Quando uma decisão é tomada mas não concretizada, costuma dizer-se que só existe no papel. No caso de um centro de arte contemporânea nos Açores, o velho ditado apresenta-se ao contrário: a instituição funciona e assume um papel no circuito da arte contemporânea, tem um edifício e uma programação regular, tem funcionários e diretora, tem coleção de arte e visitantes – mas falta-lhe existir no papel. O Arquipélago — Centro de Artes Contemporâneas não tem existência oficial desde que abriu portas há mais de quatro anos, a 29 de março de 2015. É público, mas não faz parte de nenhum órgão da administração do Estado, nem sequer da Direção Regional da Cultura (DRC) dos Açores, ainda que receba ordens e orçamento desta entidade. Segundo o Governo Regional, o equipamento “ainda não foi criado”. Para os funcionários e para criadores que por lá passam em frequentes residências artísticas, e que ali apresentam ao público os seus trabalhos, tal descrição não poderia estar mais longe da verdade.
A falta de cobertura legal foi recentemente confirmada pelo próprio Governo Regional, em resposta a um requerimento da deputada Rute Gregório, do CDS Açores. À pergunta “porque é que, em termos formais, o Arquipélago — Centro de Artes Contemporâneas não está ainda integrado no quadro dos serviços da administração da Região Autónoma dos Açores, através de diploma?”, o Governo retorquiu que “irá aprovar brevemente um decreto que aprova a nova orgânica dos serviços externos da DRC, integrando o Arquipélago na estrutura organizacional da administração pública regional”.
Rute Gregório, que entretanto cessou funções como deputada, enviou a pergunta ao Governo Regional, através da Assembleia Legislativa dos Açores, no dia 23 de janeiro deste ano. A resposta tem data de 18 de abril e só em inícios de maio foi publicada no “site” oficial – uma demora de três meses, apesar de a lei obrigar o Governo a responder em 60 dias.
A instituição “deveria ter enquadramento regulamentar desde a sua criação”, sublinhou agora ao Observador o deputado centrista Alonso Miguel, vice-presidente do grupo parlamentar regional do CDS. “Não é uma situação normal, é até inadmissível, e nada mudou desde que o Governo Regional respondeu ao requerimento do CDS. Aliás, optaram por fintar a pergunta da deputada Rute Gregório: em vez de explicarem porque é que o Arquipélago não está integrado nos serviços da administração pública, decidiram dizer apenas que vai passar a estar”, acrescentou.
Ao certo, quando será feita a legalização, não se sabe. O decreto regulamentar, referido na resposta ao CDS, “aguarda agendamento para Conselho de Governo”, informou esta semana o gabinete do secretário regional da Educação e Cultura, Avelino Menezes, que tutela a DRC. A mesma fonte argumentou que o centro de artes “não está à margem da lei”, porque se encontra, sim, “em fase de instalação e funciona como um núcleo do Museu Carlos Machado”. A resposta contraria registos oficiais.
Por um lado, uma pesquisa entretanto feita pelo Observador no site do Governo Regional mostra que não houve até hoje qualquer documento que se referisse ao equipamento como estando em “fase de instalação”. Por outro lado, o Museu Carlos Machado, cujas coleções originais são de zoologia, botânica, geologia e mineralogia – áreas completamente diferentes da arte contemporânea – é composto por três núcleos apenas: Núcleo de Santo André, Núcleo de Arte Sacra e Núcleo de Santa Bárbara, todos em Ponta Delgada (e não na Ribeira Grande, onde está o Arquipélago). É esta a informação publicada no site do museu. É também o que aparece escrito num desdobrável turístico em português e inglês, com a chancela do Governo Regional, cujo título deixa clara a distinção: “Museus dos Açores & Arquipélago — Centro de Artes Contemporâneas”.
O Observador acabou por telefonar informalmente para o Museu Carlos Machado e perguntou se o Arquipélago faz parte da instituição, tendo obtido um claro “não” da parte dos serviços.
De resto, todos os museus públicos açorianos surgem listados no “site” da DRC enquanto serviços externos e até mesmo o Arquipélago consta do organigrama, sem nenhuma conotação com o Museu Carlos Machado. A inclusão do Arquipélago naquela lista faz prova de que é considerado um organismo autónomo. Porém, até isso está à revelia do teor da resposta que o Governo enviou à deputada centrista: aí se dizia claramente que neste momento o Arquipélago não integra os serviços externos da DRC (sedeada na Terceira).
Recibos verdes e falta de respostas
Na opinião do deputado Alonso Miguel, a atual situação do Arquipélago “é mais um indício de que os Açores são governados no espírito de se poder fazer tudo sem consequências”. “O desleixo começa a existir quando as governações são demasiado longas”, sustentou o centrista.
A região é governada há mais de duas décadas pelo Partido Socialista – que venceu as últimas legislativas regionais, em 2016, com 46,4% dos votos – e vai novamente às urnas no outono do próximo ano, além de ser chamada a decidir nas legislativas de 6 de outubro deste ano. A Secretaria Regional da Educação e Cultura tem para 2019 um orçamento de 307 mil de euros, dos quais 227 mil se destinam à área educativa.
Face à demora na legalização deste equipamento cultural, o gabinete de Avelino Menezes entende que não será necessário abrir qualquer procedimento de averiguação de responsabilidades, pois, “salvo melhor opinião, não existe nada para averiguar”. Aliás, na versão do Governo, o Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas “não foi ainda criado, não tem quadro de pessoal próprio nem orçamento próprio”. O porquê do atraso e da opacidade nos procedimentos, eis uma pergunta do Observador que não foi respondida pelos responsáveis.
A ex-deputada Rute Gregório – professora auxiliar de história na Universidade dos Açores e antiga diretora da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada – dirigiu ao Governo muitas outras questões no mesmo requerimento de 23 de janeiro. Perguntou por orçamentos anuais do museu, plano de atividades, número de trabalhadores e vínculo laboral, valor das remunerações, estatísticas de visitantes e impacto social e cultural do equipamento.
A resposta do Governo Regional, com nada menos que 17 páginas, fez um levantamento exaustivo e revelou todos aqueles elementos, que em quatro anos de funcionamento do equipamento nunca tinham sido publicados. A saber:
— Em 2017, o Arquipélago recebeu um montante de 234,6 mil de euros; em 2018, de 230 mil; e em 2019, de 170 mil;
— Estão ao serviço 17 pessoas, incluindo a diretora artística, e todas são “titulares de contratos de prestação de serviços, substanciados nas modalidades de avença”;
— Os salários variam entre um mínimo de 737 euros e um máximo de 1.817 euros, brutos, auferindo a diretora uma avença mensal de 4.631 euros;
— Entre 2015 e 2018, o espaço acolheu 89 artistas da região, 328 nacionais e 68 estrangeiros, e realizaram-se 23 exposições, 46 residências artísticas e 77 espetáculos;
— Em 2015, registaram-se 8.673 visitantes; em 2016, 9.073; em 2017, 12.653; em 2018, 12.604;
O Observador perguntou agora à Secretaria Regional da Cultura se considera que a existência de vínculos laborais precários afeta a dignidade da instituição e dos seus funcionários. “De modo algum”, retorquiu o gabinete de Avelino Menezes.
Uma questão de comunicação
Situado na zona norte da ilha de São Miguel, mais concretamente na cidade da Ribeira Grande, o Arquipélago foi instalado num edifício de fins do século XIX onde funcionou uma fábrica de destilação. Seria mais tarde utilizado para secagem e armazenamento de tabaco da Fábrica de Tabaco Micaelense, até que em 2006 passou para a propriedade da Região Autónoma e foi reconvertido em centro de artes num projeto assinado pela dupla de arquitetos Francisco Vieira de Campos e Cristina Guedes e ainda por João Mendes Ribeiro.
O Observador fez uma visita há poucas semanas, a convite da direção, e encontrou um edifício de escala industrial, em bom estado de conservação, mas com pouco movimento, provavelmente por se tratar de dias de semana. Na ocasião, decorria a terceira parte do ciclo expositivo “Geometria Sónica”, então descrito pela diretora, Fátima Marques Pereira, como um projeto que “marca um antes e um depois” no Arquipélago. O equipamento é muitas vezes descrito como museu, mas no dizer desta responsável a designação mais rigorosa é a de centro de artes.
Uma vez que naquela altura já tinha sido apresentada na Assembleia Legislativa o requerimento do CDS sobre o funcionamento da instituição, questionou-se Fátima Marques Pereira, mas esta preferiu não fazer comentários, considerando tratar-se de um assunto da esfera política e não da esfera técnica, em que se considera inserida. “Só a tutela poderá responder”, afirmou.
O “Geometria Sónica” teve mais de um ano de duração e culminou em abril. Viaja no próximo dia 29 de junho até ao Centro Internacional de Artes José de Guimarães, em Guimarães, podendo aí ser descoberto pelos continentais. Com curadoria de Nuno Faria e Nicolau Tudela, no âmbito de uma parceria com a RTP, o ciclo constituiu um “projeto completamente inovador”, segundo a diretora. “Não tínhamos tido até agora uma proposta de programação que juntasse tantas vertentes. Desde logo, as residências artísticas e a investigação dos criadores no arquivo da RTP Açores, o que permitiu uma forte ligação ao território, à identidade arquipelágica. Mas também a produção de exposições e de performances, o experimentalismo, a liberdade de criação, todos esses aspetos. Já tínhamos tido artistas em residência que depois expuseram no Arquipélago, mas um projeto de um ano que tivesse resultado apenas das residências, e com esta dimensão, foi a primeira vez.”
A primeira parte do “Geometria Sónica” tinha decorrido entre agosto e outubro de 2018, com a apresentação de trabalhos de Francisco Janes, Laetitia Morais, Manon Harrois e Sara Bichão. A segunda parte, de outubro de 2018 a janeiro de 2019, mostrara projetos de Miguel Leal, Pedro Tudela, Mike Cooter e Tomás Cunha Ferreira.
Por fim, a terceira parte, que o Observador testemunhou, teve lugar entre janeiro e abril, com três exposições. Dupla Francisco Queimadela e Mariana Caló: instalação multimédia com esculturas de inspiração vulcânica e ambiente sonoro submarino. Dupla Pedro Tropa e Ricardo Jacinto: desenhos e uma escultura com sistema sonoro, que ocupava uma sala inteira e fazia lembrar a estrutura metálica de velhos arquivos. De Jonathan Uliel Saldanha: escultura horizontal de cores fluorescentes feita com gelatina de algas, a evocar os microrganismos marinhos. Em paralelo, nas pequenas salas que em tempos albergaram sequeiros de tabaco, eram exibidos vídeos da RTP das décadas de 50, 70 e 80 sobre a vida açoriana.
“Com esta experiência de meses percebemos que há espaço para melhorar o Arquipélago, principalmente nas condições de trabalho que damos aos artistas”, explicou Fátima Marques Pereira. “As residências sempre foram uma das nossas mais-valias. Penso que não há outro equipamento público em Portugal com estas características, com condições de trabalho excelentes para a criação. Mas com este projeto consolidámos a noção de que o tempo dos artistas não é igual ao tempo de funcionamento do museu, o tempo em arte tem diversos andamentos e coordenação da programação tem sempre de levar isso em conta.”
Ainda no âmbito da terceira parte do “Geometria Sónica”, decorreu a 22 de março, com comissariado do festival açoriano Tremor, um concerto de HHY & The Macumbas, coletivo fundado em 2009 no Porto, projeto paralelo de Jonathan Uliel Saldanha que assim, além da exposição propriamente dita, propôs esta performance jazzística com cinco pessoas em cena. Artista visual e construtor sonoro e cénico, assim tem sido descrito o artista, é um dos nomes mais citados no atual circuito português da arte contemporânea.
Esse circuito, diz-se muitas vezes, dificilmente passa pelos Açores ou por este Centro de Artes Contemporâneas. A diretora ouve esse lamento muitas vezes e disse sentir que “sistematicamente os olhos das pessoas estão sobre o Arquipélago, o que é um peso”. Mas desdramatizou. “A criação de públicos é um processo e é isso que temos feito. Estamos no meio do Atlântico, isso tem implicações, mas o envolvimento com escolas, artistas locais e instituições do arquipélago está a criar empatia com as pessoas.”
Numa conversa com Jonathan Uliel Saldanha, perguntámos o que pensa destas questões. O artista, que nasceu nos subúrbios de Paris, filho de portugueses, e que cresceu na periferia do Porto, observou que “estarmos nos Açores e num centro de arte contemporânea apresenta-nos à partida dois possíveis problemas, mas hoje as coisas podem conectar-se de forma maior”, pelo que “o receio da periferia é falso”. “O que se passa aqui pode ser legível a partir de qualquer sítio. Não saio do Porto de manhã para vir à tarde a uma exposição na Ribeira Grande, mas também não vou ali a Londres espreitar a Tate. Talvez se receba informação mais forte e consistente sobre esses outros sítios de arte contemporânea. É uma questão de comunicação, mais do que qualquer outra coisa.”