O artigo de opinião começou a circular entre os telemóveis socialistas ainda de madrugada e assim que foi colocado online pelo jornal Público. E caiu mal, sobretudo na direção do partido. Era o secretário-geral que saiu há um ano, o antigo primeiro-ministro e atual presidente do Conselho Europeu, a juntar-se à onda de críticas e a tocar numa ferida que o PS de Pedro Nuno Santos estava a tentar cicatrizar rapidamente, ainda que sem grande sucesso. Mas António Costa não estava sozinho.
Também dos mais próximos de Pedro Nuno Santos vinham golpes difíceis de digerir para a atual direção do partido. Alexandra Leitão contribuía para manter o assunto à tona, não só pelo que escreveu publicamente mas por se ter demitido, na véspera, da comissão política da Federação da Área Urbana de Lisboa dirigida por Ricardo Leão — saída que acabou por passar despercebido mas que foi confirmado ao Observador por fontes conhecedoras do processo.
A história é longa, tem várias camadas e resultou no primeiro grande choque entre o ex-líder do partido e o atual. António Costa assinou um artigo crítico “em defesa da honra do PS”, mesmo depois de Pedro Nuno Santos já ter vindo tentar estancar as ondas de choque provocadas pelas declarações de Ricardo Leão a defender despejos para autores de desacatos que vivam em habitação municipal. Pedro Nuno segurou o líder FAUL e autarca de Loures e esperava seguir caminho mais consequências; Costa veio dar o empurrão que faltava para uma crise anunciada.
“Inaudito”, “inoportuno”, “arrogante”. Figuras do PS atacam Costa
O líder socialista não conseguiu travar as críticas e, sob essa pressão, Ricardo Leão acabou mesmo por apresentar a demissão de líder da FAUL para “prevenir que o PS seja prejudicado por uma polémica criada pela descontextualização de uma recomendação aprovada por 64% dos vereadores da Câmara Municipal de Loures”. O mesmo Leão, ainda assim, não deixou de responder a Costa: “Rejeito a associação entre criminalidade e imigração, que nunca fiz, nunca farei e que, isso sim, é atentatório dos valores humanistas do socialismo democrático e internacionalista”, escreveu o socialista, numa referência ao artigo assinado pelo antigo primeiro-ministro.
O artigo de António Costa não só passava por cima do que já tinha dito Pedro Nuno Santos (que tinha tentado resumir a questão a um “mau momento” de Leão), como dava a entender que a defesa dos valores do PS não tinha sido feita devidamente por “calculismo taticista“, relativizando declarações de quem tinha ofendido “gravemente os valores, a identidade e a cultura do PS”.
“É inaudito“, comenta-se no PS sobre um antigo secretário-geral ter vindo apontar o dedo desta forma ao sucessor. “Inoportuno“, “prejudicou o partido”, ouve o Observador no topo do PS na sequência do artigo. “Quando Luís Montenegro faz asneira não tem imperativos de consciência para escrever um artigo?”, questiona-se mesmo em relação a Costa. Duarte Cordeiro, que trabalhou de muito perto com António Costa nos últimos anos e faz parte da direção de Pedro Nuno foi claro na condenação do artigo. Em declarações à Visão, classificou-o como “arrogante e desnecessário“.
O mal-estar que o artigo provocou foi visível na conferência de imprensa que Pedro Nuno Santos deu pouco depois de Ricardo Leão ter anunciado publicamente a sua demissão da liderança da FAUL. O líder do PS começou por dizer não queria comentar o conteúdo do artigo assinado pelo seu antecessor porque “não seria bom para ninguém“, mas não resistiu em responder ao antigo primeiro-ministro.
“Sobre o taticismo, quero dizer outra coisa: se há político em Portugal que não é tático, sou eu, e acho que isso me é reconhecido pela generalidade de quem acompanha a vida política portuguesa”, atirou Pedro Nuno Santos — isto vindo do líder que, na noite eleitoral das legislativas, proclamou o fim da “táctica política” no PS, uma afirmação lida na altura como um corte com a linha do costismo no partido.
Não foi, no entanto, o único socialista a dar nota do desconforto com a intervenção de António Costa. No Facebook, Carlos César — presidente do PS e um dos mais próximos do antigo primeiro-ministro — veio dizer estar “de acordo com o essencial do artigo que foi publicado hoje no jornal Público”, recordando porém que Pedro Nuno Santos já tinha feito “declarações no mesmo sentido”.
Mas o recado mais relevante vinha a seguir. Numas linhas que podem ser entendidas como mais dirigidas a António Costa, César lembrou que “na vida corrente dos partidos ou das administrações há sempre casos ou pessoas que com maior ou menor gravidade têm opções ou condutas dissonantes” e que “isso também aconteceu nestes últimos anos” em que o partido esteve “no governo”. “Mas a honra do PS não está dependente dessas situações excecionais”, recordou o presidente socialista.
César dizia ainda que a “boa resolução” do caso “não beneficia com excessos exorcistas” e ainda terminava a publicação com uma tirada: “Uma parte também boa deste artigo é ver que o nosso presidente do Conselho Europeu continua atento e empenhado no PS”. No partido leu-se um aviso a Costa sobre já ter passado o seu tempo de liderança — e há até quem aponte que, no passado, o próprio António Costa também não gostou de artigos de antecessores desfavoráveis ao seu trabalho, como o do ex-primeiro-ministro Cavaco Silva, criticando o seu governo.
O entendimento na direção do partido é que há que não cortar com “as visões diferentes que existem” entre socialistas, sobretudo autarcas. “O PS é um reflexo da sociedade. Estas visões [populistas] já cá estão dentro”, comenta um dirigente com o Observador, defendendo que a linha a seguir deve ser integrar e explicar e não “atirar borda fora e engrossar as fileiras da extrema direita”. “Ninguém defendeu o que Ricardo Leão disse no PS”, comenta a mesma fonte garantindo que o que foi dito pelo autarca de Loures não se enquadra nos valores do partido; mas o partido tem de saber “trabalhar internamente” essas diferenças.
A demissão de Leitão já depois do líder ter segurado Leão
Mas na direção do PS também se aponta outro momento decisivo para o desenlace que o caso Ricardo Leão acabou por tomar. Na terça-feira, já depois de o líder do partido ter falado sobre o assunto, tentando travar as críticas internas e externas, Alexandra Leitão, a líder parlamentar que integrava a Comissão Política da FAUL, apresentou a demissão deste cargo. Também ela tinha criticado publicamente o presidente da Câmara de Loures pelas declarações relativas a despejos e entendeu deixar o órgão presidido por Leão. O Observador tentou falar com Leitão sobre esta decisão, mas a deputada não respondeu.
Foi, aliás, neste mesmo dia e ainda antes de ler o artigo assinado por António Costa, José Leitão e Pedro Silva Pereira, que Ricardo Leão apresentou a demissão a Pedro Nuno Santos. O próprio líder disse isso na conferência de imprensa, negando que houvesse qualquer ligação entre o artigo e a decisão de Leão: “Resulta de uma reflexão do próprio presidente da FAUL e que me foi comunicada ontem [terça-feira]”. Pedro Nuno Santos nunca considerou que fosse necessário chegar à demissão, mas se Leão já estava preparado para avançar, o artigo assinado por Costa acabou por não permitir que nada o travasse.
Certo é que as críticas nunca serenaram. Ainda na segunda-feira à noite, num plenário de militantes em Lisboa, onde dois deputados (Mariana Vieira da Silva e David Amado) iam falar do Orçamento, um dos temas mais falado acabou por ser mesmo o das declarações polémicas de Leão, sempre criticadas — nessa reunião estava precisamente José Leitão, que assinou o famoso artigo.
Ainda assim, o PS está a tentar tudo para evitar que o problema se estenda às autárquicas. E por duas vias. Por um lado, a manutenção de Leão podia trazer problemas a eventuais negociações com a esquerda (que tem sido muito audível sobre as declarações dos despejos) em alguns concelhos da região de Lisboa — uma pretensão assumida pelo PS.
O seu afastamento tira do caminho esse problema. Por outro lado, perder um autarca forte com Ricardo Leão na corrida decisiva do próximo ano seria um problema difícil de resolver a esta distância. Mas se o autarca deixa a liderança da FAUL e se afasta da coordenação do processo autárquico no concelho, não deixa de ser recandidato a Loures.
O primeiro a dizê-lo foi o próprio Ricardo Leão, logo na nota enviada à comunicação social a dar conta da demissão. O autarca escreveu que o seu afastamento da liderança da FAUL ia permitir que estivesse focado “na recandidatura autárquica em Loures, ciente do importante trabalho que temos desenvolvido em prol de todos e de todas e que levaremos a sufrágio democrático nas próximas eleições autárquicas, confiantes de que o mesmo será favoravelmente avaliado pelo povo de Loures”.
Mesmo sem o dizer abertamente, Pedro Nuno Santos parece ter confirmado que Leão será novamente candidato a Loures em 2025. “Nós temos um presidente de Câmara Municipal em Loures, como em muitos outros sítios no país, e os nossos presidentes de câmara em exercício, podendo ser reeleitos, serão recandidatos“, respondeu o líder do PS na conferência de imprensa quando confrontado pelos jornalistas. Perante a insistência sobre se mantinha a confiança em Leão para se manter em funções de autarca, o líder do partido esquivou-se no direito que Leão tem em recandidatar-se e ser avaliado pelos eleitores.
Quanto à sucessão na FAUL, a situação poderá voltar, mais uma vez, às mãos de Pedro Pinto, que após a saída de Duarte Cordeiro já tinha ficado com a estrutura nas mãos de forma interina. A eleição pode só acontecer daqui a uns meses, mas quem conhece bem a federação avisa para os riscos de “divisão” interna em vésperas de umas eleições autárquicas que serão muito importantes para o partido e para a atual direção de Pedro Nuno Santos.
Plenário do PS sobre Orçamento acaba em críticas a Ricardo Leão