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Sara não queria mesmo Salvador (ou seja qual for o nome que venha a ser definitivo). Mal sentiu as dores do parto, correu até à tenda onde guardava os objetos pessoais para ir buscar um saco de plástico. O objetivo? “Nele colocar o bebé, conforme o plano que previamente traçara e que consistia em nunca revelar a sua gravidez e o nascimento de um bebé com vida, que pretendia matar”. É, pelo menos, o que se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que rejeitou o pedido de libertação da jovem e ao qual o Observador teve acesso. Foi, aliás, um dos argumentos apontados pela juíza que decretou a prisão preventiva para acreditar que a jovem premeditou o crime. O outro argumento? Sara terá impedido que o filho fosse salvo mais cedo pelo atual companheiro.
Ao homem, Sidney, não lhe faltavam razões para desconfiar que algo se passava. O volume abdominal que a namorada apresentava, há já alguns meses, tinha-o até levado a questioná-la sobre o mesmo. A resposta era sempre igual: devia-se a problemas intestinais. Mas Sara sabia qual era o verdadeiro motivo. Tinha feito um teste de gravidez num centro de apoio a sem-abrigo, que tinha dado positivo. Foi, pelo menos, o que contou no primeiro interrogatório. Sabia que estava grávida desde, pelo menos, o sétimo mês. E revelou ainda à juíza de instrução que “lhe perguntaram se queria abortar”. Ela disse que não — embora só se possa abortar em Portugal, apenas por opção da mulher, até às 10 semanas.
Sara saiu de Cabo Verde há cerca de dois anos para estudar, mas acabou por desistir. Por essa altura, a mãe, que vivia em Portugal regressou ao seu país e a jovem acabou por ir viver com uma irmã, com quem se terá desentendido. Foi o que a levou a ir viver para a rua. Antes de se mudar para uma tenda com Sidney, prostituía-se na zona do Cais do Sodré. Daí que, explicou à juíza, não saiba “quem possa ser o pai da criança”. Esta é a descrição do que terá acontecido hora a hora, com base nas declarações da jovem cabo-verdiana à juíza que lhe decretou a prisão preventiva.
Da meia-noite às 3h00. O parto às escondidas e o saco para pôr o bebé
Na noite que antecedeu o parto, Sara tinha saído da tenda onde dormia com o atual companheiro pouco depois da meia-noite, alegando que estava com uma “indisposição” e que “ia dar uma volta”. Sidney, apercebendo-se do seu “sofrimento” e chegando mesmo a sugerir uma ida ao hospital, quis acompanhá-la. A jovem, com quem tinha aquela relação há quatro meses, respondeu-lhe que “não era preciso” e o homem não teve opção senão esperar.
Sara saiu da tenda àquela hora porque se apercebeu que estava em trabalho de parto e as dores já se tornavam insuportáveis. Por pouco não lhe rebentaram as águas dentro da tenda — aconteceu assim que saiu dela. Uma vez cá fora, “decidiu ir à tenda de apoio, onde guardam roupas e alimentos, buscar um saco de plástico“, lê-se no acórdão.
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Caminhou depois em direção à discoteca Lux Frágil. A investigação aponta as 2h00 da madrugada para a hora do nascimento de Salvador — o nome dado pela equipa do INEM que viria a cuidar dele. Terá sido aí que Sara “sentiu que o bebé se encontrava prestes a nascer, pelo que baixou as calças, colocou-se de cócoras, fazendo força por forma a expelir o bebé, o que aconteceu, caindo no chão”. O bebé, lê-se no acórdão, chorou de seguida — confirmando-se que nasceu com vida.
O que Sara fez a seguir foi um dos vários comportamentos que levou a juíza a acreditar numa premeditação do crime: subiu as calças, cortou o cordão umbilical — embora a investigação ainda não tenha conseguido apurar como o fez —, “agarrou no bebé e no aglomerado de sangue e tecidos que foram expelidos no momento do parto” e colocou-os dentro do saco que tinha levado.
Se o que aconteceu nas três horas que durou o parto era, até agora, um mistério, o que aconteceu de seguida é já conhecido do público: Sara caminhou até às traseiras da discoteca e atirou o saco com o bebé para o ecoponto amarelo. Regressada para perto da tenda, a jovem ter-se-á lavado, trocado de roupa e colocado o vestuário sujo de sangue em dois sacos de plástico que terá atirado também ao lixo.
Já a suspeitar de que algo se passava — até porque só às 3h da manhã é que Sara regressou —, o homem ficou ainda mais desconfiado com o que encontrou na manhã seguinte, do lado de fora da tenda: uma bacia com água e vestígios de sangue. A namorada respondeu-lhe que “era do período”, pode ler-se no acórdão.
Das 3h00 às 13h00. A oportunidade para salvar o filho que Sara evitou
Por volta do meio-dia, o casal decidiu ir até Alfama, “dar um passeio e visitar uns amigos” — o que os ia obrigar a voltar à estrada que Sara percorrera na noite anterior. O inesperado aconteceu: junto ao ecoponto onde a jovem tinha deixado o filho recém-nascido, o casal encontrou um sem-abrigo e ouviu-o a comentar que um outro sem-abrigo “tinha visto um bebé nos contentores junto à discoteca”. A conversa levou Sidney, já desconfiado, a aproximar-se dos ecopontos e a “vasculhar alguns deles” para verificar se havia ou não um bebé.
Ninguém viu qualquer bebé ou ouviu sequer um choro. Exceto Sara. A jovem, que acompanhou o namorado, “visualizou dentro do contentor amarelo o seu filho, mas nada disse, e com medo que o companheiro se apercebesse, insistiu com este para que se fossem embora”, adianta o acórdão. O que aconteceu. Sara explicou à juíza de instrução que “não deixou que o companheiro fosse ver porque pensou que ele ficava zangado com ela”. Salvador continuou dentro do contentor — que serviu de estufa — e a sua mãe seguiu até Alfama.
Das 13h00 à madrugada seguinte. Bebé salvo e mãe detida
Mais tarde, de regresso ao local onde têm a tenda montada, já o casal se deparou com um aparato policial: tinha mesmo sido encontrado um bebé dentro de um contentor. Àquela hora, já Salvador se encontrava no hospital. O facto de ter nascido de apenas 36 semanas (antes das 38 a 40) fez com que fosse um bebé mais frágil. Aliás, o INEM chegou a referir que a criança não sobreviveria por muito mais tempo.
Surpreendido, Sidney aproximou-se dos agentes da PSP e contou-lhes que, horas antes, tinha estado ali a vasculhar os caixotes do lixo porque dois sem-abrigo que ali vivem lhe tinham dito que havia um bebé dentro de um deles. Mas que nada tinha encontrado. Já Sara optou por não se aproximar dos agentes “com receio e por forma a não ser descoberta”.
Nessa noite, Sidney apercebeu-se que a companheira tinha as calças sujas de sangue e questionou-a. Sara respondeu mais uma vez que “era por estar com o período”. Apercebeu-se também que a barriga da jovem já não estava tão inchada como habitual. A resposta foi a mesma: “Estava mais pequena porque eram gases”, lê-se no acórdão. A noite passou, mas na madrugada as suspeitas de Sidney confirmaram-se: a PJ apareceu para deter a jovem de 22 anos, por suspeitas de ter cometido um crime de homicídio qualificado na forma tentada.
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O que Sara disse à juíza que decidiu a prisão preventiva
Sara confirmou à juíza aquilo que a investigação descobriu ou já desconfiava. O que ninguém sabia era o porquê de o ter feito. “Porque estava desesperada”, que “não sabia o que fazer ao bebé” e que “não tinha condições porque estava na rua”. Ainda assim, não conseguiu explicar à juíza por que é que não pensou em deixar o filho num local onde pudesse ser encontrado. “Não sabia o dia que ia nascer” o bebé e, quando entrou em trabalho de parto, “não pensou em pedir ajuda”. A jovem de 22 anos admitiu mesmo que “não queria que o companheiro soubesse que estava com dores de parto”, não explicando porquê. A decisão final foi prender a jovem preventivamente — a medida de coação máxima.
Foi exatamente esta prisão que fez com que o caso chegasse ao Supremo Tribunal de Justiça. A decisão levou os advogados Varela de Matos — candidato a bastonário da Ordem dos advogados —, Dino Barbosa e Filipe Duarte a apresentarem um pedido de habeas corpus para libertar a jovem. Varela de Matos disse ao Observador que não sabe quem é a advogada de Sara, nem sequer falou com nenhuma delas.
Depois de entregue o pedido, a juíza de instrução criminal que decretou a prisão preventiva teve de explicar ao STJ a razão de ter aplicado essa medida de coação e decidir se a mantinha ou não detida. A decisão foi mantê-la. Porquê? Pelo “facto de a arguida, de forma premeditada, ocultando a gravidez e munindo-se de um saco de plástico para o efeito, ter depositado o seu filho acabado de nascer num caixote de lixo na via pública”.
A juíza defendeu que, ao contrário do que afirma o pedido de habeas corpus, a conduta de que Sara é suspeita “corresponde à prática do crime de homicídio na forma tentada e não de exposição, abandono ou infanticídio“. A juíza não acredita que o que a jovem fez tenha sido motivado por uma “perturbação pós-parto” — que, justifica, não crê ser “compatível com a conduta da arguida que indicia a sua premeditação na prática dos factos”. “Após o parto, a arguida colocou o bebé e o material biológico proveniente do parto, no referido saco de plástico e depositou-o num ecoponto amarelo”, aponta, lembrando que o bebé veio a ser encontrado “desnudo, gelado, com o cordão umbilical irregularmente cortado e coberto de sangue”.
Esta quinta-feira, o STJ decidiu manter a jovem presa. Os juízes conselheiros concluíram que a arguida “não se encontra em situação de prisão ilegal” e que não existe “abuso de poder”. A prisão preventiva “foi ordenada pela autoridade judiciária competente, por factos fortemente indiciados”. Sara vai pois continuar na cadeia de Tires.
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