Participou na lei da reforma psiquiátrica do Brasil e no encerramento de hospícios e de mais de sessenta mil camas. Defensor da desinstitucionalização de pessoas com doença mental, o médico psiquiatra Paulo Amarante vê nos manicómios lugares de exclusão, de violência, de perda de identidade. E avisa: há sintomas que não são da doença, são da institucionalização. O investigador da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, instituição referência nacional na área da saúde pública, onde foi professor e coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, olha para a arte como produtora de diálogo e o seu nome surge associado a vários projetos. Mestre em Medicina Social e doutorado em Saúde Pública, fundador da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME ), da qual é presidente honorário, Paulo Amarante é autor e coordenador de diversos livros sobre a temática da reforma psiquiátrica, saúde mental e direitos humanos, como Psiquiatria sem Hospício, Loucos pela Vida e Loucura e Transformação Social. É professor em universidades argentinas e uruguaias, tendo sido recentemente homenageado pelo governo da Argentina pelo trabalho em direitos humanos e saúde mental.
A reforma psiquiátrica do Brasil marca uma ruptura com os modelos do país e do mundo. É pelo menos essa a opinião de vários especialistas. Porque se tornou uma referência internacional?
Eu achava importante que a política de saúde mental no Brasil pudesse ser compreendida como um processo e não como algo que fosse dado por uma lei, uma ação ministerial. Percebi isso a partir da experiência italiana. Conheci Franco Basaglia, o psiquiatra que criou o movimento da psiquiatria democrática em Itália, e fiquei muito impressionado com aquele processo, importante porque foi posterior a outros como o do Reino Unido, onde surgiu a comunidade terapêutica de Maxwell Jones, uma experiência totalmente diferente do que hoje se chama comunidade terapêutica no Brasil, que são instituições religiosas, fundamentalistas.
Na mesma época, François Tosquelles, psiquiatra catalão que fugiu da guerra civil espanhola e da ditadura de Franco, foi para o sul de França e criou um processo semelhante. Chamou-lhe coletivo terapêutico – ou psicoterapia institucional. Foram experiências inspiradoras no mundo inteiro.
Basaglia conheceu essas experiências – a psicoterapia institucional, o coletivo terapêutico, a comunidade terapêutica — e fez a experiência italiana na década de 1960, refletindo questões que estavam lá, nas experiências anteriores. Ele percebeu que essas experiências não podiam ser um fim em si, não havia uma instituição psiquiátrica que ficasse eternamente em reforma, mas que as estratégias seriam intermediárias para um processo de superação do modelo manicomial. Ele começou a perceber que essas instituições não nasceram para tratar as pessoas, o hospital psiquiátrico não nasceu para ser um local de tratamento e de cura, mas sim de exclusão, de gestão de uma massa social, para a qual o Estado não tem política.
Qual a vantagem dessas “comunidades terapêuticas”?
Têm esse nome porque partem da ideia de envolver o paciente, em vez de este ficar internado num pátio, numa cama, a ver o tempo passar e a ser medicado. A pessoa é vista como ator, protagonista, estimulada a envolver-se, fazer comida, limpar a enfermaria, fazer reuniões de grupo, organizar festas de aniversário, etc. Isso faria com que cuidassem de si e dos outros, num processo comunitário e terapêutico e com uma dinâmica de autoajuda, reciprocidade e solidariedade.
Daí a luta “anti manicomial”?
Toda esta ideia vai dar origem à “luta anti manicomial”, sim. O Estado não tem como dar vida digna a um conjunto grande de pessoas que não chegam sequer a ser alfabetizadas, não têm formação profissional adequada, e por isso não terão mercado de trabalho e ficam à margem da sociedade. Muitas pessoas que estavam nesses hospícios são pobres, desnutridas, desamparadas, desassistidas pelo Estado. E aí é muito difícil dizer o que é doença, o que não é doença. São sobretudo pessoas que perderam laços sociais.
A “luta anti manicomial”, expressão que criámos no Brasil , é uma estratégia. Superar o modelo manicomial é criar um sistema de cuidado de pessoas que tenham algum tipo de sofrimento humano, a que chamamos, entre aspas, de “mental” – criticando o cartesianismo, não há como dividir o mental do orgânico do social e depois ficou difícil juntar de novo. Essas pessoas que sofrem, que ouvem vozes que incomodam, que veem coisas que não existem e que as fazem sofrer, têm de ter um tratamento e não uma exclusão. Em 2022 saiu uma pessoa do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, que fechámos, que estava há sessenta anos internada em instituições.
Das mais de oitenta mil camas no Brasil, mais de sessenta mil fecharam em hospícios. Foi um trabalho imenso.
Não temos hoje uma estatística mais precisa porque tivemos um período sombrio de um político nacional que queria vetar os dados, acabar com as estatísticas nacionais e contrário à reforma psiquiátrica [Jair Bolsonaro], mas estamos em torno dessas sessenta mil vagas, sim. Havia manicómios que tinham duas mil camas, mas tinham quatro mil pessoas internadas. Onde dormiam? Em camas quando possível, no chão em muitas ocasiões. Havia oficialmente uma expressão chamada “leito-chão”. Em alguns manicómios grandes, que curiosamente chamavam colónias, era a verdadeira ideia de um apartheid, de uma colónia de loucos, retirados da cidade para um espaço no exterior. Havia vagas de pessoas que dormiam em cavernas. A colónia Juliano Moreira, no Rui de Janeiro, chegou a ter 70 mil hectares. Eram as instituições asilares.
Mas não basta “fechar camas”, certo?
Certo. A lei que nós construímos foi apresentada ao Parlamento em 1989 pelo deputado do PT Paulo Delgado. Era uma lei bem mais radical, determinava a extinção dos manicómios, do modelo asilar, e a substituição por serviços de base territorial de cuidado e liberdade. Essa lei esteve 12 anos em tramitação, dada a grande resistência de psiquiatras que, ao mesmo tempo, são donos de manicómios, de empresários de hospitais que criaram um lobby muito forte no congresso, fundaram associações de familiares contrárias à lei, ameaçavam as pessoas dizendo que os pacientes seriam imediatamente abandonados, retirados dos hospitais.
Em 2001, o projeto original de Paulo Delgado foi rejeitado e aprovado um projeto de lei mais calmo, menos “anti manicomial”, mas que considerámos que era um avanço porque a legislação brasileira em vigor era de 1934. Essa lei foi aprovada e determinava que os hospitais de característica asilar deixassem de ser prioridade no atendimento e que fossem paulatinamente criados serviços territoriais de base comunitária. Mas, antes disso, o movimento “anti manicomial” já tinha atuações importantes em hospitais psiquiátricos, já tinha reformulando unidades de saúde e fechado enfermarias maiores.
Era uma ruptura completa?
Era uma ruptura, mas foi uma ruptura paulatina, calma, tranquila, porque era preciso dar possibilidade de vida a milhares de pessoas que estavam nessas instituições há muitos anos, abandonadas, às vezes, pelas famílias. Quando um filho que vai estudar fora e regressa, a casa tem de se organizar, porque o espaço dele foi ocupado, pelo filho mais novo, por uma sala de televisão, etc. Imagine então uma pessoa que foi para uma instituição psiquiátrica há dez, vinte anos, chega lá e incorpora trejeitos institucionais, hábitos, comportamentos que já não são os adequados a uma família e à sociedade. Tudo isso é muito difícil. É um trabalho de transição, de reeducação, de reconstrução da identidade de muitas pessoas.
Muitas pessoas internadas nesses hospitais já nem sabiam o próprio nome. Passam a ser chamadas por alcunhas que é uma forma de destruir a identidade prévia. São destituídas de roupa, de anéis, de coisas que lembram a família. Tivemos de fazer oficinas de reconstrução, práticas lúdicas, terapêuticas e artísticas.
Uma reviravolta num paradigma?
A reforma psiquiátrica não é a simples reforma do modelo assistencial. É uma transformação paradigmática, profunda, que tem uma dimensão epistemológica. Aprendemos a colocar em discussão os conceitos de transtorno [perturbação] e muitos dos sintomas dos pacientes crónicos esquizofrénicos não eram da doença, eram da institucionalização. Os primeiros livros de psiquiatria no Brasil referem-se a pacientes que já estavam institucionalizados, mas eles não podiam saber, naquela época, que estavam a escrever sobre alguém que foi modificado pela ação da institucionalização.
As pessoas já não eram elas próprias?
Uma pessoa em sofrimento psíquico, desesperada, a ouvir vozes na cabeça e a sentir necessidade de cuidado é colocada numa enfermaria com outros duzentos, quatrocentos doentes. Isso não lhes pode fazer bem. O Hospital Colónia do Juquery, em São Paulo, teve mais de vinte mil doentes internados. Tiramos uma pessoa de casa e colocamo-la numa instituição dessas, onde tem de aprender a negociar comida, a lidar com violência sexual, abusos morais, a dormir no chão. Então faz-se uma entrevista a uma dessas pessoas e acha-se que aquilo que ela tem é sintoma da doença e não de um processo violento de deseshistorização, de mortificação, de violência sobre a pessoa.
E como se inverte isso?
Essa reintegração é um processo complexo que envolve mudanças estruturais. No Brasil, o SUS [Sistema Único de Saúde] tem uma estrutura complexa e muito interessante. Uma delas é que todas as cidades têm um secretário de saúde, um gestor político que aplica a política nacional de saúde no município. Esses secretários de saúde reportam ao Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), que tem um projeto chamado Ideias SUS que visa identificar iniciativas originais, importantes na área da saúde como um todo. E cada área tem um curador – eu sou o curador do CONASEMS na área da saúde mental e atenção psicossocial e faço debates regulares em que participa gente do Brasil inteiro [foi realizado um recentemente sobre experiências de economia solidária]. Em cada debate convido três experiências, não só bem sucedidas, mas também com problemas para identificar dificuldades.
Então não é só uma reforma do serviço.
Não é uma reforma só de serviço. É uma reforma complexa de como a sociedade lida com a loucura, com a indiferença, com a diversidade, com o transtorno. A Psiquiatria abdicou do termo “doença”, embora em Portugal ainda se use. Eu fiquei surpreendido, porque já não se usa no mundo inteiro. O termo “doença” é muito taxativo, implicaria ter uma precisão do que é a doença, e por isso é reservado para um processo que tenha uma classificação sintomática.
O nosso objetivo não é só mudar o modelo assistencial, asilar, manicomial, hospitalar para um modelo comunitário, territorial. É preciso mudar práticas sociais, produzir, por exemplo, atividades de trabalho, bandas, teatro, criar espaços que produzem recursos. Se não houver atividades culturais, espaços de educação, de formação, as pessoas vão ficar eternamente tratadas em serviços externos, mas não vão alcançar uma reabilitação social.
A reabilitação é um ponto importante. O que é que a arte tem feito nessa área?
Fizemos um trabalho de identificar, em cooperação com a Fundação Getúlio Vargas e a Queen Mary University, de Londres, iniciativas culturais, sociais, coletivas. Eu queria reforçar isso como sendo uma estratégia fundamental de organização de vida coletiva, de cidadania, de direitos e de bem-estar, de tal maneira que a gente sai daquela antinomia saúde-doença mental-transtorno mental, e passa a falar de produção de vida, de sentido para as pessoas, sem cair nesse referencial mais médico-clínico.
Usar a arte na saúde mental, nas suas variadas expressões, é uma boa estratégia?
Uma excelente estratégia. Historicamente, a arte foi utilizada a partir de uma narrativa científica, clínica, como sendo uma estratégia terapêutica. A arte foi utilizada principalmente nos manicómios como estratégia de entretenimento, de diversão, para a pessoa internada passar o tempo, distrair-se, já que tem um transtorno mental. Nós começámos a desenvolver uma outra discussão que tem tido grande repercussão nacional e internacional.
Que outra discussão é essa?
Não discordo da visão terapêutica da arte, nem da visão do entretenimento, mas posso usar o trabalho com arte numa outra dimensão que incorpora as outras duas, mas dá um sentido novo, que é a arte como produtora de diálogo, de capacidade, de identidade, de sentido para as pessoas. Então não vou direcionar o trabalho da musicoterapia para uma lógica clínica que seria realizar a arte para uma lógica científica – e a arte transcende a ciência ou está em outra dimensão que não a científica, ela produz significados, trabalha no domínio da emoção e não da razão. A arte pensada como estratégia de produção de significado de vida dá às pessoas uma outra possibilidade: passa a fazer um trabalho muito mais pela sua expressão artística do que clínica.
Vou dar um exemplo: havia pessoas que eram quase levadas compulsivamente a uma oficina de arteterapia, de musicoterapia, porque a arte faz bem à pessoa. Da mesma forma que alguns defendem que um eletrochoque, ou uma cirurgia, ou uma injeção, um medicamento, fazem bem. Havia muito a visão da arte assim. Mas as pessoas que não têm nenhum dom para a música às vezes sentem-se constrangidas de cantar ou dançar em público, ou de representar no teatro, ou de fazer alguma expressão. E eram levadas porque aquilo fazia bem, independentemente de quererem ou gostarem. Assim como a ideia do trabalho terapêutico, a pessoa é levada para uma oficina fazer o artesanato com que não se identifica.
Criámos no Brasil uma cooperativa chamada Louca Sabedoria. Em todos os seminários e congressos de saúde mental, ao invés de colocar um livreiro profissional, um capitalista que vende livros, colocámos a cooperativa. Ao venderem, vão adquirindo conhecimentos sobre os livros, conhecem os autores, a singularidade de cada livro, e isso para eles é uma capacidade de relacionamento social, de sociabilidade, de identidade.
O que é preciso fazer nesse sentido?
Temos de abrir mentalidades, abrir o coração, abrir a cabeça. Atenção primária, saúde mental da família, cooperativas de trabalho, iniciativas culturais. Temos de abrir muitas coisas, não é só mudar o modelo do lugar de assistência médica, é preciso abrir outras perspetivas.
Mas, na prática, como se faz isso?
Temos um grupo de bloggers com utentes de saúde mental a que chamámos “Eu quero entrar na rede”. Começámos a dar-lhes formação sobre editar um blogue, produzir textos e colocar fotografias. O grupo já tem cinco, seis anos. Eles hoje são bloggers na comunidade e começaram a falar da sua condição – “sou paciente do hospital, tenho isto, tenho aquilo” – e começaram a ver que podiam falar dos problemas que o bairro tem: falta de água, transporte precário, polícia agressiva, falta de escola. Começaram a ser porta-vozes de um coletivo, além de falarem dos seus problemas. É um trabalho que dá uma dimensão de arte e cultura para a vida das pessoas.
No Brasil há mais de cem projetos de Carnaval com pessoas da área da saúde mental. Todos os anos, cada escola, cada coletivo, reúne-se para definir um tema. No grupo “Tá Pirando, Pirado, Pirou!” [coletivo carnavalesco constituído por utentes e profissionais da rede pública de saúde mental do Rio de Janeiro e por simpatizantes da luta “anti manicomial”], estou inscrito com o tema “Mulheres Loucas e Maravilhosas que Mudaram o Mundo”, brasileiras e internacionais que romperam com padrões, feiticeiras e bruxas (*). Quis falar dessa ideia de como a loucura, no caso da mulher, tem a ver com o género, com o patriarcado, com a opressão, com esse lugar de que a mulher que denuncia, que fala do abuso sexual, da violência, da miséria, do salário menor do que o do homem, pode correr o risco de ser internada num manicómio, como muitas foram, vítimas de violência social masculina, mas que também romperam com as suas formas de ver o mundo. Conheço algumas dezenas de pessoas que eram “loucas de hospício”, digamos assim, e hoje estão aí a participar nos blocos de Carnaval, na banda de música “Harmonia enlouquece”, com vários CD gravados e com shows. Em tudo o que fazemos na nossa área contratamos os nossos blocos, os nossos artistas, os livreiros, as cooperativas.
[(*) Quando esta entrevista foi realizada, o tema estava a votação e acabou por vencer].
Esse trabalho é facilmente replicado em qualquer parte do mundo?
É, porque é uma mudança de relação. Não temos um evento no Brasil de saúde mental que não tenha, tanto na mesa, como na receção, na plateia, pessoas chamadas usuárias, sobreviventes, que se vão tornando ativistas. Levámos aquela ideia do protagonismo da comunidade terapêutica, do coletivo daqueles anos, para a prática política social. Se vamos discutir o tema, discutimos com eles e elas que estavam nos hospícios, que estão aí a sofrer. É uma mudança de cultura, de prática.
Nos livros de Psiquiatria, muito do que nós aprendemos não é da pessoa nem da doença, é da prática do que a Psiquiatria fez às pessoas. Diz-se que uma doença crónico-degenerativa vai levando cada vez mais a pessoa a um alheamento, a uma perda de noção, a uma desorientação. Ora, se colocamos uma pessoa dentro de uma instituição psiquiátrica durante trinta anos, o que vai acontecer?
Tem vindo a dizer que o termo “Saúde Mental” está a ser naturalizado e generalizado de uma forma perigosa. Porquê? O que está a acontecer?
O termo “Saúde Mental” é muito ambíguo, foi definido nos Estados Unidos como uma ideia de um estado de bem-estar psíquico, um estado de plenitude mental onde não cabe o sofrimento. A própria Organização Mundial da Saúde [OMS] já definiu que Saúde Mental não é a mera ausência de doença, transtorno mental, mas é um completo estado de bem-estar bio-psíquico-social. E aí complicou, piorou. O que a OMS quis dizer é que o problema da Saúde Mental não é só tratar doença, o sofrimento mental, mas é o completo estado de bem-estar bio-psíquico-social. Então eu digo, em tom jocoso: “apresentem-me essa pessoa, uma pessoa que esteja em completo bem-estar bio-psíquico-social”. O que é que é isso? Uma pessoa que não tem nenhum sofrimento, nenhuma aspiração de melhorar, de mudar? O sofrimento não é algo negativo, o sofrimento é definido como algo que produz vida. Penso, logo existo e sofro, tomo consciência de que vou morrer, vou perder, vou adoecer, vou ter de entrar na luta para ganhar alguma coisa.
A partir principalmente da pandemia, o termo “Saúde Mental” ficou muito naturalizado e coisificado como sendo esse estado de falta de qualquer dor e sofrimento que, na vida moderna, não é possível. Se morar numa cidade tensa como o Rio de Janeiro, e outras, é preciso estar atento na vida, correr atrás de dinheiro, lutar. Há cada vez mais essa ideia de um ideal utópico de bem-estar que vai ficando afastado. O que é que isso significa? Que se pode patologizar mais o sofrimento. Então porque está a aumentar o suicídio no mundo de uma maneira expressiva, se a vida está sendo absolutamente desqualificada, o valor da vida, o significado da solidariedade, o reconhecimento do outro? As pessoas já não têm possibilidade de escuta, de relacionamento com o outro, a não ser via redes artificiais. O termo “Saúde Mental” acabou por ser um estímulo ao processo de patologização, de medicalização. E então começa-se a ver essa insatisfação humana, que é política, que é social, a ser individualizada, como um problema individual de transtorno mental, de depressão, de desânimo.
Quando diz que a Saúde Mental é também uma questão de direitos humanos, direitos sociais e políticos, as pessoas entendem o que quer dizer?
Acho que entendem. Agora estou num diálogo importante com o Conselho Nacional de Justiça do Brasil, com vários procuradores públicos, vários defensores do povo, defensores de direitos humanos, e temos falado nisso, do problema de chamar de doença ou transtorno mental quando se pega numa questão política que é coletiva. Há mais desemprego, menos postos de trabalho, menos perspetivas sociais.
A Universidade de São Paulo (USP) foi considerada, num ranking recente, uma das cem melhores universidades do mundo. Mas o suicídio entre estudantes da USP está altíssimo. Há um mês, a Faculdade de Medicina teve três suicídios e teve de ser fechada durante um tempo porque se estava a criar um clima de “contágio”. Não se pode dizer que esse é um problema individual de saúde mental. É um problema político, social, cultural que tem de ser pensado dentro de um contexto. O que se passa com uma universidade, considerada uma das melhores do mundo, em que se morre de suicídio? As pessoas deviam estar felizes, com vontade de viver e não de se matar.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
Uma parceria com:
Com a colaboração de: