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Antes, durante e depois do fogo. Como a vida de seis pessoas mudou numa noite

Homens, mulheres, novos e velhos. O fogo destruiu grande parte do concelho de Pedrógão Grande e eles sobreviveram. Agora, tentam regressar à normalidade. Uma história oral de uma semana de inferno.

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A vida antes do fogo

André Pais
André Pais
21 anos, Barraca da Boavista
"Em setembro do ano passado comecei uma empresa de limpeza de florestas com o meu pai. Vi uma oportunidade, porque a nossa região tem muitos pinheiros e muitos eucaliptos, é o que há mais para aqui. E então fiquei a saber que o IEFP ajudava jovens a fazer empresas e montei uma. Eles deram-me 22 500 euros e deram-me um prazo de quatro anos para pagar, sem juros. Contratei o meu pai, que tinha a carta de pesados e já tinha trabalhado neste ramo, e comprámos material. Um camião de 1999, já em terceira mão, e moto-serras. O nosso trabalho consistia em ir às terras dos proprietários, limpar aquilo e depois levávamos as madeiras para vender às fábricas de celulose. 
Isto era a única coisa a trazer dinheiro cá para casa. A minha mãe não trabalha, porque temos a minha irmã, que tem oito anos, e precisa de ajuda. Ela é deficiente, não anda nem fala, e precisa de estar sempre com a minha mãe. Só há pouco tempo é que a empresa começou a levantar. Agora é que isto estava a correr bem. Já tínhamos investido o que havia para investir e já tínhamos uma boa quantidade de madeira para vender. Chegava para irmos fazendo as nossas vidinhas e pagar as dívidas, que são as da empresa e o empréstimo da casa."
Maria Edite
Maria Edite
53 anos, Vale da Nogueira
"Fui emigrante. Quando trabalhei na Bélgica e na França é que comprei este terreno onde construí a casa. Depois, voltei e construí. Tenho construído, devagar. Acho que não tenho força para começar do zero outra vez, é impossível. Fiquei sem casa no incêndio, sem casa e sem nada."
Maria do Céu Ferreira
Maria do Céu Ferreira
57 anos, Pobrais
"Isto aqui é uma aldeia pequenita, nem trinta somos aqui, toda a gente se conhece, alguns até somos família – outros não, mas é a mesma coisa. É uma dor muito grande, esta que sinto. Nunca vi nada assim na vida. Nunca imaginei que isto acontecesse aqui. Nunca. Há tempos houve uma pessoa daqui que morreu no fogo, mas morreu porque foi fazer uma queimada acolá, ‘baralhou-se’ e acabou por morrer no hospital. Mas um incêndio como este nunca vi. Este fogo foi um inferno para nós. Um inferno!… Ninguém tinha que morrer. Não tinham que morrer. Se ficassem em casa não morriam. Porque é que foram para a estrada?! Porquê?…"
Ivone Silva
Ivone Silva
71 anos, Salaborda Velha
"Não sou daqui. Ou melhor: nasci aqui mas vivo em Lisboa, na Portela. Só vinha cá nas férias. Agora venho, porque estou reformada e gosto de estar aqui. Habituei-me a isto. Não me lembro de um fogo assim como este. Isto há coisa de vinte-e-tal anos até houve um, que começou acolá em cima na serra, mas não chegou à minha casa – na altura não vivia aqui, vivia numa outra casa em Salaborda. O meu filho tinha quatro aninhos quando foi o outro incêndio. Mas não chegou cá."
Alzira Quevedo
Alzira Quevedo
76 anos, Barraca da Boavista
"Tenho 76 anos e o meu marido tem 80. Eu fui doméstica, ele trabalhou, era ajudante de motorista aqui dos madeireiros. Carregou muitos bidons de resina. Trabalhou muito no duro, no tempo dele. Foi a nossa vida. Construímos tudo muito devagarinho. Viemos para esta casa há 50 anos, quando casámos. Tínhamos um filho, que nos morreu quando tinha 18. Já foi há 30 e tal anos. Foi um acidente de trabalho. Estava a mudar linhas num poste que estava mal seguro e caiu. Caiu junto com o poste. Teve morte imediata. Mais tarde, ficámos cá com o nosso sobrinho, que tem trissomia 21. Ele vivia com os pais. Mas primeiro morreu o pai, depois morreu a mãe. Então veio viver connosco. Ele gosta tanto da gente e a gente dele! Já não somos capazes de viver uns sem os outros. É como se fosse meu filho. 
Eu sempre me preocupei com incêndios. Temos um terreno mesmo em frente à nossa casa onde era silvas, onde era mato. Mandei uma carta registada para os donos a dizer que, se me acontecesse alguma coisa, eram eles responsáveis. Isto já foi há um ano ou dois. E eles foram lá tirar meia dúzia de pinheiros e o resto ficou lá tudo. Eu sempre disse que um dia isto ainda ardia tudo."
Tony Platt
Tony Platt
57 anos, Escalos Fundeiros
"Vim viver para Portugal em 2010. Sou inglês. Vim para Escalos Fundeiros com a minha mulher – que infelizmente morreu no ano passado. Vivo sozinho agora. Mas não me fui embora quando ela morreu – gosto desta pacatez. Era impossível para mim e para a minha mulher ter uma casa no campo em Inglaterra. Com o que tínhamos que pagar de hipoteca não era possível. Então encontrámos aqui uma casa. Ela sofria de stress laboral. E isto é um lugar pacato para se viver."

Sábado, 17 de junho: o fogo

Alzira Quevedo
Alzira Quevedo
76 anos, Barraca da Boavista
"O fogo veio todo de baixo. Eu e o meu marido começámos a ouvir uma zoada muito grande para o lado de Pedrógão. Vimos o fumo, depois veio a trovada. Disse para o meu marido: ‘Ou fugimos, ou morremos queimados’. O meu marido é muito agarrado à casa e só quando viu lume ao pé do vizinho é que aceitou sair comigo e com o nosso sobrinho. Fui buscar as chaves do carro, desci a escada. Quando abri a porta do carro veio um furacão muito grande e já nem tive tempo de ir para o volante. Fugimos os três a pé. Mas o meu marido olhou para trás e viu que abriu uma fogueira atrás da casa. Deu-lhe na cabeça para voltar para trás. Eu gritei muito por ele, gritei, gritei, gritei, mas ele não voltou. Só via lume, os pinheiros estouravam, os cavacos caíam por todo o lado. Pensei que se voltasse atrás para ir buscá-lo morríamos ali os três. Fugi com o meu sobrinho, descemos a estrada a correr. O meu marido ficou para trás. 
Chorei logo a morte do meu marido. Não o encontrava por lado nenhum. Mesmo assim, fui a um barracão aqui de um vizinho, onde estava muita gente, e perguntei por ele. Apontaram-me para um cantito e ele lá estava. Parecia um ninguém. Disse-me que veio a arrastar-se pela estrada, porque ele não podia com as pernas. Só depois é que chegou uma equipa de bombeiros, da Castanheira de Pera, que o levaram para o hospital. Eu fiquei sozinha na rua, com o meu sobrinho."
Ivone Silva
Ivone Silva
71 anos, Salaborda Velha
"Isto foi no domingo. Domingo?! Estou tão baralhada… Já não sei se foi sábado ou se foi domingo. Sábado, sábado. Foi no sábado. Ele começou aqui mesmo em frente a nós. Lá do outro lado da ribeira [de Pera]. E depois começou a ir para o lado de Pedrógão Grande. O vento mudou de repente, começou a soprar mais forte. E ainda era de dia quando chegou aqui ao pé de nós. Ficou tudo escuro de um momento para o outro, não se via nada, nadinha. Aquilo até parecia que caíam bolas à nossa frente – nem sei explicar bem –, como que bolas de fogo. Havia tornados e bolas de fogo que caíam à nossa frente. Eu e o meu marido estávamos a jantar na casa de um primo meu, lá no fundo da aldeia. Entretanto, quando vimos que o fogo estava a chegar ao pé da nossa casa, saímos da casa do meu primo, chegámos aqui, a família em frente estava a ir embora – diziam-nos: ‘Vão-se embora, vão!” –, o meu marido ainda tentou ligar. Ainda tentámos ligar aos bombeiros mas os telefones não funcionavam. Foi então que gritei para o meu marido: ‘Armando, vamos fugir ou morremos todos queimados'. E fugimos."
Maria do Céu Ferreira
Maria do Céu Ferreira
57 anos, Pobrais
“O que nos salvou foi o tanque, que estava cheio de água – mergulhámos lá dentro quando o fogo chegou e salvámo-nos. Só aqui na casa à frente da minha morreram-me duas raparigas – uma ainda é minha prima, a outra é afilhada. Mas a casa delas não ardeu – morreram na estrada. A minha Tânia tanto pediu, tanto gritou para elas virem para o tanque e não irem. Não quiseram ficar e a casa está interinha. Inteirinha!… A casa onde vivemos não ardeu, não. Mas os barracões aqui atrás ficaram todos queimados. Como é que foi? Nem sei. 
Nós estávamos em casa, aquilo chegou por todos os lados, o vento tinha uma força como nunca vi – até levantou o telhado de metal dos barracões. Nem sei como escapou a casa. Nem sei… Os barracões tinham roupa, cobertores, televisões, mobília de sala, as bicicletas dos netinhos, moto-serras, tinha uma máquina de lavar, um frigorífico – a minha filha mudou-se de Peniche para cá e tínhamos de guardar aqui o que era da outra casa. Mas conseguimos salvar os carros e o trator. Fui eu que os levei daqui, debaixo do fogo. Nem sei como é que consegui. Não sei como é que consegui conduzir o trator até ao largo, não via nada com o fumo, havia labaredas por todo o lado, e pensei: 'Pronto, é o fim… Vou morrer!' [Chora.] Nem me quero lembrar disso. 
[Toca o telemóvel de Maria do Céu no avental. Atende-o e volta a emocionar-se mal o faz: ‘Estou? Natalina? Oh… estou mais ou menos. Preciso de ir ter consigo, não temos nadinha, estamos bem, mas preciso de ir ter consigo…’] As galinhas salvaram-se, mas estão a morrer. Os pintainhos estão todos a morrer. Nem me quero lembrar, tudo a arder, tudo a explodir. A nossa sorte foi ter atirado as botijas de gás ao tanque. Ainda lá estão. A seguir fomos nós lá para dentro. Não sei quantas horas é que estive no tanque. Talvez desde as oito da noite até de madrugada. Perdi a noção das horas. Depois de sairmos do tanque, o meu marido ainda foi pedir uma escada emprestada a um vizinho, subiu para cima do telhado, e estivemos a carregar baldes de água do tanque lá para cima, para ele molhar o telhado todo e a casa, para que não ardesse.”
Tony Platt
Tony Platt
57 anos, Escalos Fundeiros
"O fogo começou aqui mesmo, em Escalos Fundeiros. Foi mesmo lá em baixo. Nem sei bem onde. Mas sei que foi ao começo da tarde, depois do almoço. Não estava em casa. Estava a sair da aldeia quando me apercebi do fumo. Então, voltei logo para trás. A minha primeira reação foi tirar coisas de valor de dentro de casa e colocá-las no carro. Depois, fui ver se estava alguém na casa do meu vizinho – estava; então ajudei-o a tentar salvar as coisas dele também. Não vieram cá os bombeiros; passavam por aqui, mas só para seguir para outro sítio onde o fogo estava. Isto foi tudo muito veloz, em poucos minutos chegou aqui, em poucos minuto — como o vento era muito forte — estava lá mais abaixo. O fogo chegou às traseiras da casa mas não passou para o lado de cá da estrada. Não sei como é que não passou. A casa está bem."
André Pais
André Pais
21 anos, Barraca da Boavista
"Eu tinha ido a Pombal com o meu pai tratar de umas coisas para a empresa e chegámos a casa por volta das 19h00. Estava um fumo imenso. O fogo estava para os lados de Pedrógão Grande e então pegámos no trator para o levarmos para longe daqui. Lá onde fomos também havia chamas por todo o lado, eu e o meu pai ainda chegámos a ligar para o 112. Às tantas disseram: ‘Desenrasque-se, isto está tudo a arder e os bombeiros não conseguem chegar aí’. Desisti de procurar ajuda. Comecei logo a dizer mal da vida, porque as chamas estavam mesmo ao nosso lado e tinham cerca de 20 metros de altura. 
Nisto tudo, a minha mãe estava sozinha em casa com a minha irmã. Assim que deixámos o trator eu e o meu pai voltámos para trás. Quando passámos na estrada, a nacional 236, já tinha ardido tudo. Estava tudo preto e havia fumo por todo o lado. Vimos três senhoras no chão, deitadas no alcatrão, que quase atropelámos. Queríamos pedir ajuda, mas já não havia rede para os telemóveis, já não havia nada. O meu pai ficou lá e eu fui com o carro pedir ajuda. Falei com a GNR, que só chegaram lá depois de uma hora e tal. Daquelas senhoras, duas acabaram por morrer. E havia ainda um senhor que nem o vimos, mas a polícia encontrou-o com uma lanterna. 
Quando vim até casa, vi que o fogo já tinha limpado tudo. Vi uns vizinhos sentados num banco, na rua, e perguntei pela minha mãe. Eles disseram que tinham vindo cá e ninguém tinha dito nada. Fiquei logo a pensar o pior. Quando cheguei a casa só sabia gritar pela minha mãe. Mas depois lá a encontrei. Estava na cave, com a minha irmã."
Maria Edite
Maria Edite
53 anos, Vale da Nogueira
"Comecei a ouvir a zoada, a zoada do lume a chegar. Aqui o fogo chegou por volta das seis e meia. Às sete horas a minha casa já ardia. Não tive tempo para tirar nada. O meu homem só conseguiu fugir das chamas com o trator. Não houve hipótese de mais nada. Se a gente tivesse tido hipótese tínhamos levado o porco que estávamos a matar – ao menos tínhamos aproveitado o porco para comer. Ninguém me ajudou. Nós ligámos ao INEM para vir buscar-nos, eles atendiam mas diziam: ‘Tenham calma que a gente já vai’. Mas não vieram. Os bombeiros nem atendiam. Só ardeu a minha casa e a de um vizinho na aldeia."

O regresso

Alzira Quevedo
Alzira Quevedo
76 anos, Barraca da Boavista
"Depois do incêndio, nem quis olhar para a minha casa. Mesmo assim um vizinho convenceu-me a ir lá. ‘Venha lá, Tia Alzira.’ Fomos. Quando cheguei, estava tudo destruído, tudo partido, tudo queimado. Tudo. Desde esse dia que fui com o meu sobrinho para a casa de um primo, ali nos Pobrais. De vez em quando os meus primos choram agarrados a mim. Eu já não tenho lágrimas, já sequei tudo. Tudo o que tinha para chorar, chorei quando achava que o meu marido estava morto. Ele agora está no hospital. Tem os braços todos queimados, tem as mãos todas enfaixadas, de se ter arrastado pela estrada. O meu marido está muito em baixo. Fui logo vê-lo ao hospital, lá em Coimbra, no domingo. Ele dizia: ‘Leva-me para a nossa casa’. Respondi-lhe: ‘Álvaro, nós não temos casa’. De dia para dia ele está mais triste. Mas eu não lhe escondo nada. Não quero que ele chegue cá e fique ainda pior. Ele tem de saber como as coisas estão aqui. Então, todos os dias conto-lhe uma coisa nova. Para ele se habituar, coitadinho. 
Agora, estamos dependentes de quem nos quiser bem. Hoje fomos à farmácia e tivemos de gastar 100 euros ao meu primo, para levar medicamentos para mim, para o meu marido e para o sobrinho. E ainda tenho de ir ao alfaiate fazer calças para o meu marido, porque ele é muito forte e não arranja roupa que lhe sirva. Tudo o que tinha ardeu. Tudo, não temos nada. Agora vamos andando. Vamos andando até que Deus nos deixe. Mas tenho momentos em que antes queria ter morrido. Mas faço falta a muita gente. O meu marido não vive sem mim. E o miúdo, então, nem se fala. Mas fiquei numa situação muito difícil. Mas, pronto. Estamos cá."
Ivone Silva
Ivone Silva
71 anos, Salaborda Velha
"A casa, graças a Deus, não ardeu. Mas tenho o quintal todo queimado. Venham ver, venham. Foi tudo muito rápido, muuuito. Em questão de minutos. Não houve tempo para salvar nada. Está tudo ardido. Vê? Tudo ardido. A horta, as couves, a vinha, tudo ardido. Não sei como é que a casa não ardeu. Isto foi uma aflição. A gente ainda não sabe o que pensar. Perdi muitos amigos. Conhecia quase toda a gente que morreu no incêndio, os que são daqui, de Pedrógão. Vizinhos aqui de Salaborda não morreu ninguém, graças a Deus. Mas já fui a funerais – e estamos à espera dos outros. Dormir? Ontem até tive que ir ao médico – não conseguia dormir. É muita coisa a remoer-me na cabeça. Nós escapámos, a casa escapou, foi um milagre, mas custou-me muito tudo isto, perdi muitos amigos. 
Agora é limpar tudo. Ando farta de limpar: lixo, cinza, tudo o que cai das árvores. E é assim. Mas aquelas pessoas, coitaditas, que morreram… [Suspira] Uma família de pessoas em Várzeas, com uma casa tão boa, o fogo nem lá chegou e elas saíram de casa para morrer todos. Eram nossos conhecidos, gente da minha criação. O que é que se há-de fazer? Agora é ajudar quem perdeu. Até já passaram aí assistentes sociais a oferecer-nos ajuda, mas nós não precisamos de nada. Ficámos sem algumas coisas mas ainda temos a casinha. Graças a Deus."
Tony Platt
Tony Platt
57 anos, Escalos Fundeiros
"Agora? Confesso: não tenho muito para limpar – o que tinha que limpar, limpei logo no domingo. Vou continuar por cá, como até aqui. O que havia para arder, ardeu. Sei que agora já posso dormir descansado – durante muito tempo não vai voltar a acontecer. Eu gosto de viver aqui."
Maria Edite
Maria Edite
53 anos, Vale da Nogueira
“Os animais que me morreram já vieram buscar. Hoje vieram buscar as arcas que estavam cheias de carne e que estavam dentro de casa. Não arderam – mas isto ainda cheira muito mal. Tenho continuado na casa da minha irmã porque a casa para onde é para ir não tem luz. A casa para onde vou é do meu primo que mora em Sernache – ele disse para enquanto não tiver casa me desenrascar na dele. Não tem luz, só tem as camas. O meu filho tirou o colchão dele do incêndio – vai tentar lavar; não ficou muito afetado. Um engenheiro da Câmara disse-me para não voltar a entrar na casa que ardeu. A qualquer momento pode cair. Temos de tirar tudo muito rápido. Na cozinha, a mesa ainda se aproveita se for lavada e raspada. O meu marido ficou queimado nas mãos e na cara, está um bocadinho melhor. Tem ido à enfermeira dia sim dia não fazer o tratamento. Tem pensos na mão, na cara costuma pôr pomada. Estamos todos abalados. Não há mais lágrimas para chorar. Roupa já temos, que já nos deram. O que não me servia fui levar a um vizinho meu que também lhe ardeu a casa. O que preciso mais é de tempo e calma. A casa não tem grande recuperação: o engenheiro da Câmara disse-me que agora só fazendo de raiz; foi tal e qual como se tivesse sido uma bomba que ali caísse. Também me morreu um porco e um boi no incêndio. Se vendesse o boi para o matador eles pagavam-me três mil euros; agora não vale nada. O porco valia para aí uns duzentos. Nem os animais se salvaram, só umas galinhas. Só esta noite é que consegui adormecer, eram sete horas. ‘Como é que me deixei dormir?’, pensei eu. Estava acordada há quase cinco dias. Mas esta noite dormi. Nas outras noites acordava, deitava-me, acordava, deitava-me. Mas esta noite até dormi. Foi até me dar o sol no quarto."
André Pais
André Pais
21 anos, Barraca da Boavista
"Da minha empresa, ardeu praticamente tudo. Foi o camião, as moto-serras, o meu carro… Só o trator é que se safou, que fomos buscar no dia a seguir ao sítio onde o deixámos. Quando olhei para esta destruição pensei que estava tudo feito. A minha família estava feita. Esta era a nossa fonte de rendimento, era a única coisa que nos trazia dinheiro para a casa. Desde setembro, quando começou a empresa, não temos parado. Agora não temos como trabalhar. 
Desde o incêndio não temos forças para nada. Nem para limpezas, nem para nada. A casa tem fumo, está suja, mas ainda não limpámos nada. Estamos todos em choque. Vamos para o sofá, vemos as notícias, ficamos em frente à televisão. Depois vamos para a cama e ficamos lá a dar voltas, nem dá para dormir. 
Para voltar à minha vida, preciso de ter material de trabalho. Um camião, moto-serras, o básico. Não tem de ser novo, só precisamos de material. Eu tenho de ter esta empresa em vigor uns poucos anos. Tenho de pagar a dívida. São 22.500 euros de investimento da empresa. Tenho de começar a pagá-los em agosto. Se isto não tivesse acontecido, conseguia pagar com o dinheiro do nosso trabalho. Agora, não faço ideia. Agora não."
Maria do Céu Ferreira
Maria do Céu Ferreira
57 anos, Pobrais
"O meu marido anda aí a reparar uns canos para ver se voltamos a ter água em casa. Os velórios ainda não foram, porque não se sabe quem são. Nem força tenho. A sério: não tenho. Ando por aqui a lavar o terraço para ver se me distraio. Dormir? Um bocadinho. Mas só agora. A minha netinha, que tem seis anos, saiu daqui para Figueiró com isto tudo verde e voltou com isto tudo assim, tudo queimado — ela percebe tudo e anda triste. Fugiu com o meu genro, os primos e a minha mãe. Eles entraram na estrada com o fogo a chegar lá, mas conseguiram fugir. Agora? Agora é enterrar os mortos. Isto é uma tristeza. Esta gente morreu toda na estrada. Sei que houve uma neta que morreu ao colo da avó… Meu Deus, nem quero falar disso… Meu Deus! Também tenho netinhos, nem quero pensar na aflição daquelas pessoas a tentar fugir. Tanto pedimos às minhas vizinhas para não irem, tanto pedi! Não tinham que morrer. Não tinham..."

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