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Retrato de Anne pela irmã Charlotte. A Brontë mais nova nasceu há 200 anos

Getty Images

Retrato de Anne pela irmã Charlotte. A Brontë mais nova nasceu há 200 anos

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Anne. A mais sossegada e piedosa das irmãs Brontë foi a mais revolucionária

As histórias de pendor realista levaram a que fosse injustamente considerada a mais aborrecida das irmãs Brontë. A importância de temas como os direitos das mulheres tornaram-na uma revolucionária.

Desde a publicação da hoje infame biografia de Elizabeth Gaskell, The Life of Charlotte Brontë, que Anne Brontë tem sido descrita como a mais sossegada, a mais frágil e também a mais religiosa das irmãs Brontë. As suas obras, insistentemente comparadas às de Charlotte e à de Emily, tem sido apontadas como inferiores, desinteressantes e até aborrecidas devido ao seu pendor realista e o seu estilo menos aventureiro. Em termos estilísticos, talvez Anne seja de facto a Brontë menos revolucionária, mas o mesmo não se pode dizer sobre os temas que escolheu abordar nos seus romances e que, na época, causaram burburinho.

A estreia literária de Anne aconteceu com a coletânea de poemas que as três Brontë publicaram em 1846 sob os pseudónimos ambíguos de Currer, Ellis e Acton Bell. Na altura, as mulheres escritoras não eram bem vistas, e Charlotte, Emily e Anne escolheram nomes falsos para se protegerem. Em dezembro do ano seguinte, Anne publicou, juntamente com O Monte dos Vendavais de Emily, o seu romance de estreia, Agnes Grey, dois meses depois de ter saído Jane Eyre de Charlotte.

Tanto Agnes Grey como Jane Eyre relatam, de formas diferentes, os eventos da vida de uma governanta, o que levou algumas pessoas a assumirem que o primeiro se tratava de uma versão inicial do segundo. De uma maneira geral, as críticas não foram boas, mas foram melhores do que as do segundo romance da autora inglesa, The Tenant of Wildfell Hall (título que pode ser traduzido para português como A Inquilina de Wildfell Hall), atualmente considerado a sua grande obra. Anne — ou melhor, Acton — foi acusada ser vulgar, de usar uma linguagem “grosseira” e de tratar questões ofensivas e degradantes no seu livro.

Publicado no verão de 1848, Wildfell Hall conta a história de Helen Graham, uma jovem mulher que, contra os sábios conselhos da tia, decide casar com Arthur Huntingdon, um homem de escrúpulos duvidosos que quase arruinou a fortuna na família no jogo e na bebida. Temendo os efeitos que o convívio do marido controlador e manipulador pudesse ter no filho, o pequeno Arthur, Helen toma uma decisão drástica e radical — abandona Arthur e estabelece-se sozinha numa casa isolada que sustenta com os lucros do seu trabalho como pintora. Uma crítica às opções abertas às mulheres no século XIX, tema que Anne já tinha abordado no seu romance anterior, embora de maneira diferente, The Tenant of Wildfell Hall é hoje apontado como uma das primeiras obras feministas.

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Anne Brontë Reimagined foi publicado no Reino Unido pela editora independente Saraband, que tem vindo a disponibilizar biografias das três irmãs para assinalar os 200 anos do seu nascimento

O carácter feminista e de denúncia das obras de Anne Brontë é contrário à imagem de quietude e fragilidade que alguns autores, como a sua irmã mais velha e Elizabeth Gaskell, que se baseou no relato de Charlotte, tentaram passar. Havia mais em Anne do que o sossego e a piedade, e foi isso que Adelle Hay tentou mostrar em Anne Brontë Reimagined. A View from the Twenty-first Century. A biografia, publicada pela editora Saraband em janeiro, mês em que se assinalaram os 200 anos do nascimento da escritora, procura destruir alguns dos mitos que persistem em torno de Anne e mostrar que “o seu trabalho é mais relevante do que nunca no século XXI”. Os temas tratados por Anne Brontë, como explicou Hay em entrevista ao Observador, continuam a ser importantes.

A Brontë que se apaixonou pelo mar

Anne era a mais nova dos seis filhos do reverendo Patrick Brontë e de Maria Branwell. Nasceu a 17 de janeiro de 1820 — dois anos depois de Emily e quatro depois de Charlotte —, em Thornton, uma localidade nos arredores de Bradford, em Yorkshire. Quando tinha pouco mais de três meses, a família mudou-se para Haworth, também no norte de Inglaterra. O pai tinha sido apontado perpetual curate na igreja de St. Michael and All Angels. Os Brontë estabeleceram-se em frente ao templo, numa grande casa onde hoje fica o museu que lhes é dedicado. A nova posição e salário deram a Patrick a possibilidade de dar um maior conforto à sua larga família (na casa dos Brontë, viviam dez pessoas, contando as duas criadas, as irmãs Nancy e Sarah Garrs).

Cerca de um ano depois da mudança, Maria adoeceu. Morre a 15 de setembro de 1821, com cancro no útero, quando Anne tinha apenas 20 meses. Elizabeth Branwell, que tinha deixado temporariamente a sua casa em Penzance, na Cornualha, para tomar conta da irmã moribunda, decidiu ficar em Haworth até que as crianças tivessem idade para irem para a escola. A tia Branwell, como lhe chamavam os sobrinhos, acabou por passar o resto da vida com os Brontë, assumindo o papel de matriarca da família. “Comportava-se como uma mãe afetuosa para os meus filhos”, escreveu Patrick.

Depois da morte da mãe, Anne passou a dormir no quarto da tia. A filha mais nova de Patrick Brontë era assumidamente a favorita de Elizabeth Branwell. As duas tinham uma relação muito próxima — era com a tia Branwell que Anne passava a maior parte do tempo quando os irmãos, mais velhos do que ela, estavam na escola. Patrick, que sempre prestou especial atenção à educação dos filhos, deu-lhes aulas até achar que tinham idade suficiente para estudarem fora de casa. Anne entrou para a escola — a Roe Head, perto de Dewsbury, onde Charlotte trabalhava como professora — quando tinha 15 anos. Frequentou-a apenas durante dois, entre 1835 e 1837. No final do primeiro ano, recebeu um prémio por boa conduta.

O resto da sua educação foi-lhe administrada pela tia Branwell e Charlotte, mas também pelo pai, que se encarregou mais de perto da educação do irmão. Patrick pertencia à ala evangélica da Igreja de Inglaterra, mas a tia Branwell era metodista. Isto significa que tinham visões diferentes em relação à salvação universal e individual, um tema que muito inquietava Anne e que terá sido a causa de uma grande crise espiritual em 1837, que coincidiu com um “ataque severo de febre gástrica”. Apesar de uma cristã dedicada, a autora de Agnes Grey nunca deixou de questionar aquilo que não lhe parecia injusto. A maneira como encarava certas questões religiosas, incluindo a da salvação, surge refletida nos seus dois romances, mas talvez mais em The Tenant of Wildfell Hall.

Anne nasceu em Thornton, mas foi em Haworth que passou toda a sua vida. É na antiga casa da família que hoje funciona o museu dedicado às Brontë

AFP/Getty Images

De acordo com Adelle Hay, especialista na obra das Brontë, Patrick deu às suas filhas, não apenas a Anne, “uma educação pouco convencional. Enquanto a a tia Branwell deu às raparigas as ferramentas necessárias para gerir uma casa, como coser, bordar, etc., elas também aprenderam disciplinas tradicionalmente mais masculinas, como os clássicos e Latim, com o irmão e o pai. O privilégio de Anne neste aspeto fez com que tivesse mais consciência daquelas que não o tinham”. A mais nova das três Brontë era “uma grande defensora da educação para raparigas e mulheres, e sabia que a educação podia abrir mais portas no futuro”.

Na altura de Anne, as oportunidades que estavam abertas às mulheres de classe média eram poucas ou quase nenhumas. Para aquelas que não eram casadas, a única profissão possível era a de professora ou de governanta. Anne trabalhou para duas famílias, os Ingham de Blake Hall, uma localidade perto de Mirfield (1839-1840), e os Robinson de Thorp Green, em York (1840-1845). Foi na companhia destes que Anne visitou Scarborough, uma localidade costeira no norte de Inglaterra onde viu o mar pela primeira vez. O local marcou-a profundamente e, como escreveu Adelle Hay, “tornou-se sem dúvida num dos sítios favoritos de Anne, e o seu amor pelo mar faz aparências regulares no seu trabalho”.

Anne Brontë publicou o seu romance de estreia, Agnes Grey, dois anos depois de ter saído de Thorp Green e um ano depois do lançamento da coletânea de poemas de Currer, Ellis e Acton Bell, os pseudónimos escolhidos pelas irmãs Brontë para mascararem o facto de serem mulheres. A sua relação com a escritora era, contudo, bem mais antiga. Tal como aconteceu com os irmãos mais velhos (Branwell incluído), foi na infância Anne que escreveu os primeiros textos, poemas e pequenas histórias, muitas vezes em estreita colaboração com Emily, com quem criou o mundo imaginário de Gondal, que a autora de O Monde dos Vendavais depois transformou em poesia. Apesar da forte ligação que tinham em crianças, as duas irmãs acabaram por se distanciar com a idade, sobretudo no que à literatura dizia respeito — Emily continuou a explorar o domínio do fantástico, enquanto Anne optou por histórias mais realistas, como a da governanta Agnes Grey.

"Elas também aprenderam disciplinas tradicionalmente mais masculinas, como os clássicos e Latim, com o irmão e o pai. O privilégio de Anne neste aspeto fez com que tivesse mais consciência daquelas que não o tinham."
Adelle Hay, autora de Anne Brontë Reimagined

A opção literária de Anne, de construção de narrativas credíveis, tem sido usada para acusar a autora de ter escrito livros que nada mais são do que um decalque da vida real. Nesta lógica, o seu primeiro romance tem sido apontado como um relato autobiográfico das suas experiências no mundo do trabalho, enquanto o marido abusador e alcoólico de The Tenant of Wildfell Hall tem sido associado à figura trágica do seu irmão Branwell (as personagens mais violentas das outras Brontë tem sido vítimas da mesma associação), argumentos que têm sido usados ao longo das décadas para diminuir o valor literário da obra de Anne.

Adelle Hay não concorda com esta associação entre Branwell e Arthur Huntingdon. “Branwell é famoso na cultura popular por ser um viciado e por tornar a vida das suas irmãs extremamente difíceis. Existem paralelos entre Branwell e algumas das personagens das suas irmãs, nomeadamente Arthur Huntingdon e os seus amigos que bebiam demasiado e que depois se tornam violentos. Deve ter sido muito difícil para Charlotte, Emily e Anne ver que o seu irmão não correspondia às expectativas enquanto filho único, tal como Lord Lowborough [outra personagem de Wildfell Hall], que sabe que não pode continuar a viver como vive e tenta mudar, mas os seus amigos arrastam-no para baixo outra vez”, começou por dizer a investigadora, acrescentando que não é da opinião de que todas as personagens “chocantes” e “libertinas” das Brontë, como Heathcliff e Hindley de O Monte dos Vendavais ou Rochester de Jane Eyre, fossem baseadas no único filho de Patrick Branwell.

Charlotte, Emily e Anne tiveram acesso a todo o tipo de leituras enquanto cresciam, a clássicos como "Paraíso Perdido" e a publicações como "Blackwood’s Magazine"

AFP via Getty Images

“Acho que isso enfraquece os seus poderes imaginativos”, afirmou ao Observador. “Todas os Brontë, incluindo Branwell, criaram personagens desde criança. Branwell e Charlotte inventaram personagens como os Northangerland ou o Duke of Zamorna; exageram personagens românticas inspiradas por um conjunto de materiais de leitura pouco convencionais. Liam muito e diferentes materiais, incluindo clássicos como a Ilíada ou Paraíso Perdido de Milton, a obra poética de Lord Byron ou publicações populares na época, como a Blackwood’s Magazine. Também lia e tinham interesse em política, e todas estas influências podem ser encontradas nos seus textos da juventude. A sua imaginação permitiu-lhes criar personagens credíveis e histórias fantásticas, em parte inspiradas pelas suas leituras. Também é possível que aspetos da vida real tenham entrado nas suas histórias, onde foram exagerados ou ficcionados.”

Branwell morreu no mesmo ano em que Anne publicou The Tenant of Wildfell Hall. Tinha 31 anos e sofria de tuberculose. As suas últimas palavras, proferidas ao amigo John Brown no dia 24 de setembro de 1848, terão sido: “Ao longo da minha vida, não fiz nada de bom ou grandioso”. Foi sepultado no mesmo talhão do cemitério da igreja de St. Michael and All Angels onde estavam as duas irmãs mais velhas e a mãe. Foi seguido por Emily, menos de dois meses depois. A autora de O Monte dos Vendavais tinha começado a sentir os primeiros sintomas da doença pouco depois do funeral do irmão, mas recusou-se sempre a ser vista por um médio. Morreu a 19 de dezembro no sofá da sala de estar, porque já não tinha forças para subir as escadas que davam acesso ao seu quarto. Tinha 30 anos.

Em janeiro, Anne foi diagnosticada com a doença que tinha matado os dois irmãos. Ao contrário de Emily, aceitou todos os tratamentos que lhe foram recomendados e viajou para Scarborough à procura de ares mais puros. Charlotte, que estava relutante em deixar a irmã viajar, acabou em aceder a acompanhá-la a York, juntamente com Ellen Nussey, sua amiga de longa data. A viagem foi custeada com uma pequena herança, 200 libras, que Anne tinha recebido da madrinha, Fanny Outhwaite. Anne morreu a 28 de maio de 1849, três dias depois de ter chegado a Scarborough após uma paragem em York, num quarto com vista para o mar. As suas últimas palavras foram dirigidas à sua irmã: “Tem coragem, Charlotte! Tem coragem”, disse-lhe. Foi sepultada no cemitério da localidade, junto à igreja de St. Mary. É o único membro da família Brontë que não se encontra em Haworth.

The Tenant of Wildfell Hall, a obra “grosseira e repugnante” que Charlotte quis esquecer

A obra mais conhecida de Anne Brontë é o seu romance de estreia, Agnes Grey, mas é hoje unânime que o seu melhor livro é The Tenant of Wildfell Hall, publicado apenas seis meses depois, em julho de 1848. É simplesmente maior, mais maduro e também mais revolucionário. Na altura, contudo, a obra não foi recebida com elogios, mas com desagrado. De uma maneira geral, as críticas ao primeiro romance de Anne não tinham sido positivas — a obra foi acusada de ser vulgar e inferior aos trabalhos das outras Brontë —, mas as de Wildfell Hall foram devastadoras.

Um crítico censurou a autora — que na altura julgava ser um autor, Acton — por usar uma linguagem “grosseira e repugnante”, enquanto outro a acusou de ter tendência “para transformar de forma degradante a paixão em apetite”. O jornal The Spectator foi especialmente duro, como apontou Adelle Hay na sua biografia, afirmando: “The Tenant of Wildfell Hall, como o seu predecessor, sugere a ideia de que existem habilidades consideráveis que foram mal aplicadas. Existe poder, efeito, e até natureza, apesar de um tipo extremo, nas suas páginas; mas parece existir no escritor um amor mórbido por aquilo que é grosseiro, para não dizer brutal; de maneira que os temas de que trata não são atrativas (…). Existe uma grosseria de tom em todos os escritos destes Bell, que coloca um tema ofensivo no seu pior ponto de vista”.

Apesar das críticas destrutivas, o romance vendeu relativamente bem e teve uma segunda edição apenas um mês depois da primeira com um prefácio da autora, em que esta explicou as razões para ter escrito um romance que muitos consideram de mau gosto. “O meu objetivo ao escrever as páginas seguintes não foi simplesmente divertir o leitor, nem satisfazer o meu próprio gosto ou agradar à imprensa e ao público: desejava contar a verdade, pois a verdade transmite sempre a sua própria moral àqueles que estão abertos a recebê-la”, escreveu Anne. “Sei que existem personagens assim, e se consegui evitar que um jovem imprudente siga os seus passos ou prevenir que uma rapariga irrefletida caia no mesmo erro que a minha heroína, o livro não foi escrito em vão.”

“Os críticos que analisaram os seus trabalhos ficaram chocados com as coisas para as quais ela atraiu a atenção nos seus romances — violência doméstica, crianças que seguem os passos dos seus pais e tios violentos, abuso emocional e os direitos matrimoniais da mulher.”
Adelle Hay, autora de Anne Brontë Reimagined

Anne pretendia alertar os seus leitores para certos perigos, “com transparência e sinceridade”, como afirmou Adelle Hay. Mas a forma clara com que o fez chocou os seus contemporâneos: “Os críticos que analisaram os seus trabalhos ficaram chocados com as coisas para as quais ela atraiu a atenção nos seus romances — violência doméstica, crianças que seguem os passos dos seus pais e tios violentos, abuso emocional e os direitos matrimoniais da mulher”. Até a sua irmã mais velha parece ter tido dificuldades em compreender as suas escolhas literárias — depois da morte de Anne, Charlotte tentou apagar Wildfell Hall da história bibliográfica das Brontë, defendendo que o romance tinha sido um erro e que nunca devia ter existido. A escritora chegou inclusivamente a pedir ao seu editor que não o reeditasse enquanto fosse viva. A autora de Jane Eyre é também responsável por muitos dos mitos que persistem ainda hoje em relação a Anne, tal como o é em relação a Emily.

Depois da morte das irmãs, Charlotte Brontë decidiu tomar em mãos a tarefa de editar e divulgar as suas obras. Foi com esse intuito que, em 1850, publicou um volume revisto dos seus romances de estreia, O Monte dos Vendavais e Agnes Grey, acompanhado por uma “Biographical Notice of Ellis and Acton Bell”, escrita por si. Foi a primeira nota de carácter biográfico de Emily e Anne e foi nesta que se confirmou, pela primeira vez, o género das autoras, que tinham escolhido pseudónimos ambíguos para assinarem as suas obras devido ao preconceito contra mulheres escritoras.

Apesar de Emily ser o principal alvo das considerações de Charlotte Brontë — que escreveu, para o mesmo volume, um prefácio a O Monte dos Vendavais — Anne não escapou às críticas da irmã. A primeira referência surge quando Charlotte conta como descobriu “acidentalmente” os poemas de Emily, que seriam publicados no volume Poems by Currer, Ellis and Acton Bell (1846), e passou “dias” a “persuadi-la que aqueles poemas mereciam ser publicados”. “Entretanto, a minha irmã mais nova produziu silenciosamente algumas composições suas e sugeriu, uma vez que tinha gostado das da Emily, que podia ver as dela. Não podia ser nada além de uma juíza parcial, mas pensei que aqueles versos também tinham um pathos doce e sincero.”

A igreja onde a família Brontë foi sepultada, junto à casa onde moravam em Haworth, EM Yorkshire

Getty Images

Apontando que os romances de estreia das irmãs tinham sido recebidos de forma “empobrecedora para as duas autoras”, Charlotte disse que The Tenant of Wildfell Hall teve igualmente “uma receção desfavorável”. Neste caso, porém, a escritora afirmava ter compreendido a razão das duras críticas: “A escolha do tema foi um erro total. Nada mais contrário à natureza da escritora podia ter sido concebido”, declarou a escritora, opinando que “os motivos que ditaram esta escolha foram puros mas, acho, ligeiramente mórbidos”.

Segundo Charlotte, Anne, uma mulher de natureza “sensível, reservada e depressiva”, deixava-se facilmente impressionar com o que via (“ficava gravado na sua mente; fazia-lhe mal”, escreveu) e, no caso das coisas terríveis, “ficava a pensar sobre isso até acreditar que era seu dever reproduzir cada detalhe (claro que com personagens, incidentes e situações fictícios) para avisar os outros”. Era um trabalho doloroso, que fazia com que Anne o odiasse, mas a autora era, segundo a irmã, incapaz de desistir dele — achava-o necessário. “Esta resolução bem intencionada levou-a a fazer interpretações erradas e a ser alvo de algum abuso, que ela aguentou, como se fosse seu hábito aguentar o que era desagradável com firme e branda paciência”, disse Charlotte, estabelecendo a ideia, que ficaria para a posteridade, de que Anne era uma cristã fervorosa, “muito sincera”, mas com uma religiosidade que tinha “um tom de melancolia” que pintou “uma sombra triste” na “sua vida breve e inocente”.

A “Biographical Notice” é essencialmente uma explicação das razões que levaram Emily e Anne a escreveram dois romances que pouco ou nada tinham a ver com o que era literariamente aceitável na época. Charlotte tentou explicá-lo descrevendo as personalidades das irmãs, mas acabou por dar um tom pejorativo ao texto. Alguns autores consideraram-no propositado, como se a escritora quisesse diminuir o valor e importância das obras das outras Brontë. A ideia é hoje afastada pela maioria dos estudiosos, mas a imagem que Charlotte pintou das irmãs — Emily como uma antissocial e Anne como uma beata fervorosa –, e que Elizabeth Gaskell ajudou a perpetuar, ainda permanece. “Infelizmente, esta é a versão de Anne — uma ‘sofredora, abnegada, refletiva e inteligente, cuja reserva constitucional e taciturnidade a mantiveram na sombra, que cobriu a sua mente, e sobretudo os seus sentimentos, com uma espécie de véu semelhante ao de uma freira, que raramente tirava — que ficou e na qual as pessoas ainda acreditam”, considerou Adelle Hay.

O trabalho “mais notório”, “mais revolucionário”, de uma mulher “à frente do seu tempo”

Adelle Hay é uma das especialistas que defende que The Tenant of Wildfell Hall é o trabalho “mais notório” e “revolucionário” de Anne. “Em The Tenant of Wildfell Hall, Anne Brontë escreveu sobre coisas acerca das quais a sua audiência vitoriana podia ter conhecimento em privado, mas que não julgava apropriado discutir em público”, começou por dizer ao Observador. “Helen Graham [a personagem principal] experiencia um intenso abuso emocional da parte do seu marido, Arthur, um viciado no jogo e alcoólico que é muito controlador e manipulador. Quando a Anne estava a escrever o seu livro, era expectável que uma mulher fizesse tudo o que estava ao seu alcance para fazer com o casamento funcionar e o marido feliz. Helen Graham mostra-nos quão solitária e insatisfatória este tipo de vida era”, disse Hay.

“Quando Helen eventualmente abandona o seu marido, levando o seu filho com ela, está a infringir a lei da aquele tempo. Enquanto mulher casada, ela era considerada propriedade do marido, assim como o seu filho. Helen, assim que sai de casa, sobrevive vendendo as suas pinturas. Todo o material de pintura, os quadros que vende e dinheiro que ganha pertence legalmente ao marido. Ao sustentar-se, ela estava também a infringir a lei. Escrever sobre uma artista bem sucedida que deixou o marido para proteger o filho seria revolucionário para altura, e certamente terá chocado os leitores e os críticos.”

Esta questão das oportunidades que existiam para as mulheres do século XIX já tinha sido abordada por Anne em Agnes Grey, romance sobre a vida de uma governanta, um dos poucos empregos possíveis naquele tempo. Neste aspeto, a grande diferença entre as duas obras é a de que Helen pertencia ao grupo de “pessoas para as quais Agnes trabalhava” — não se esperava que arranjasse um emprego. “Agnes faz-nos simpatizar com a condição das governantas e de outras criadas domésticas, Helen faz-nos simpatizar com aquelas mulheres que tinham de se casar, como a aluna de Agnes, Rosalie. Agnes Grey retratada de forma poderosa os sentimentos de descontentamento e solidão provocados por um trabalho de que não se gosta, sabendo que não existe muitas outras opções. Wildfell Hall aborda alguns dos problemas sérios que Agnes via na sociedade, sobretudo a questão da autonomia das mulheres”, apontou Hay.

"Anne Escreveu uma história muito feminista sobre uma ‘mulher caída’ usando uma voz autêntica e foi capaz de simpatizar com as suas personagens femininas de uma forma que os escritores do seu tempo não tinham sido capazes de fazer. Criou empatia com uma mulher que seria ostracizada pela sociedade.”
Adelle Hay, autora de Anne Brontë Reimagined

Adelle Hay não considera que “Wildfell Hall é melhor do que ‘Agnes Grey’ em termos de escrita propriamente dita”, pois “existem passagens lindíssimas nos dois livros e a impressionante inteligência psicológica de Anne é evidente nas personagens e nos diálogos de ambos”. Contudo, defende que The Tenante of Wildfell Hall “é mais revolucionário no tema em que se foca, do qual muito ainda faz sentido para os leitores modernos”. Isso quer dizer que, nesse sentido, as obras de Anne são mais modernas do que as das suas irmãs? “Ainda nos conseguimos relacionar com os livros de Emily e Charlotte, como O Monte dos Vendavais ou Jane Eyre, mas num sentido mais abstrato”, considerou Hay, explicando que “quando lemos esses romances podemos relacionarmo-nos com os temas, como o desejo de Jane de ser levada mais a sério e de ser vista como igual.”

“Os acontecimentos e temas sobre os quais Anne escreve são definitivamente modernos, no sentido em que ainda nos podemos identificar com eles hoje, desde a solidão e frustração de Anne em relação à sua posição, passando pela decisão de Helen de abandonar o marido e a sua opinião em relação à educação e aos direitos das mulheres. Estas são questões com as quais, infelizmente, ainda nos podemos identificar”, disse ainda a especialista. “O poder de Anne está em pegar em temas importantes e em colocar as personagens em situações que não conseguimos ignorar. Ela quer que vejamos que estas são essas situações que podem acontecer na vida real, e quer que sejamos capazes de sentir, juntamente com ela, que isto não está certo.”

Anne Brontë não foi a primeira escritora falar da questão da autonomia das mulheres (o famoso e pioneiro ensaio feminista A Vindication of the Rights of Woman, de Mary Wollstonecraft, foi publicado em 1792, por exemplo) ou de relações abusivas, mas não deixa de ser impressionante que o tenha feito na primeira metade do século XIX quando estes temas não eram habituais na literatura. Por essa razão, The Tenant of Wildfell Hall é muitas vezes apontado como o primeiro romance feminista, e também porque Helen é “uma personagem profundamente feminista”.

Anne Brontë foi sepultada em Scarborough, longe da casa da família e junto ao mar. É a única Brontë que não está em Haworth

Universal Images Group via Getty

“Ela abandona o seu marido quando sabia que era ilegal fazê-lo, tira o filho de uma situação perigosa e ganha a vida como pintora numa altura em que seria muito difícil [mas não impossível] para uma mulher o fazer. Ela até se declarou ao homem de quem gostava, Gilbert, no final do livro — ela entrega-lhe uma rosa-de-natal com a qual faz uma comparação, perguntando: ‘Olha, Gilbert, continua fresca e florida como uma flor deve ser, apesar da neve que está nas suas pétalas. Recebe-la?’. Mas nada disso poderia ter impacto se não fosse pelo poder da escritora. Anne escreveu com a sua própria voz, ela não estava a tentar ser como os escritores homens do seu tempo. Escreveu uma história muito feminista sobre uma ‘mulher caída’ usando uma voz autêntica e foi capaz de simpatizar com as suas personagens femininas de uma forma que os escritores do seu tempo não tinham sido capazes de fazer. Criou empatia com uma mulher que seria ostracizada pela sociedade.”

A decisão da autora de escrever sobre estes temas explica-se, não por razões temperamentais, como Charlotte tentou fazer crer, mas pela pela própria experiência da autora. “Enquanto mulher, Anne teria bem noção das opções que tinha. Sabia, desde tenra idade, que a família teria de se sustentar. A casa em que viviam não lhes pertencia, pertencia à Igreja, e assim que o seu pai morresse não poderiam continuar a morar nela. Ao fazer planos para o seu futuro, Anne teria percebido as dificuldades que iria enfrentar enquanto mulher e que as outras mulheres também enfrentavam.”

Passados 200 anos do nascimento de Anne, tornou-se “definitivamente mais fácil” compreender a mensagem que a irmã de Charlotte e Emliy Brontë tentou passar aos seus leitores. “Podemos ler o seu romance num contexto histórico e perceber como surgiu. Os leitores contemporâneos de Anne teria conhecimento de problemas como os direitos e oportunidades das mulheres e as questões sobre as quais Anne escreveu em Wildfell Hall, mas as atitudes em relação a eles eram muito diferentes”, apontou Adelle Hey. “O livro vendeu muito bem quando foi originalmente publicado, mas também foi muito criticado. A violência foi vista como gratuita e vulgar. É interessante ver como as coisas mudaram e como a receção do livro é diferente. Acho que Anne estava à frente do seu tempo quando escolheu escrever sobre as coisas sobre as quais escreveu.”

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