Egos inflamados, rivalidades antigas, desconfianças renovadas e mercearia política. Foram estes os quatro ingredientes que ditaram o fim da aventura de António Oliveira como candidato do PSD a Vila Nova de Gaia. O desfecho era há muito antecipado, a ameaça esteve em cima da mesa pelo menos uma vez, mas a forma como aconteceu acabou por deixar meio partido de queixo caído. A começar e a acabar em Rui Rio: na última sexta-feira, o líder do PSD reuniu-se com Oliveira e tentou chamá-lo à razão; o antigo selecionador de futebol disse que ia ponderar e falar com a família; assim que bateu com a porta, a notícia de que estava fora começou a correr. Rio foi apanhado de surpresa.
“Apesar de ter os seus motivos, António Oliveira portou-se muito mal com Rui Rio”, diz ao Observador uma fonte social-democrata que acompanhou o processo desde sempre. “Não teve coragem de lhe dizer [a Rui Rio] que ia desistir e assim que saiu da reunião a notícia já estava nos jornais. Não se faz”, queixa-se outra fonte que acompanhou aquelas horas tensas.
A reunião entre os dois aconteceu na sexta-feira e prolongou-se por cerca de três horas. Era a última tentativa de Rui Rio de, ainda que ouvindo as queixas de António Oliveira, tentar que o antigo selecionador fizesse um esforço para se entender com as estruturas locais do partido. Perto das oito da noite, despediram-se e o líder social-democrata deixou a sede do partido, no Porto, com a convicção de que era possível evitar o pior. Às 20h12, poucos minutos depois da reunião, portanto, o jornal Expresso dava a notícia: António Oliveira estava fora.
Instalou-se a confusão no quartel-general do PSD. Ao Observador, fontes próximas de Rui Rio garantiam que a informação não era verdadeira. Às 21h27, a Lusa punha no papel a estupefação da direção do partido. “PSD admite tensão entre Oliveira e partido em Gaia mas nega saber de desistência”, titulava a agência citando fonte do gabinete de comunicação.
Apesar de factualmente correta — a informação tinha sido transmitida informalmente ao Observador uns minutos antes — a notícia tinha um problema: estava desatualizada. Perto das 21h já a carta aberta de António Oliveira circulava pelas redações. O divórcio estava consumado.
Um desfecho anunciado
O golpe foi particularmente duro para Rui Rio. António Oliveira tinha sido uma escolha pessoal do líder social-democrata, em grande medida graças à influência de Manuel Teixeira, seu amigo de sempre. O presidente do PSD atravessou-se várias vezes por Oliveira e foi várias vezes confrontado com a contradição que os adversários políticos lhe apontavam: um homem que se presidente da Câmara do Porto contra os interesses instalados do futebol acabou por escolher um homem do futebol ainda para mais com ligações diretas ao Futebol Clube do Porto.
“Rui Rio foi traído. Mas alguém acredita que ele [António Oliveira] saiu da reunião e escreveu aquela carta em poucos minutos? Foi tudo premeditado”, queixa-se um dirigente social-democrata. Premeditado ou não, as razões de queixa do antigo selecionador vinham-se acumulando há muito.
António Oliveira sentiu-se ultrapassado em vários momentos: na definição das listas para a Câmara Municipal e Assembleia Municipal de Gaia, primeiro, e depois na escolha dos candidatos às juntas de freguesia. “Ninguém gosta de se sentir a Rainha de Inglaterra, ele achou inaceitável e pôs os pés à parede”, lamenta fonte da direção do PSD.
O primeiro sinal ruidoso de divergência aconteceu ainda em abril e foi revelado pelo jornal Público. Pontos de ordem da reunião: 1) as estruturas estavam a escolher candidatos às juntas de freguesia sem passar cartão a António Oliveira; o candidato não passava cartão às estruturas e continuava sem disponibilidade de agenda para reunir, para apresentar ideias ou qualquer sinal de estratégia para o combate autárquico.
As tentativas de contacto que existiam eram por email, umas vezes sem resposta outras vezes com respostas evasivas, sempre inconsequentes. Cancela Moura, sabe o Observador, chegou a enviar 15 dossiês com as principais questões da Câmara de Gaia e nunca recebeu resposta.
Houve apenas duas reuniões presenciais: uma com a concelhia e outra com os candidatos às juntas de freguesia. Nesta última, Oliveira terá estado uma hora ao telefone, ignorando os demais. Na rua, não havia outdoors com a cara do candidato. Rui Rio já tinha sido obrigado a intervir, mas não existia direção de campanha e a apresentação da candidatura foi adiada por três vezes. E nunca chegou a acontecer — nem antes, nem depois dessa reunião no final de abril.
Nessa altura, no entanto, ainda existia a esperança de salvar a candidatura. Do encontro, que teve a presença de José Silvano, secretário-geral e coordenador autárquico, Salvador Malheiro, vice do partido, Hélder Silva, também da comissão autárquica nacional), Alberto Machado, líder da distrital do Porto, Cancela Moura, líder da concelhia de Gaia, o ex-deputado António Montalvão Machado, o grande apoio de António Oliveira em todo o processo, e do próprio candidato, saiu o consenso possível: Oliveira tinha de ter uma palavra a dizer na escolha dos candidatos; em contrapartida, tinha de estar mais presente.
“Foi uma reunião horrível”, desabafa um dos presentes. “Cancela Moura foi muito intrusivo no início, portou-se um bocadinho mal, talvez por excesso de voluntarismo. Mas parou de aprovar candidatos e tentou consensualizar. Só que as relações já tinham azedado muito e já se tinha instalado a desconfiança.”
De abril para cá, garantem ao Observador várias fontes que acompanharam de perto o braço de ferro entre as partes, pouco ou nada mudou: Oliveira continuou ausente; Cancela Moura continuou a liderar o processo autárquico.
A mercearia que estragou as contas
A gota de água para António Oliveira terá chegado quando foi confrontado com aquele que seria o desenho final da lista para a Câmara Municipal: além de Oliveira, o segundo lugar seria para Cancela Moura, pelo PSD, o CDS ficaria com o quarto e o sétimo lugares e o PPM ficaria com um lugar entre o nono e o décimo lugares da lista.
O antigo selecionador entendeu as negociações feitas à sua revelia como a última afronta, em particular, a imposição de Cancela Moura como número dois da lista. Mais: queria incluir o RIR, de Vitorino Silva, mais conhecido como Tino de Rans, na grande aliança a Gaia.
A versão das estruturas locais é diferente: foi sempre um dado adquirido que Cancela Moura, em condições normais, seria o número dois; a coligação com os outros dois parceiros (CDS e PPM) é já uma tradição em Gaia e a inclusão do RIR nunca esteve nos planos.
A verdade, como quase sempre, estará algures no meio: quando Rui Rio convidou António Oliveira fê-lo com o consentimento de Cancela Moura e terá tentado sensibilizar o antigo selecionador para a importância de incluir o líder da concelhia, sugerindo que até podia ir em segundo lugar na lista; Oliveira nunca se chegou a comprometer com essa solução e tentou chamar para si o desenho final das listas, uma competência que é também das estruturas.
Na carta aberta que divulgou na sexta-feira, António Oliveira, que ainda não falou publicamente sobre a decisão, queixava-se precisamente da tal “mercearia partidária”. “Ao longo de três meses fui sujeito a pressões, intimidações e ameaças. Tentaram impor-me o pior da ‘mercearia partidária‘ e tentaram envolver-me nas mais inacreditáveis negociatas de lugares. Enfim, quiseram obrigar-me a empregar os beneficiários do rendimento mínimo da política”, escreveu o antigo selecionador.
A resposta do PSD fez-se com uma demonstração de força: na segunda-feira, numa conferência de imprensa onde estavam o líder da distrital, Alberto Machado, e os candidatos às juntas de freguesia, Cancela Moura devolveu a acusação e atirou em cheio.
“Ao contrário do que afirma o ex-candidato, quem foi vítima de pressões, intimidações e ameaças fomos nós. Da única vez que [António Oliveira] reuniu com a Concelhia do PSD, perante uma plateia de gente que não conhecia, os destratou, provocou e insultou de forma gratuita. Desistir foi o melhor que poderia ter feito a Gaia”, atirou o líder da concelhia do PSD/Gaia.
“Isto é uma candidatura que surge da coligação de três partidos e aquilo que o PSD estava a pedir a António Oliveira, e que estava combinado desde o início, era um lugar na lista. Gostava que me dissessem qual é o sítio onde um partido que faz parte da coligação, e que por acaso é o maior partido da coligação, não se faz representar na lista”, completou Alberto Machado.
A sombra de Menezes
“António Oliveira fala muito da mercearia mas ele é que queria recuperar os piores esqueletos de Gaia”, denuncia uma fonte da estrutura local. De facto, a proximidade de António Oliveira a figuras ligadas ao antigo universo de Luís Filipe Menezes contribuiu em muito para o clima de desconfiança entre os dois.
“Ele [António Oliveira] não se reunia com a concelhia e encontrava-se quase todos os dias com a oposição [interna a Cancela Moura]? Como é que se justifica isto? Claro que se criou um ambiente muito complicado”, nota uma fonte do PSD/Porto que se tentou manter equidistante face os dois lados da barricada.
A verdade é que, segundo confirmaram várias fontes do partido ao Observador, Oliveira terá procurado conselhos junto de Firmino Pereira, antigo vereador do PSD e antecessor de Cancela na concelhia do PSD/Gaia, e dos “gémeos Sousa” de Gaia, como são conhecidos os dois irmãos — um deles, Pedro Neves de Sousa, foi, inclusive, o advogado que representou a Câmara do Porto no caso Selminho.
“A intenção de António Oliveira era boa e genuína: tentou conhecer as várias realidades do partido em Gaia e não ficar preso apenas a uma parte do partido. Mas as coisas precipitaram-se. Devia ter construido mais pontes junto da concelhia logo no início. A determinada altura era as coisas já tinham atingido um ponto de não retorno”, reconhece a mesma fonte.
E agora, Cancela?
Com António Oliveira fora de campo, resta uma pergunta: quem será o candidato do PSD à Câmara de Vila Nova de Gaia? Ou melhor: a pouco mais de três meses das eleições autárquicas, quem aceitará entrar numa corrida que tem tudo para ser inglória, na medida em que o socialista Eduardo Vítor Rodrigues seria, mesmo antes deste psicodrama laranja, uma candidato quase impossível de bater.
Rui Rio, agastado com todo este processo, deu uma semana às estruturas locais do partido para se entenderem e encontrarem uma solução. Se falharem, será a direção nacional a escolher e a partir daí não haverá margem para dúvidas existenciais ou conflitos de qualquer natureza.
Cancela Moura lidera, por força das circunstâncias, a bolsa de apostas. É líder da concelhia e foi candidato autárquico em 2017. Na conferência de imprensa de segunda-feira, o social-democrata não desfez o tabu. “É precipitado qualquer tipo de decisão”, desconversou Cancela Moura.
O Observador sabe que, no que depender da direção de Rui Rio, ninguém vai mexer um músculo para impor um candidato. Ainda que ninguém desresponsabilize António Oliveira pelo que aconteceu, existe a convicção de que as estruturas locais (logo, Cancela Moura) podiam ter demonstrado outra elevação — ou, no limite, mais empenho na resolução do conflito.
Mas há quem arrisque leituras. “Se Cancela Moura for pouco inteligente avança com a candidatura, prova que António Oliveira tinha verdadeiras razões de queixa, dá cabo da vida dele e sujeita-se a ter um resultado miserável. Mas isso agora é com ele”, comenta com o Observador um alto dirigente social-democrata. A palavra pertence a Cancela Moura.