que acho que as datas trazem é um forçar de viver esse momento. E, se calhar, foi um bocadinho por isso que eu trouxe para as datas esses rituais. Estou a rir porque os meus filhos gozam um bocadinho comigo por causa disso. “Lá está a mãe…!” Por exemplo, o aniversário do Pedro seria agora e uma coisa de lançarmos balões e fazermos não sei o quê. Pronto, tem uma razão de ser, mas às vezes brincam um bocadinho comigo, do género: “Oh mãe, lá estás tu a inventar coisas”. Mas a verdade é que, para mim, depois faz sentido e acredito que se nós, adultos, conseguirmos passar algum sentido e alguma serenidade, eles vão-se alimentar disso.
Às vezes há a ideia de que estes processos têm ali uma fase muito negra, mas depois as pessoas começam a recuperar e tudo encarreira e não há percalços ou quedas pelo caminho. É assim?
Diria que uma das coisas que interiorizei foi que é um processo para o resto da vida, não há um momento em que acaba, não há um momento em que se cura, em que terminou e passámos a estar bem. Não é uma doença que temos e que curámos. É uma ferida emocional, um trauma que nos vai acompanhar para o resto da vida. Sinto isso, que há momentos em que estou melhor e depois parece que volto atrás um bocadinho e depois voltamos para a frente. É aprender a viver com a dor.
Esses momentos de andar uns degraus para trás tornam-se mais fáceis de superar? Quando sentiu que andou uns degraus para trás a primeira vez foi mais difícil do que quando voltou a acontecer?
Vai-se aprendendo. Acho que aprendi a perceber, para mim, que a dor vem como uma onda gigante. E a onda vem e depois volta a ir. Sinto que vou aprendendo a sobreviver nessa onda, quando ela vem. E, se calhar, a ter consciência de que depois ela vai e não sabemos bem quando é que ela volta e com que dimensão. Por isso é que digo que interiorizei que é um processo que me vai acompanhar sempre.
A perda da Anna e dos seus filhos foi muito pública. De que forma é que o facto de a sua dor ser acompanhada pelo choque de um país inteiro perante a notícia impactou este seu processo?
Confesso que sentia muito isto: o Pedro é que era uma figura pública. Por isso, senti-me muito resguardada na minha dor. A parte pública que senti foi mais desse carinho. Senti muito amor de pessoas que não conhecia, e isso fortalece-nos.
Haverá um momento em que é preciso retomar também as escolas, o trabalho, tudo isso. Como é que isso funcionou para si? Voltar ao trabalho foi uma ajuda, um escape ou foi às vezes demasiado difícil?
Foi um intermédio. Não deixei de sentir que tenho um ateliê a funcionar e tenho pessoas a trabalhar comigo, para com as quais tenho responsabilidade e que seguraram o ateliê quando não fui capaz de ir — e nos primeiros tempos não fui capaz de ir de todo. E fui regressando aos poucos. Mas fui muito amparada pela minha equipa e isso ajudou-me muito neste processo, sentir que o meu trabalho, de repente, era essencial, porque agora estava sozinha, mas que havia alturas em que não o conseguia fazer. Não tinha concentração, não tinha capacidade de estar no ateliê. Quando conseguia, estava; quando não conseguia, não estava.
Diz-se que, no luto, há várias fases. Quando esse luto nasce de um suicídio, também se diz que há sempre um momento em que a pessoa sente raiva ou revolta em relação à pessoa que partiu. Passou por estas fases?
Consigo reconhecer fases no meu luto, mas ainda não tive — posso vir a ter — essa fase da zanga e da raiva para com a pessoa.
Nunca se zangou com o que aconteceu?
Sinto que não. Sinto que racionalizei muito o que aconteceu. Sinto que foi claro, de certa forma, o que aconteceu, em termos de saúde mental, em termos médicos. Por isso, não houve espaço para me zangar. Sinto que não houve esse espaço.
Mas a maneira como tudo aconteceu tornou, de alguma forma, o seu processo mais duro, ou sente que, se o Pedro tivesse morrido de outra forma, seria semelhante para si? Consegue fazer essa análise?
Consigo comparar no sentido do acidente, do, de certa forma, inesperado. Quando digo “de certa forma” é porque tinha consciência de que o Pedro estava a passar por uma depressão. Ele próprio tinha essa consciência, estava a ser acompanhado de todas as formas, supostamente, possíveis para uma pessoa que está com uma depressão. Ou seja, dei por mim a fazer um exercício contrário, que era: “Será que eu preferia que o Pedro tivesse tido um cancro, uma coisa que dá para nos despedirmos e em que há todo um processo?”. E há um lado meu que diz “Eu não me quereria ter despedido dele”. Quase como ir buscar uma situação que pudesse ser pior do que uma coisa que acontece por acidente, por assim dizer.
E conseguiu tirar isso do caminho, com a ideia de que seria pior ou mais duro de outra forma?
Consegui pensar que teria sido mais duro de outra forma, se calhar de uma forma egoísta, para mim, porque o Pedro não deixava de estar doente, por isso, para ele, houve o processo interior da doença. Confesso que não existiu, se calhar, uma consciência da gravidade da depressão em que ele estaria.
Só para si ou acha que também para ele?
Eu diria que também para ele. E diria isso pelo que se passou, pela forma do processo, por notas que ele tinha da terapia que estava a fazer, ou seja, não era uma coisa que parecesse que ia acontecer. E isto não descurando o facto de ele poder ter ou verbalizado… mas, se calhar, pelo facto de estar, supostamente, a fazer tudo bem para se tratar e em termos de consciência da doença. Mas eu diria que a depressão dele era muito, eu não sei se posso dizer, “atípica”, em termos de sintomas. É muito ingrato, porque, depois de acontecer, conseguimos ou olhamos para trás e fazemos este exercício de “se calhar a isto devíamos ter dado mais atenção” ou “se calhar isto já era um sintoma”.
Deu por si a fazer isso, a reviver momentos e a tentar perceber onde é que alguma coisa podia ter sido diferente? Ou essa é uma tentação normal, mas a que tentou resistir?
É uma tentação, mas, na verdade, sinto que não houve muita coisa que pudesse ter sido feita de forma diferente. Se calhar estou aqui hesitante porque há questões, e são sempre casos particulares, em relação a tratamentos ou opções que podem não ter sido as melhores.
A minha pergunta não é tanto na identificação específica. Às vezes quem fica não consegue evitar olhar para trás e pensar “se calhar devíamos ter feito isto ou aquilo”. Isso é uma coisa que tentou combater ou aceitou que era mais uma fase em que ia ter de colocar essas interrogações?
Coloquei algumas, mas, tendo em conta tudo o que se passou, não tinha muito por onde pegar. Se eu quisesse ir por aí para me castigar — porque, às vezes, há quase essa vontade de alimentar a dor —, não havia muito.
Sentiu essa vontade ou foi uma fase pela qual não passou?
Não passei muito. Claro que questionei e claro que olhei para trás e claro que pensei que se tivesse feito alguma coisa diferente podia ter mudado, mas é inútil e é ingrato e injusto.
O que é mais difícil quando se vive com alguém que lida com um problema de saúde mental, com uma depressão? Identificar os sinais, saber dizer as coisas certas, não saber qual é o nosso papel ali ou como podemos ser úteis? Para si isto era difícil ou, como era tão atípico e tão pouco visível, pelo menos nos estereótipos da depressão, era não saber bem se ele estava melhor ou pior?
Aconteceu-me muito isso, o facto de associarmos — diria que de uma forma estereotipada, mas é a minha experiência pessoal — a depressão a uma tristeza profunda, a uma pessoa sem energia… há uma série de supostos sintomas que, se a pessoa não os tem, é porque não está assim tão deprimida, é porque a depressão não é assim tão profunda ou tão grave. E, na situação que vivi com o Pedro, punha-se muito isso. Os sintomas não eram assim tão visíveis, digamos assim.
Ele era funcional e, portanto, não era aquela imagem de alguém que não sai da cama, não sai de casa, não trabalha, não come, não faz nada. Isso nunca existiu para si.
Não.
E, para si, era essa a dificuldade, o facto de não corresponder ao estereótipo e poder criar a ilusão de que não era assim tão grave?
Na verdade, o que me fazia estar atenta a ele era o que ele me transmitia que sentia, era o que o Pedro verbalizava, não tanto o sintoma visível, era o que ele dizia que estava a sentir. Partia muito mais dele falar e explicar o que estava a acontecer e o que estava a sentir.
E era difícil lidar com essas informações que ele ia passando, saber o que fazer para ajudar ou sempre conseguiu ir navegando tudo isso ao lado dele?
Senti que sim. Senti que percebíamos que havia um problema e era preciso ajuda e ele próprio, ativamente, procurou essa ajuda. Depois, se calhar, é preciso uma ajuda ainda mais intensa, digamos assim, e ele próprio procurou essa ajuda. É quase como uma pessoa que tem um cancro e que está a ser acompanhada. O que é que nós, deste lado, podemos fazer? É ir acompanhando emocionalmente e apoiando e conversando. Não acompanhamos em termos médicos, e o que eu sinto aqui é a mesma coisa: a depressão é uma doença física e, estando a ser acompanhado da forma correta, deste lado o apoio que damos é emocional.
Isso aprendeu com este desfecho, que a depressão não é só um problema emocional que vai ter eventualmente consequências emocionais, mas que é um problema físico?
Na minha opinião, acho que tem de ser muito mais abordada como um problema de saúde física, no sentido em que tem a componente emocional — eu nem sei bem como é que hei-de dizer —, mas que é claro para mim, pela experiência que vivi, que é uma questão de saúde física, uma questão genética também, uma questão de estrutura emocional para lidar com adversidades da vida. A saúde mental é saúde física, não é só saúde emocional, é físico.
Fala em questão genética por uma espécie de predisposição?
Sim. Até consigo pensar que, se olhássemos para a vida do Pedro, ele não deveria ser aquilo que achamos que era uma pessoa que estaria sujeita a uma depressão. Não encaixava nesse perfil. E, se calhar, olhamos para mim, tendo em conta o trauma e a perda gigante, a forma como foi todo este cenário, e teria todas as condições para ter uma depressão. Por isso, acho que há qualquer coisa genética que faz com que isso não aconteça.
Sente que, à sua volta, havia essa preocupação, de pensar que, se calhar, o que aconteceu ia acabar por levá-la pelo mesmo caminho?
O que senti é que as pessoas quase validavam: “Anna, se quiseres ficar numa cama a chorar durante um mês, há quem trate dos miúdos, há quem faça as coisas, podes”. Mas, por mais que houvesse alturas em que tinha essa vontade de ficar, é como se o meu corpo não me deixasse, o meu cérebro não funcionava assim. Se calhar podia adormecer a pensar: “Amanhã vou ficar o dia todo a chorar. Não quero lidar, não quero ser funcional, não quero levar os miúdos à escola”. E, quando acordava de manhã, levantava-se e o meu corpo reagia assim. “Vamos, acorda os miúdos, eles têm de ir para a escola…”
Nem sequer tinha de se convencer.
Não. E acho que, teorizando para mim própria — e também para me ajudar a lidar com o que aconteceu —, tornou-se claro que a depressão não é uma escolha, de todo. E, por mais que haja todas as razões para podermos deprimir, há uma componente física que nos permite ou nos torna mais frágeis, mais suscetíveis ou não.
Também porque tudo isto lhe ensinou que, às vezes, os estereótipos estão todos errados — às vezes uma pessoa com uma família, com sucesso profissional, um homem bonito, pode estar num mundo completamente negro e não ver nada daquilo que tem à volta? “Então mas agora estás assim? Os teus filhos são ótimos, a tua mulher é incrível…” Provavelmente, o Pedro ouviu dizer isto muitas vezes.
E ele próprio o disse, certamente, a muitas pessoas, porque ele às vezes tinha um bocadinho esse discurso de “eu não tenho tempo, se estivermos sempre [a andar]…”
Ele tinha essa perspetiva?
Acho que, no caso dele, havia questões complexas, interiores, e que o estar sempre em movimento, sempre ativo, o ajudava a não ter de lidar com essas questões. E daí o momento em que também aconteceu, a pandemia e de pararmos todos, todos ficarmos parados, connosco, e a viver uma situação complexa.
Acha que essa pausa impediu que ele fugisse de lidar com algumas coisas?
Acho que não ajudou. Mas, até nisso, ele de repente estava com comportamentos paranoicos em relação à pandemia — mas, de repente, havia muitas pessoas com comportamentos paranoicos em relação à pandemia. Criou-se a tempestade perfeita para uma pessoa com essa fragilidade acabar por falecer dessa doença.
Nos dias de hoje, o que é que mudou em si, fruto deste seu processo de luto?
Sinto que, se calhar, perdi medos. Medos de viver, perceber verdadeiramente que tudo muda de um dia para o outro, ou que tudo pode mudar de um dia para o outro. Ou seja, se calhar, o que aconteceu podia trazer-me medo da morte e sinto que perdi o medo de viver.
E continua a sentir aquilo de que falava há pouco: “Ele já não está aqui, tenho de viver, não posso desperdiçar”?
Sim, um bocadinho. Não ter medo de viver é nesse sentido, de me libertar, de alguma forma. Não sei como posso transmitir esta ideia do medo de viver. Aproveitar a vida, aproveitar os meus filhos, libertar-me de inseguranças, ao nível do trabalho… Relativizei tanta coisa, percebi que tanta coisa tem tão pouca importância, ou percebi ainda mais isso.
Há pouco dizia que, muito recentemente, as consultas deixaram de ser semanais. Em que ponto é que sente que está a sua recuperação?
É mesmo muito recente, mas o que sinto é que precisava de espaçar para perceber se, às quartas, que é quando faço terapia, não podia ser só ali o meu balão de oxigénio, ou perceber se estava demasiado dependente desse balão de oxigénio. O espaçar foi um bocadinho nesse sentido, ir de 15 em 15 dias. Porque, no início, acontecia-me muito isso, carregava-me de oxigénio nas sessões de terapia e depois ia perdendo e, quando chegava à próxima consulta, já estava em esforço. O espaçar é “deixa ver se já me aguento 15 dias”.
E dá medo, quando se toma essa decisão, quando a terapeuta lhe sugeriu isso?
Fui eu que propus. Pelo menos ali, a ideia era acontecer quando eu me sentisse preparada. Se calhar, o que senti é que precisava também de uma pausa maior do falar sobre o que me traumatizou, o que me traumatiza, e do esforço emocional. É um misto de sensações: “Deixa ver se me aguento porque também preciso de respirar”.
Às vezes é cansativo estar sempre a lidar com isto? A terapia ajuda a lidar com uma questão e às vezes só precisamos de parar um bocadinho e não lidar?
Talvez nesse sentido de espaçar um bocadinho o momento da terapia, que é como se fosse o momento mais duro. Então também espaçar um bocadinho é um misto de preocupação, ver se consigo, e um alívio por espaçar.
Às vezes a terapia é tão dura que as pessoas desistem. Nunca teve esses momentos?
Confesso que não. Sempre senti que recarregava um bocadinho as baterias. Por mais que saísse de rastos da terapia, mesmo quando saía de rastos, sentia que tinha largado coisas. O carregar as baterias não é no sentido de sair ótima, é largar peso. E isso sentia que acontecia sempre.
Já disse que acha que este é um processo para a vida inteira e que não é uma condição em que se coloque sequer a questão da cura. Já teve algum momento em que pensou “eu estou bem”?
Tivemos um momento, há muito pouco tempo — esta semana — em que estávamos eu e os miúdos à mesa, dois deles iam viajar, e estávamos a falar de viagens e da viagem que marcámos no verão. E começámos a falar de muitas viagens que queríamos fazer juntos e senti — agora vou comover-me, não sei porquê — que perdemos o medo de sonhar e querer coisas e momentos felizes para nós. E isso é sentirmos um bocadinho que estamos bem, não é? O facto de nos permitirmos querer coisas boas, criar memórias futuras, pensarmos em momentos felizes. Digo isto — e se calhar por isso é que me emociono — porque, durante um tempo, por mais que falássemos de planos futuros, de coisas boas, a seguir ficava o peso de o pai não estar, e de sermos só nós e termos de fazer isso sem o pai. E, neste momento recente, senti que pudemos planear e falar com alegria, porque pensar em viagens é uma coisa boa, sem medo e sem esse momento triste tão marcado.
Isso significa que, quando olha para a frente, para o futuro, já vê coisas felizes, ao contrário daquele início em que parece que tudo desapareceu?
Acho que já consigo ver coisas felizes, de alguma forma.
E sente que já recuperou a sua identidade, que se perde um bocadinho quando se perde alguém?
Aí sinto que estou no início.
É um processo dentro do processo?
Sim. Não deixo de sentir que houve uma Anna que morreu quando o Pedro morreu. E estou a nascer de novo. Por isso, ainda sou uma bebé. Passos pequeninos.
Mas firmes?
Sim. Sinto que a estrutura que tenho com os meus filhos me faz querer dar passos firmes, e isso é uma boa sensação.
Agradecimentos: Pestana Hotel Group
“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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