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Armas nucleares com selo da União Europeia? Um "zombie" com 65 anos que a guerra na Ucrânia veio ressuscitar

Desde 1957 que o debate sobre a arma nuclear europeia vai aparecendo e sendo esquecido. Houve até acordos secretos. Com a Ucrânia, o tema ressurgiu, mas confiança nos EUA e o "tabu" adiam decisões.

Em novembro de 1957, os ministros da Defesa da Alemanha, França e Itália assinaram secretamente um protocolo em que se propunham a cooperar no desenvolvimento e partilha de “aplicações militares da energia atómica”. A expressão tem uma tradução mais direta: os três países queriam construir em parceria uma arma nuclear. E comprometeram-se a fazê-lo apenas oito meses depois de a Comunidade Europeia da Energia Atómica (Euratom) e a Comunidade Económica Europeia (CEE) terem sido criadas pelos três países, juntamente com Bélgica, Luxemburgo e Países Baixos. Que de nada sabiam, apesar de todos terem prometido que iriam investir nas utilizações pacíficas da energia nuclear; e impedir a aplicação dessa tecnologia em fins militares.

Assinatura do Tratado de Roma a 25 de março de 1957 no Monte Capitolino em Roma, Itália, instituindo a Comunidade Económica Europeia (CEE)

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Este acordo, cuja missão foi delineada à margem (e contra) os princípios do Tratado da Euratom assinado em Roma em março, era especialmente útil para França. À época, os franceses geriam uma deterioração das relações diplomáticas com os Estados Unidos, com quem tinha estabelecido uma aliança firme durante a Guerra Fria. Depois de o Presidente do Egito ter nacionalizado a Companhia do Canal de Suez, de propriedade britânica e francesa, ameaçando o acesso do Ocidente ao petróleo do Médio Oriente, os norte-americanos preferiram a abordagem diplomática para a resolução do problema. França e Reino Unido, por outro lado, recorreram a Israel para engendrar uma resposta militar.

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Depois de as forças israelitas terem invadido a península de Sinai e rumado em direção ao Canal do Suez, os franceses e os britânicos enviaram tropas para o local sob pretexto de quererem proteger a região. Mas os Estados Unidos e a União Soviética não compraram a manobra e exigiram um cessar-fogo. De costas voltadas para as duas grandes potências mundiais, e com a sombra das armas nucleares a pairar sobre a Europa vinda de ambos os lados, os franceses começaram a alinhar numa estratégia militar que fosse independente dos norte-americanos e dos soviéticos. A solução parecia ser só uma: fazê-lo em parceria com outras nações europeias.

Há um total de 370 ogivas em cinco países do bloco europeu. Um deles é precisamente França, com 290 armas nucleares. Os outros quatro países são a Alemanha, Países Baixos, Bélgica e Itália. Nenhum destes Estados-membro tem um arsenal nuclear próprio, como tem França, mas juntos armazenam um total de 80 bombas nucleares do tipo B61, todas norte-americanas, à luz das políticas de partilha estabelecidas pela NATO.

Era apenas o retomar de uma conversa nos bastidores das altas patentes militares europeias que durava desde 1954. O plano, até aqui puramente teórico, passou à esfera política quando conselheiros do então primeiro-ministro francês Pierre Mendès-France partilharam com o diplomata italiano Pietro Quaroni a ideia de França, Alemanha e Itália formarem uma “Proposta de Paris”, um “Consórcio de Armamentos Europeus” com três ramos: atómico, eletrónico e aviação. Itália, não tendo um peso estratégico tão importante como os outros dois países, interessava-lhes por ser o berço do físico Enrico Fermi, que descobriu a fissão nuclear e foi pai do primeiro reator nuclear. Fermi viria a morrer nesse mesmo ano, em novembro, sem nunca ter trocado os Estados Unidos pelo país natal. Mas Itália continuou incluída no acordo, cujo objetivo final era dotar a Europa das “armas essenciais de hoje: atómica e termonuclear, a parte eletrónica estritamente ligada a eles e aeronaves ou mísseis para implantar as bombas A [atómico] ou H [de hidrogénio]”.

Quatro meses depois de o protocolo ter sido assinado, com Félix Gaillard à frente do governo e René Coty na presidência, França abria a produção de urânio enriquecido à Alemanha e a Itália com o objetivo de produzir armas nucleares europeias em instalações francesas — os alemães e italianos contribuíram com investimento e o conhecimento científico. Mas o protocolo esteve em ação por apenas três meses: quando Charles de Gaulle se tornou primeiro-ministro, só precisou de 16 dias no cargo para quebrar o acordo trilateral, argumentando que as armas nucleares não podiam ser partilhadas. A posição causou estranheza porque o então primeiro-ministro francês, antes de assumir o cargo, tinha confidenciado a Pietro Quaroni que era a favor da “bomba atómica europeia” e que até tinha participado na conceção do plano. Além disso, Jacques Chaban-Delmas, ministro da Defesa francês que assinou o acordo, era gaullista.

As armas nucleares guardadas nos países da UE — até naqueles que não as têm

Não é que, passadas mais de seis décadas, o travão de Charles de Gaulle tenha evitado a entrada de armas nucleares na União Europeia. Há um total de 370 ogivas em cinco países do bloco europeu. Um deles é precisamente França: aderiu ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (que procura garantir uma utilização pacífica desta tecnologia e impedir a disseminação do arsenal bélico), mas não ao Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares (que as pretende eliminar por completo) e tem atualmente 290 armas nucleares. Em 2020 investiu mais de 5,4 mil milhões de euros a produzi-las e a mantê-las.

Os outros quatro países são a Alemanha, Países Baixos, Bélgica e Itália. Nenhum destes Estados-membro tem um arsenal nuclear próprio, como tem França, mas juntos armazenam um total de 80 bombas nucleares do tipo B61, todas norte-americanas, à luz das políticas de partilha estabelecidas pela NATO, que estão previstas no Tratado de Não Proliferação. Em 2021, e segundo o Bulletin of the Atomic Scientists, havia 20 bombas nucleares dos Estados Unidos estacionadas em cinco bases militares naqueles países, duas delas italianas. Outras 20 estão na Turquia, o único país europeu que não é um Estado-membro e que também recebeu armamento americano.

G7. “Não dá para ficarmos descansados”

Dos três países da NATO que têm armamento nuclear — França, Reino Unido e Estados Unidos —, os norte-americanos são os únicos que o partilham com outros membros da Aliança e fazem-no desde 1966, nos tempos da Guerra Fria. Mas em setembro de 1954, já os militares segredavam entre si sobre a criação de uma arma nuclear com selo europeu, os Estados Unidos começaram a enviar bombas de gravidade com ogiva nuclear para bases aéreas militares no Reino Unido. Grécia também chegou a receber este tipo de arsenal e a Alemanha foi o país que mais sistemas nucleares armazenou. Portugal nunca esteve na lista.

Sem os Estados Unidos no panorama, “de certeza que os europeus teriam de construir uma verdadeira defesa europeia”, considerou Frédéric Mauro. Kjølv Egeland também defendeu em conversa com o Observador que o surgimento de uma arma nuclear com o selo europeu seja “provável”. “Não tenho certeza de qual problema isso resolveria”, acrescenta.

As 80 bombas nucleares dos Estados Unidos que estão atualmente implantadas nos quatro países da União Europeia servem para “garantir a segurança dos seus Aliados”, explica a própria NATO: as armas “permanecem sob custódia e controlo dos EUA em total conformidade com o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares”; e os norte-americanos “seguem procedimentos rigorosos para garantir a segurança das armas estacionadas na Europa a todo o momento”. As bombas só podem ser utilizadas no contexto de uma missão nuclear da NATO — não por iniciativa dos países que as armazenam, nem de modo independente por decisão da Comissão Europeia, à margem da Aliança. E, para isso, é necessária a aprovação política do Grupo de Planeamento Nuclear da NATO (composto pela secretaria-geral e pelos ministros da Defesa de todos os membros com exceção de França) e a receção da notificação dessa decisão pelo Presidente dos Estados Unidos e pelo primeiro-ministro do Reino Unido em funções.

Susto com Donald Trump reavivou debate sobre arma nuclear

Mas o que acontece se uma União Europeia sob ataque não receber o aval para acionar a proteção a que alguns estados-membros estão sujeitos por parte da Aliança? Ou se os norte-americanos saírem da NATO, retirando do acordo um dos maiores arsenais bélicos do mundo e desfalcando o grupo dos 27 de armamento nuclear? A questão soa meramente teórica, mas houve momentos da História recente em que ela parecia menos hipotética. John R. Bolton, ex-conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, recordou no livro de memórias da passagem pela Casa Branca, “The Room Where It Happened”, os tempos em que o então Presidente norte-americano, Donald Trump, ponderou seriamente sair da NATO.

John Bolton recorda que recebeu uma chamada de Trump durante a cimeira da NATO em 2018 propondo que os Estados Unidos anunciassem a saída da NATO caso a Alemanha avançasse com a construção do Nord Stream 2, o gasoduto entre a Alemanha e a Rússia que atravessa o Mar Báltico e cuja certificação os alemães suspenderam como forma de castigar Vladimir Putin pelo reconhecimento da independência do Donbass, que viria a espoletar a invasão da Ucrânia. O chefe de Estado dos Estados Unidos considerava que a NATO estava “obsoleta”, que o país contribuía desproporcionalmente mais do que outros membros porque não cumpriam o compromisso de gastar 2% do PIB na Aliança; e que a proximidade de Angela Merkel com a Rússia era “injusta” para os restantes países. No fim de contas, Trump recuou e admitiu que estava alinhado com a NATO, mas não nos termos em que as contribuições para a Defesa estavam a decorrer. Ainda assim, John Bolton não põe as mãos no fogo em como, se regressasse à Casa Branca em 2024, Donald Trump não retomaria esse tema. Nem se, desta vez, não iria mais longe.

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Sem os Estados Unidos no panorama, “de certeza que os europeus teriam de construir uma verdadeira defesa europeia”, considerou Frédéric Mauro, historiador e especialista em questões de defesa e jurídicas relacionadas com políticas comuns de segurança e defesa, em entrevista ao Observador. “Iria França aceitar estender a sua proteção aos outros estados-membros? Talvez. Vão os outros estados aceitá-lo? Por enquanto, não querem falar sobre isso porque o nuclear é um tabu, especialmente na Alemanha. Mas sem os EUA, vão ter de pelo menos falar sobre isso”. Kjølv Egeland, especialista em segurança internacional e armamento nuclear do Centro para Estudos Internacionais (CERI, em Paris), também defendeu em conversa com o Observador que o surgimento de uma arma nuclear com o selo europeu seja “provável”. “Não tenho certeza sobre qual o problema que isso resolveria”, acrescenta.

Volvidos mais de 60 anos desde que Charles de Gaulle dissolveu o protocolo secreto com a Alemanha e Itália, a França, único país da União Europeia com um arsenal nuclear próprio, dá sinais de um interesse em partilhar uma política conjunta de defesa. Em fevereiro de 2020, Emmanuel Macron manteve a visão de Charles de Gaulle num discurso na École de Guerre, dizendo que as armas nucleares só devem ser usadas para defesa do povo francês em “circunstâncias extremas de auto-defesa”. Mas também sugeriu que os estados europeus deveriam entrar num “diálogo estratégico” sobre “o papel da dissuasão nuclear de França” da segurança coletiva da Europa. Emmanuel Macron disse mesmo que estava na hora de a Europa desenvolver uma maior “autonomia”.

Para Benoît Pelopidas, fundador do programa “Nuclear Knowledges” no CERI, em Paris, e investigador do Centro para a Segurança e Cooperação Internacional (Universidade de Stanford, EUA), o discurso de Macron tem três motivações, como descreve no artigo que assina a meias com Kjølv Egeland. A primeira tem a ver com a política interna: a “dispendiosa modernização da força nuclear francesa levantou questões sobre as prioridades de gastos públicos e a necessidade de uma díade nuclear”, uma coligação que permitisse dividir a conta. A segunda está relacionada com o Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares, que “destacou a oposição global à prática de dissuasão nuclear e aumentou a pressão sobre os formuladores de políticas francesas para honrar as obrigações de desarmamento nuclear da França”. A terceira diz respeito às “fissuras transatlânticas, aprofundadas pelas repetidas advertências” de Donald Trump contra a NATO: avisos que “alimentaram argumentos para aumentar a cooperação de defesa europeia em geral e a cooperação de defesa franco-alemã mais especificamente”.

O Presidente norte-americano Donald Trump entra na conferência de imprensa no segundo dia da cimeira da NATO a 12 de julho de 2018 em Bruxelas, Bélgica

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Acontece que o Presidente francês não está a conseguir mover os Estados-membros para um debate desta natureza — nem mesmo com Trump na Casa Branca ou com a possibilidade de ele regressar. Os dois investigadores dizem mesmo que Emmanuel Macron recebeu “poucas ou nenhumas” respostas oficiais ao chamamento para o tal “diálogo estratégico” — e que, de resto, os apoiantes (nacionais e internacionais) de um acordo como o proposto pelo chefe de Estado francês sempre foram consideravelmente menos do que os críticos. Sempre foi assim ao longo da História, quando o “Debate Euro-Nuke” era retomado. E apesar da resistência que a ideia foi encontrando desde os anos 50 até agora, ela “continua a reaparecer em intervalos irregulares, como um zombie que nunca pode finalmente ser abatido”.

Atualmente, e de acordo com os dois investigadores, “embora pareça haver apoio entre os públicos europeus para aumentar a cooperação em defesa em geral, esse apoio não se estende ao domínio nuclear”. Embora não haja uma estrutura de Defesa própria, há um quadro legal para a cooperação no seio da União Europeia. Uma cláusula introduzida no Tratado de Lisboa — o ponto sete do artigo 47 — estabelece que, “se um país da UE for vítima de agressão armada no seu território, os outros países da UE têm a obrigação de o ajudar e prestar assistência por todos os meios ao seu alcance, em conformidade com o artigo 51.º da Carta das Nações Unidas”. Outro artigo (o 222 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia) esclarece também que “os países da UE são obrigados a agir conjuntamente quando um país da UE é vítima de um ataque terrorista ou de uma catástrofe natural ou de origem humana”.

Destas armas nucleares mais poderosas, a Rússia tem 12, os Estados Unidos tem 18; e o Reino Unido e França possuem quatro cada um. Algumas das ogivas nucleares francesas têm 300 quilotoneladas de potência — a destruição em Hiroshima e Nagasaki foi causada por bombas com apenas 15 a 30 quilotoneladas. “O que muita gente não compreende é que não é preciso ter 5.000 bombas nucleares para se ser credível. Era assim no início da Guerra Fria. Mas é ridículo porque uma é o suficiente”, entende Frédéric Mauro.

Apesar de todos os Estados-membros da União Europeia terem a obrigação de seguir estas cláusulas de defesa mútua, isso “não afeta a neutralidade de alguns países da UE e é consistente com os compromissos dos países da UE que são membros da NATO”, continua o artigo 47. Além disso, as regras da NATO sobrepõem-se às da União Europeia para os Estados-membros que também pertencem à Aliança: “Os compromissos e a cooperação nesta área devem ser consistentes com os compromissos assumidos na Organização do Tratado do Atlântico Norte, que, para os Estados que dela são membros, permanece a base da sua defesa coletiva e o fórum para a sua implementação”.

Como a confiança nos EUA está a sabotar o plano da “Euro-Nuke”

Mas, no caso particular da utilização de armas nucleares, não há sequer consenso entre os estados-membros. Por exemplo, o Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares foi aprovado com 122 votos a favor, um voto contra dos Países Baixos e a abstenção de Singapura. Mas 69 países nunca chegaram a votar, incluindo todos os estados com arsenal nuclear e todos os membros da NATO. Há três países da União Europeia que assinaram e ratificaram o Tratado — Áustria, Irlanda e Malta —, mas “isso não interessa realmente porque não se espera nada da UE”, considerou Frédéric Mauro: “Isso só seria de relevância se houvesse uma estrutura de política integrada na União que fosse capaz de tomar decisões sobre o uso de armas nucleares”.

Não há e o investimento não será um problema — pelo menos não um dos mais preponderantes. Bruxelas não necessitaria de abrir demasiado os cordões à bolsa porque França, com uma vasta experiência na área, já tem a infraestrutura montada: tem quase tantas armas nucleares como a China (cerca de 300), mais do que tem o Reino Unido (cerca de 250). E embora esteja muito atrás das 1.600 armas nucleares dos Estados Unidos e das 1.500 nas mãos dos russos, os franceses possuem algo que nem os norte-americanos têm: um tipo de míssil de cruzeiro com ogiva nuclear que pode ser disparado de aviões militares em altitude e que funciona como um “tiro de advertência” — as ASMP. Há dois tipos de armas nucleares: as táticas, com poucas quilotoneladas de potência; e as estratégicas, capazes de destruir cidades ou países inteiros, mantidas por segurança em submarinos. As ASMP estão entre uma e outra.

Ilustração de um míssil francês a ser lançado de um Mirage (ASMP) em 1987

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Destas armas nucleares mais poderosas, a Rússia tem 12, os Estados Unidos têm 18; e o Reino Unido e França possuem quatro cada um. Algumas das ogivas nucleares francesas têm 300 quilotoneladas de potência — a destruição em Hiroshima e Nagasaki foi causada por bombas com apenas 15 a 30 quilotoneladas. Mas, neste caso, a União Europeia nem sequer precisava de todas as armas nucleares francesas para se assumir como uma potência. “O que muita gente não compreende é que não é preciso ter 5.000 bombas nucleares para se ser credível. Era assim no início da Guerra Fria. Mas é ridículo porque uma é o suficiente”, entende Frédéric Mauro.

“A minha tese é que um núcleo de Estados-membros que realmente querem construir uma defesa comum deve reunir-se”. Algo como um Conselho de Segurança Europeu ou um Conselho de Defesa Europeu, exemplifica o especialista: “Esqueçam as armas. Primeiro é preciso organizar a capacidade para decidir”.

Mesmo com um número de armas nucleares nos quatro dígitos na posse da União Europeia, o problema central nunca é desfeito: o bloco não tem uma defesa própria, independente da palavra final dos estados-membros. Frédéric Mauro acredita que a receita para a compor dependeria de três fatores que se multiplicam entre si: vontade política, capacidade para decidir e capacidade para agir. Basta uma delas se igualar a zero para deitar por terra a habilidade de erguer essa estrutura de defesa. E tanto ele como Kjølv Egeland acreditam que todas são nulas.

É que a vontade não existe no bloco europeu — pelo menos não enquanto os EUA e a NATO reunirem a confiança que têm neste momento. “A única coisa que precisamos de fazer é manter as ligações com os Estados Unidos”, diz o especialista: “Podemos falar de autonomia estratégica, podemos falar de defesa europeia, mas isso não nos preocupava antes da guerra na Ucrânia porque não nos sentíamos ameaçados. E se nos sentíamos ameaçados, havia a ligação aos EUA”. Mas essa ligação não é um dado adquirido, acredita Frédéric Mauro: “Os historiadores daqui a 100 anos verão que é intrigante porque é que 340 milhões de americanos têm de proteger mais de 500 milhões de europeus contra 144 milhões de russos. Não faz sentido”.

O fator da capacidade para decidir também não existe, na perspetiva dos peritos ouvidos pelo Observador, porque o presidente da Comissão Europeia (que, atualmente, é Ursula von der Leyen) não tem legitimidade para tal. “Na ausência de um governo central da União Europeia que pudesse controlar armas nucleares e exercer comando e controle, a dissuasão europeia não seria mais credível do que a que existe agora”, opinou Kjølv Egeland. A solução, acredita Frédéric Mauro, seria criar um novo organismo à margem dos tratados associados ao funcionamento da União Europeia: “A minha tese é que um núcleo de Estados-membros que realmente querem construir uma defesa comum deve reunir-se”. Algo como um Conselho de Segurança Europeu ou um Conselho de Defesa Europeu, exemplifica o especialista: “Esqueçam as armas. Primeiro é preciso organizar a capacidade para decidir”.

Não há um enquadramento legal que permita à presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tomar decisões sobre ataques nucleares

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Depois vem a capacidade para agir, que, para Frédéric Mauro, está condicionada pelos outros dois fatores: “Se não se consegue sequer decidir que tipo de guerra se quer travar e que tipo de ferramentas militares se quer construir, não faz sentido. Pode-se ter grupos de batalha e capacidade de implantação rápida. Não adianta se não se puder decidir o que fazer”.

As histórias da tentativas falhadas para criar uma força nuclear europeia

A história comprova-o. O “zombie” da arma nuclear europeia a que Kjølv Egeland e  Benoît Pelopidas fazem referência no seu artigo sobre as tentativas de erguer defesa conjunta da União Europeia ressuscitou pela primeira vez em 1963, três anos depois de França ter feito o primeiro teste a uma arma nuclear nacional. O eurodeputado Christian de la Malène escreveu um artigo que propunha a criação de uma cooperação europeia para enfrentar uma proposta norte-americana de uma força nuclear multilateral da NATO, o que reuniu apoio de membros do governo francês.

Nicolas Sarkozy reavivou o “zombie” quando entrou na presidência francesa e admitiu que era um “facto” que as armas nucleares daquele país eram um “elemento-chave da segurança da Europa”. Sarkozy pediu um “diálogo aberto sobre o papel da dissuasão nuclear e a sua contribuição para a nossa segurança comum”, mas encontrou ainda menos abertura dos Estados-membro desta vez

Jean Monnet, um dos pais da União Europeia, e Henry Kissinger, à época conselheiro para os negócios estrangeiros do Presidente dos Estados Unidos, eram dois nomes de peso a apoiar a sugestão francesa. Mas nem isso convenceu o resto da Europa a prestar-lhe atenção: “A integração política da Europa prosseguiu lentamente e nenhum outro estado europeu se demonstrou particularmente interessado na proposta francesa”, contam os dois peritos. Nem sequer o próprio Presidente francês, Charles de Gaulle, ficou convencido pela proposta de Christian de la Malène: para ele, a usar-se sequer armas nucleares, elas só poderiam servir aos interesses nacionais, não os de aliados.

O assunto é retomado já nos anos 80, quando o teórico das relações internacionais Hedley Bull sugere num artigo a implementação de uma política europeísta com um “mínimo” de força nuclear. Desta vez, o novo Presidente francês, Valéry Giscard d’Estaing, estava interessado no acordo e até considerou que a Alemanha Ocidental devia ser incluída nele para se poder escudar com as armas nucleares francesas. Mas depois de François Mitterrand ter assumido o governo, o processo perdeu estamina: o novo Presidente de França demorou a iniciar os diálogos com outros países europeus — tanto que, quando eles começaram, já nem a Alemanha estava interessada em participar.

Em 1992, no entanto, François Mitterrand volta à carga para “europeizar” a força nuclear francesa, explicam Kjølv Egeland e Benoît Pelopidas: o Presidente disse mesmo que “a compatibilidade entre as forças nucleares francesas e a defesa europeia teria de ser abordada”; e o ministro da defesa, Jacques Mellick, acrescentou que devia estabelecer-se um “acordo de dissuasão concertada” para abrir um “guarda-chuva nuclear” sobre os países europeus. Mas França já tinha perdido a oportunidade de vender a ideia “altruísta” de uma defesa partilhada, em cooperação, quando não entrou nos acordos de partilha da NATO — que tinham sido adotados pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido. François Mitterrand deixou de promover a proposta, Jacques Chirac não lhe conseguiu dar andamento quando o substituiu; e ela ficou abandonada ao longo de uma década, entre 1998 e 2008.

Nicolas Sarkozy reavivou o “zombie” quando entrou na presidência francesa e admitiu que era um “facto” que as armas nucleares daquele país eram um “elemento-chave da segurança da Europa”. Sarkozy pediu um “diálogo aberto sobre o papel da dissuasão nuclear e a sua contribuição para a nossa segurança comum”, mas encontrou ainda menos abertura dos estados-membros dessa vez: nem sequer a Alemanha, que em algumas destas tentativas se foi mostrando alinhada com a sugestão francesa, estava interessada. Pelo contrário, durante a campanha eleitoral, o novo governo alemão que entrou em funções em 2009 fez da retirada do armamento nuclear norte-americano estacionado no país desde os tempos da Guerra Fria uma bandeira.

François Hollande veio a manter que a força nuclear francesa era uma arma de defesa da Europa, mas não insistiu em diálogos internacionais e o assunto voltou a esmorecer. A luz ao fundo do túnel, em caso de necessidade, continua até hoje a ser os Estados Unidos América.

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