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As 3 horas 40 minutos e 52 segundos mais importantes da vida de Soares

Em 1975, na fase mais perigosa da revolução, Soares enfrentou Cunhal na RTP e denunciou as tentações totalitárias do PCP. Miguel Pinheiro lembra um debate inesquecível. "Olhe que não"? Olhe que sim.

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Tudo começou com o fumo insistente de um SG Gigante e de um Português Suave. Joaquim Letria tinha um cigarro na mão — e José Carlos Megre também. No dia 6 de novembro de 1975, os dois jornalistas estavam sentados num estúdio da RTP, no Lumiar, e preparavam-se para o debate mais esperado, polémico, imprevisível, temido e antecipado da revolução portuguesa. À esquerda do ecrã, Mário Soares, secretário-geral do PS; à direita, Álvaro Cunhal, secretário-geral do PCP. O frente a frente tinha hora para começar: perto das dez da noite. Mas não tinha hora para terminar. Logo na sua primeira intervenção, o jornalista José Carlos Megre anunciou esta peculiar flexibilidade horária: “Hoje, o programa, como diz a imprensa, não tem limite de tempo. Mas também não poderemos estar aqui por muito mais do que, no máximo, vá lá, duas horas”.

No máximo duas horas? Nem pensar nisso: na realidade, o frente a frente durou 3 horas 40 minutos e 52 segundos. E, mesmo assim, só teve que chegar ao fim por causa de um problema técnico insuperável: as bobines de gravação acabaram. Quando tinha passado 1 hora 22 minutos e 46 segundos, José Carlos Megre anunciou: “Ó Joaquim, estão ali a fazer sinal de que temos mesmo que parar aqui para um intervalo porque, como este programa está a ser integralmente gravado, e há um tempo limite das respetivas bobines, é preciso fazer a mudança de bobine”.

A meio da segunda parte, a dificuldade transformou-se em drama. Ao passarem 2 horas 29 minutos e 41 segundos, a câmara focou a mesa dos moderadores e ao lado de Joaquim Letria estava uma cadeira vazia. O que é que tinha acontecido? A dada altura, um técnico aproximara-se de gatas, com todos os cuidados para não aparecer no plano, e avisara Megre que estavam a ficar sem bobine. O jornalista deixou o estúdio para tentar resolver o problema. Foi preciso apagar algumas gravações antigas para poder continuar.

"Creio que um programa tão longo acaba por fatigar os telespectadores, isto são horas... há gente que trabalha, gente que precisa de se deitar..."
Álvaro Cunhal

Com 3 horas 14 minutos e 30 segundos de frente a frente, numa altura em que Álvaro Cunhal olhou para o relógio com um sorriso, José Carlos Megre suspirou: “Se me dão licença, queria dizer o seguinte: isto é… efetivamente… tinha-se dito que era sem limite de tempo… São 1h25…” Mário Soares interrompeu: “Pois é, 1h25”. Já trocando tudo, e chamando “Álvaro Soares” ao líder do PS, Megre mexeu num papel que tinha na mesa e anunciou: “Recebo agora uma indicação do estúdio, temos cerca de mais ou menos 30 minutos de bobine, no máximo”. Álvaro Cunhal já estava cansado: “Creio que um programa tão longo acaba por fatigar os telespectadores, isto são horas… há gente que trabalha, gente que precisa de se deitar…”

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Não era bem assim: muita, muita gente estava disposta a aguentar o tempo que fosse preciso sem dormir. Segundo uma estimativa do Jornal de Notícias da época, havia três milhões de portugueses a seguir o debate pela televisão e pela rádio. De acordo com o jornal A Luta, as ruas “despovoaram-se completamente” e só duas das então 20 salas de cinema de Lisboa tinham números de “assistência normal”.

Os políticos também pararam todos. Uma reunião que decorria naquela noite entre o Governo e o Conselho da Revolução, por exemplo, foi interrompida para que os participantes pudessem seguir o debate. No restaurante Tágide, alguns deputados viram o frente a frente durante um jantar oferecido por Marcelo Rebelo de Sousa.

Alguns desses deputados devem ter ficado gelados logo nos primeiros minutos do frente a frente. A pergunta inicial de Joaquim Letria foi sobre a necessidade de alargar o “bloco social de apoio à revolução”, mas Álvaro Cunhal afirmou imediatamente, com tremenda clareza e de forma cortante: “Uma revolução faz-se por alguém e, naturalmente, contra alguém”. E insistiu, para quem não tivesse percebido à primeira: “Tem que se fazer contra alguém, uma revolução”.

Essa era uma das angustiantes inquietações de Mário Soares naquela altura: afinal, a revolução portuguesa estava a ser feita contra quem?

O debate entre Soares e Cunhal foi moderado por Joaquim Letria e por José Carlos Megre

Os inimigos da revolução

“O sr. dr. poderá rir, mas o povo português não ri”

A revolução estava à procura de inimigos — o que só mostra, de forma mais evidente e crua, a dimensão da coragem do líder socialista naquela noite. A 6 de novembro de 1975, Portugal oscilava entre uma democracia ocidental e uma ditadura comunista. E, nesta segunda hipótese, Soares poderia ter que encarar a prisão ou o exílio (ou ambos).

Pior. Na época, bastava um descuido, ou uma provocação, ou um erro de cálculo, ou uma precipitação, ou, simplesmente, uma vontade de confronto para que o país entrasse em guerra civil. Nisso, tanto Soares como Cunhal estavam de acordo. O líder socialista denunciou o aparecimento dos SUV (Soldados Unidos Vencerão), que pretendiam pôr em causa a hierarquia das Forças Armadas, usando uma frase definitiva: “Isto leva em linha reta o país para uma confrontação armada e para uma guerra civil”. E Cunhal queixou-se da resistência do Norte ao avanço da revolução com expressões igualmente graves: “Esse tema da marcha do Norte sobre o Sul para esmagar o inimigo do Sul não nos agrada. É a guerra civil, isto é a tendência para a guerra civil”.

Essa tendência só iria acentuar-se: apenas sete dias depois do debate, a 13 de novembro, à hora de almoço, Mário Soares recebeu a informação de que se estava a preparar um golpe para o fim-de-semana seguinte
com o objetivo de criar a chamada “Comuna de Lisboa”. Enviou imediatamente um recado a Francisco Sá Carneiro, líder do PPD (que só mais tarde mudaria o nome para PSD): “Diga-lhe que saia imediatamente de Lisboa porque vai haver um golpe da esquerda revolucionária para tomar conta do poder. Não há condições de segurança, portanto ele deve sair da cidade. Eu próprio também vou sair. Comunique-lhe isto o mais depressa possível para ele tomar as medidas que entender”. Depois disto, Soares seguiu para o Porto.

"Aquilo de que o Partido Comunista deu provas durante estes meses é que quer transformar este país numa ditadura", acusou Soares. E Cunhal respondeu: "Olhe que não, olhe que não".

Os estados-maiores do PS, do PPD e do CDS (que incluía dirigentes e deputados à Constituinte) juntaram-se no Porto e organizaram uma manifestação na Praça General Humberto Delgado. Os dias passaram e Lisboa não caiu, mas, numa altura em que muitas pessoas tentavam encostar os socialistas à revolução, estava absolutamente claro para todos em que lado se colocava o PS.

Na RTP, Soares já avisara Cunhal. Aos 29 minutos e 39 segundos do debate, o socialista olhou bem de frente para o comunista, debruçou-se sobre a mesa e disse: “O sr. dr. Cunhal diz-me que o PS tem que escolher entre o bloco revolucionário ou o bloco da direita. Ora, o PS já escolheu o seu campo desde sempre. O PS é um partido de esquerda, quer instaurar em Portugal uma sociedade socialista, portanto, uma sociedade sem classes — mas, em liberdade; mas, respeitando os direitos do homem; mas, através da democracia e do consenso popular maioritário. Não fará uma revolução, nem irá para um socialismo que transforme este país numa ditadura. E aquilo de que o Partido Comunista deu provas durante estes meses é que quer transformar este país numa ditadura”.

Álvaro Cunhal, mexendo na orelha esquerda e fazendo um sorriso, disse a frase mais conhecida do debate, que é repetida até hoje: “Olhe que não, olhe que não”.

Foi uma tática habitual ao longo de toda aquela noite de 6 de novembro. Sempre que Mário Soares confrontava Cunhal com os perigos de uma ditadura comunista, o líder do PCP usava a ironia, o sarcasmo ou o sorriso:

Mário Soares — Se esses comunistas estivessem no poder, o que é que eles fariam, e como é que reagiam, e com que ferocidade eles reagiam…
[Álvaro Cunhal solta um riso]
Mário Soares — … Nós, acerca disso… O sr. dr. poderá rir…
Álvaro Cunhal — Pois rio, pois rio.
Mário Soares — E acho bem que ria, mas a verdade é que o povo português não ri, porque sabe que isso podia ser assim e não quer voltar a uma ditadura.

E outra vez, mais à frente:

Mário Soares (levantando a voz e batendo com o dedo na mesa) — Se o Partido Comunista não aceita a democracia e se quer instalar aqui uma ditadura séria e férrea…
Álvaro Cunhal (sorrindo com a cabeça apoiada na mão direita) — Isso é que é uma injúria, é uma invenção de princípio a fim…

A defesa do PPD e a medalha Lenine

“O sr. dr. teima em querer governar com uma minoria…”

Em novembro de 1975, os partidos enfrentavam cada vez mais dificuldades. No Norte, as sedes do PCP eram atacadas e incendiadas (aliás, Cunhal atirou a Soares: “Costuma-se dizer ‘Quem semeia ventos colhe tempestades’. O PS soprou bastante fogo anticomunista, que ateou um pouco as chamas em que arderam as sedes do PCP”). No Sul, os comícios do PPD eram interrompidos com pedras, com tiros e com todo o tipo de boicotes. A 19 de outubro, por exemplo, em Faro, Francisco Sá Carneiro gritou para o microfone durante um discurso: “Nós não arredamos pé da nossa terra, do nosso país, não nos deixamos intimidar por essa minoria vociferante e gesticulante. Não! Nem nos deixamos insultar por essa meia dúzia de energúmenos. Vieram-me agora dizer que estamos sem luz e eu pergunto-vos se quereis que continue mesmo sem luz ou se quereis acabar já?”. Ouviu aplausos e incentivos. “Continuamos, pois, a demonstrar que somos um partido sem medo, com luz ou sem luz”.

"Até sucede que o povo português preferiu o PPD ao seu partido... em grande maioria! Votaram mais do dobro de portugueses no PPD do que no seu partido... Mas o sr. dr. estende o dedo: 'Estes têm que sair do governo!' Com que direito?"
Mário Soares

Álvaro Cunhal ouvia o líder do PPD e não tinha dúvidas: no debate da RTP, o secretário-geral do PCP disse várias vezes que Sá Carneiro, era um “reacionário” — o que, em plena revolução, era uma acusação pesada. Mário Soares podia ter ouvido isto em silêncio, até porque não estava em causa o PS, mas tomou outra opção e defendeu os social-democratas enquanto era ouvido por milhões de pessoas:

Mário Soares — Quer-me dizer que o sr. dr. quer excluir deste país uma grande fatia deste país que é quase, quase metade não direi, mas pelo menos é uma porção imensa do povo português? Eu penso que isso leva-nos diretamente à guerra civil.
Álvaro Cunhal — Mas está enganado, ninguém prescinde do PPD no país, queremos é exclui-lo do governo. É uma coisa diferente. No país, ele fica. Mas no governo não!
Mário Soares — É preciso tolerância.
Álvaro Cunhal — Se é um governo democrático, não tem nada que fazer no governo. Mas no país, que fique. Pois se é a terra deles…
Mário Soares — Não é o sr. dr. que é o juiz disso.
Álvaro Cunhal — Não, eu tenho a minha opinião, como português.
Mário Soares — É, o povo português… Até sucede que o povo português preferiu o PPD ao seu partido… em grande maioria! Votaram mais do dobro…
Álvaro Cunhal — Exato, exato.
Mário Soares — … de portugueses no PPD do que no seu partido… Mas o sr. dr. estende o dedo: “Estes têm que sair do governo!” Com que direito?

26. Sá Carneiro e Soares à conversa no parlamento. E um cigarro à espera nas mãos do líder do PPD.

“É preciso tolerância”, disse Mário Soares para defender Sá Carneiro e o PPD durante o debate

O secretário-geral dos socialistas deu ainda mais uma volta neste parafuso retórico: “Nós temos que saber se queremos a democracia ou se não queremos a democracia, se vamos para o socialismo através da democracia, através das liberdades, através do respeito da pessoa humana, sem violências, e poupando ao país confrontações, ou se pelo contrário suscitamos essas confrontações para ganhar o poder e para impor uma revolução contra a vontade do povo. Esta é que é a nossa profunda divergência. Enquanto não nos pusermos de acordo sobre isso — e para isso tem o PCP que aceitar a democracia, porque nós nunca aceitaremos a ditadura — enquanto o PCP não nos der a confiança absoluta que respeita a democracia em Portugal não há acordo possível entre o PCP e o PS”.

Álvaro Cunhal insistiu: “Não é com reacionários, não é com inimigos das liberdades que se defendem as liberdades — é aliando-se às forças revolucionárias.”

Para Mário Soares, a dada altura, já era demasiado:

Mário Soares — É que o sr. dr. teima em querer governar com uma minoria…
Álvaro Cunhal — Não, não, não é isso…
Mário Soares — Teima em querer fazer uma revolução com uma minoria.
Álvaro Cunhal — O que eu teimo é em querer fazer uma revolução com revolucionários, em querer fazer uma democracia com democratas, em querer fazer socialismo com socialistas.
Mário Soares — Mas com o apoio maioritário do povo português, porque, se não a fizer com o povo português não é uma revolução, é uma contra-revolução. (…) O povo português não aceita isso.

"Depois de ouvir o sr. dr. Álvaro Cunhal fiquei com a convicção de que, se eu fizesse essa aliança que o sr. doutor propõe, me daria a medalha Lenine. Dar-me-ia uma medalha Lenine e nós teríamos uma ditadura em Portugal."
Mário Soares

E Soares também não aceitava. Para ele, um eventual acordo com o PCP só poderia terminar de maneira trágica: “Depois de ouvir o sr. dr. Álvaro Cunhal fiquei com a convicção de que, se eu fizesse essa aliança que o sr. doutor propõe, me daria a medalha Lenine. Dar-me-ia uma medalha Lenine e nós teríamos uma ditadura em Portugal. Ora eu ditadura tive o que bastou, que foi a ditadura do Salazar e do Caetano. Não volto a ter essa ditadura por nenhuma maneira.”

Mais uma vez, Cunhal foi irónico: “Essa política não lhe dá a medalha Lenine, mas pode dar-lhe a medalha Sá Carneiro ou uma medalha desses lados…”

O cerco ao Governo

“Um conjunto de energúmenos…”

O PCP não queria tirar apenas o PPD do poder — também queria tirar do poder o próprio Governo. Os primeiros segundos de Soares no debate da RTP foram usados para denunciar isso mesmo. O líder socialista acusou os comunistas de estarem “com meio pé dentro do Governo e o resto do corpo fora”. O VI Governo provisório era liderado pelo colorido almirante Pinheiro de Azevedo e tinha cada vez menos margem de manobra. Soares queria que “o governo governasse” e que tivesse “autoridade”: “Não podemos admitir factos como aqueles que se passaram nos últimos dias, em que um conjunto de energúmenos — ou de cidadãos, saberemos depois se eles são energúmenos ou efetivamente cidadãos, mas se fossem cidadãos tinham outras maneiras de protestar — impediram ministros e secretários de Estado de entrar dentro de ministérios”.

Soares estava a referir-se ao que acontecera com o tenente-coronel Ferreira da Cunha, subsecretário de Estado da Comunicação Social. No dia do debate, contou o Diário de Notícias, um grupo de manifestantes tentou impedir Ferreira da Cunha de entrar no ministério. Houve tiros, bastonadas e gás lacrimogéneo. Das janelas, foram lançados lenços para que os militares “solidários” com os manifestantes pudessem tapar a cara e evitar ser reconhecidos; outros “oficiais progressistas” decidiram “tirar os galões para não serem identificados”. Foram ainda distribuídos limões e leite por causa do gás lacrimogéneo.

Também naquele dia, lembram Adelino Gomes e José Pedro Castanheira no livro Os Dias Loucos do PREC, a GNR e a PSP entraram noutro ministério, o do Trabalho, com metralhadoras G-3 para expulsarem 50 sindicalistas do edifício.

"Estou farto de brincadeiras. Brincadeiras, hãã... Estou... Fui sequestrado já duas vezes... Já chega, não gosto de ser sequestrado, é uma coisa que me chateia, pá..."
Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro do VI Governo provisório

Vendo o Governo em risco, o primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo convocou uma manifestação para o Terreiro do Paço a 9 de novembro. Apareceu com Mário Soares e Sá Carneiro ao seu lado — mas sem Cunhal. Discursou com eficácia retórica: “Custe o que custar, as armas têm de regressar aos quartéis, os julgamentos aos tribunais, os trabalhadores ao trabalho, a calma às ruas, o civismo aos cidadãos, Portugal à tranquilidade”. Nesse momento, com a presença da Polícia Militar, ligada à extrema-esquerda, ouviram-se rajadas de tiros e rebentamentos de petardos. Também foram lançadas granadas de gás lacrimogéneo e de fumo. Pinheiro de Azevedo disse então a frase que se colou ao seu currículo: “Não há perigo, o povo é sereno. É apenas fumaça”.

Estava triplamente enganado: havia perigo, o povo não estava sereno e era bem mais do que só fumaça. O país arriscava-se a ultrapassar a fronteira que separa a mera oposição política do golpe declarado. Pouco antes, a 29 de setembro, os deficientes das Forças Armadas tinham cercado o Governo em São Bento. A 12 de novembro, novo cerco ao palácio de São Bento, mantendo desta vez sequestrados durante várias horas os deputados à Assembleia Constituinte e vários membros do Governo, incluindo o próprio primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo.

Para aquele que ficou conhecido como “o almirante sem medo”, já era demasiado. Depois de uma reunião com o Presidente da República, a RTP apanhou Pinheiro de Azevedo à saída de Belém: “Estou farto de brincadeiras. Brincadeiras, hãã… Estou… Fui sequestrado já duas vezes… Já chega, não gosto de ser sequestrado, é uma coisa que me chateia, pá…”

[Veja aqui as imagens de Pinheiro de Azevedo a falar sobre os sequestros]

Quando, no debate da RTP, Soares confrontou Cunhal com este permanente ataque do PCP às instituições, e quando lembrou que os comunistas tentaram evitar as eleições que em abril tinham escolhido a Assembleia Constituinte, o líder comunista usou pela segunda vez na mesma noite a frase que ficaria famosa: “Olhe que não, olhe que não”.

A liberdade de informação

“Lavagem ao cérebro de dia e de noite”

O debate foi na RTP, mas isso não impediu Mário Soares de denunciar a forma como o PCP tentara controlar a estação e ainda as rádios públicas. Foi duro: “E aqueles que ouvem e veem esta rádio e esta televisão, que agora está ligeiramente — muito ligeiramente — melhor, mas que durante um longo período nem um fado se ouvia no Rádio Clube Português, nem uma música nacional — nada. Eram canções revolucionárias, era uma verdadeira lavagem ao cérebro de dia e de noite.”

O VI Governo provisório vivia preocupado com a influência das forças revolucionárias na RTP. Poucos dias antes do frente a frente, a 17 de Outubro de 1975, o Conselho de Ministros passou vários minutos a discutir inúmeras queixas contra a estação. Na ata da reunião lê-se que o primeiro-ministro, Pinheiro de Azevedo, “quis saber se o ministro da Comunicação Social poderia tomar qualquer atitude relativamente ao Director de Programas da televisão responsável pelas filmagens que haviam sido feitas quando da sua comunicação ao país” — que, manifestamente, não lhe tinham agradado. Já o ministro das Finanças alertou que “na posse dos corpos dirigentes do Banco de Portugal a televisão não havia aparecido quando é certo que dá grande cobertura a acontecimentos de menor monta”. Havia mais denúncias: “O Ministro dos Transportes e Comunicações aproveitou a ocasião para comentar que, quando da sua já falada ida à televisão, não havia sido recebido por absolutamente ninguém e que havia sentido um ambiente de notória indiferença por parte dos dirigentes da referida televisão”. Pinheiro de Azevedo não conseguia compreender o que se estava a passar e “manifestou a sua surpresa perante o facto de que já se encontram quatro representantes do Governo à frente da televisão”. Claramente, não estavam a conseguir fazer o seu trabalho.

"Quem tem que decidir da sorte de Angola, em última instância, é o povo angolano. E não somos nós que nos devemos sobrepor à sua vontade e estar a dizer qual é o movimento bom e quais são os outros movimentos que não são bons."
Mário Soares

É fácil de perceber as razões para tanta preocupação — quem controlasse a RTP, a única estação de televisão na época, controlaria uma grossa fatia da informação. Por isso, o canal público estava em permanente convulsão. Já em Maio, a empresa tinha mergulhado num escândalo com a descoberta de um documento onde era feito o retrato de vários funcionários da RTP, com insinuações, acusações e calúnias, que iam das convicções políticas aos gostos sexuais. O jornal República, que deu a notícia, assegurou que aquela era uma lista dos trabalhadores a sanear no futuro.

Um militante do PCP que trabalhava na estação assumiu-se como único autor do texto, mas, segundo o Expresso de 31 de maio de 1975, disse “ser falso que ele se destinasse a ser difundido, uma vez que não passava de um mero apontamento pessoal que lhe teria sido ‘sonegado’ abusivamente”. Mais: a célula do PCP na RTP emitiu uma nota a repudiar “em absoluto a autoria de tal documento”.

O Partido Comunista queria afastar-se da polémica porque, claramente, aquele papel queimava. O Expresso publicou vários excertos a 7 de junho, omitindo os nomes referidos “para proteger a identidade dos visados”. Só alguns exemplos: um funcionário da RTP era descrito como sendo uma “personagem sinistra, fascista”, “competente, mas a afastar imediatamente”; outra como “burguesa, fascista”, “a sanear imediatamente”; outro como “frustrado homossexual, eventualmente não activo”, “blasé, burguês, incompetente, completamente desligado do processo em curso”; outro como “incompetente, ‘nazi'” e “grande admirador de ambientes tauromáquicos”; outra ainda como “racista, burguesa, de costumes mais do que duvidosos”; um outro como “beato” e “fascizante”.

O Expresso citava ainda uma passagem reveladora: “Esta é uma primeira lista provisória, à qual se poderá seguir uma outra. As provas e os factos, lamentavelmente, não abundam em muitos casos, mas é opinião generalizada entre os trabalhadores progressistas que muitos destes nomes não podem continuar na RTP”.

Nos jornais também havia uma luta corpo a corpo pelo controlo da informação. Quando, no debate, Soares lembrou a situação no República, que fora tomado à força pela extrema-esquerda, provocando furiosas reações internacionais, Álvaro Cunhal atirou-lhe: “Embrulharam-se no caso República? Desembrulhem-se…”

A independência de Angola

“É nos momentos difíceis que os amigos se conhecem”

Naquele 6 de novembro de 1975 não era apenas a revolução portuguesa que estava em causa — era também a revolução em Angola. A data decisiva seria dali a cinco dias: a 11 de novembro, a colónia tornar-se-ia independente. A quem deveria ser entregue o poder? Ao MPLA? À FNLA? À UNITA? Aos três?

Para Álvaro Cunhal, a questão nem sequer se colocava: “O MPLA é o legítimo representante do povo de Angola”, disse no debate na RTP. Mário Soares tentou conter o inevitável, mas sem grande sucesso:

Mário Soares — Quem tem que decidir da sorte de Angola, em última instância, é o povo angolano. E não somos nós que nos devemos sobrepor à sua vontade e estar a dizer qual é o movimento bom e quais são os outros movimentos que não são bons.
Álvaro Cunhal — O povo de Angola saberá reconhecer quem são os seus amigos e quem são os que não são seus amigos…
Mário Soares — Naturalmente…
Álvaro Cunhal — … E é nos momentos difíceis que os amigos se conhecem.
Mário Soares — Naturalmente…

O VI Governo provisório hesitou até ao último minuto sobre o que fazer em Angola. Mas, no primeiro dia da independência, quem controlava Luanda era o MPLA. Lá, Cunhal tinha vencido.

Mário Soares fala aos jornalistas na cimeira do Alvor, onde se discutiu a independência de Angola

Arquivo DN/Global Imagens

A economia e a reforma agrária

“Não somos a favor do socialismo da miséria”

Depois do golpe falhado de 11 de Março, o regime tinha-se radicalizado, com expropriações e nacionalizações. Mas Álvaro Cunhal entendia que ainda era preciso fazer mais — e mais depressa. Mário Soares usou o debate na RTP para travar a fundo. “A verdade é esta: nós sabemos que 65% da indústria portuguesa está hoje nacionalizada. Sabemos isso. Os grandes exploradores, esses desapareceram já — desapareceram. Simplesmente, o que é que se quer agora fazer? Quer-se fazer como se fez nos países do Leste europeu: destruir toda a pequena e média empresa, destruí-la a pouco e pouco, criar-lhe tais condições, através de aumentos de salários, que ela vai rebentar. E depois, naturalmente, temos o o Estado-patrão. Nós somos contra esse tipo de capitalismo de Estado. Porque nós somos a favor do socialismo autêntico, mas não do socialismo da miséria”.

Cunhal não se comoveu: “Se é para pôr os patrões outra vez à frente das empresas, nós dizemos não; se é para retirar os trabalhadores das direções das empresas, nós dizemos não; se é para restituir as terras aos agrários, nós dizemos não.”

O regresso dos “agrários” era uma obsessão para Cunhal. Noutro momento do debate, acusou o PS de se ter aliado a eles: “Nós vemos os agrários, no Alentejo, os senhores das terras, a manifestarem-se com os socialistas juntos. Onde aparecem agrários, aparecem socialistas; onde aparecem socialistas, aparecem agrários.”

"Já é tempo de descobrir, desarticular as organizações contra-revolucionárias e de, em relação a esses contrarevolucionários, não lhes dar tanta liberdade como têm tido."
Álvaro Cunhal

Isso, para o líder do PCP, podia pôr em risco a reforma agrária e aquilo que Cunhal via como uma grande conquista da revolução, com consequências que iam além da economia: “Quem visita essas cooperativas vê, até na linguagem, a transformação que já houve. Hoje o camponês não diz, enfim, ‘a seara do patrão’, não diz ‘a vaca do patrão’, não diz ‘a vaca dele’, diz ‘as nossas vacas’, ‘as nossas searas’, ‘o nosso rendimento’, ‘a nossa produtividade’…”

Mário Soares estava mais preocupado com outro ponto. Usando uma pergunta retórica, dirigiu-se a Cunhal: “Sabe o sr. dr. que no distrito de Portalegre a maior parte das sementeiras não foi feita, neste momento, e que podemos encaminhar este país, dentro de alguns meses, para uma situação de fome efetiva, de que vão ser vítimas os próprios trabalhadores rurais?”

O fim. E o começo

“Metê-los na prisão…”

No final do debate, a violência da revolução entrou dentro dos estúdios da RTP na forma de uma notícia acabada de chegar. O jornalista José Carlos Megre anunciou, com ar solene: “Puseram-me aqui um telex de última hora. (…) Infelizmente é mais um acontecimento a juntar-se a todos os golpes reacionários que tem havido nos últimos tempos”. E leu: “Pelas 23h55 rebentou junto da sede central do PS, na Rua da Emenda, um petardo com grande estrondo mas que não provocou quaisquer estragos”.

Ao fim de pouco tempo saber-se-ia, por testemunhas oculares, que o engenho foi lançado de um carro que passou a grande velocidade. Os únicos efeitos relevantes, segundo os jornais, sentiram-se num “pequeno Fiat”, que foi parar em cima do passeio “pela forte deslocação de ar”.

As reações à notícia do rebentamento do petardo tornaram mais uma vez evidentes as diferenças entre Soares e Cunhal. O líder do PS era responsável pelo partido atingido, mas foi também o mais contido. Acima de tudo, disse na RTP, era preciso preservar o Estado de direito: Soares pediu que se averiguasse quais “as forças” responsáveis pelo incidente, mas que isso fosse feito pelas “autoridades policiais e militares”.

Cunhal, que falou a seguir, foi de uma dureza extrema: “Já é tempo de descobrir, desarticular as organizações contra-revolucionárias e de, em relação a esses contrarevolucionários, não lhes dar tanta liberdade como têm tido: os responsáveis por esses atos, metê-los na prisão…”

O distanciamento entre Soares e Cunhal manteve-se quando as câmaras se desligaram. No fim do debate, contou o semanário O Jornal, os dois evitaram-se “de forma discreta” e despediram-se um do outro “logo após terem sido limpos pelo caracterizador”. Desceram a rampa da RTP e cruzaram-se com algumas dezenas de pessoas que, segundo os jornais, pretendiam “ver passar os homens”.

O debate acabou, mas as movimentações militares não. Como recordam José Pedro Castanheira e Adelino Gomes no livro Os Dias Loucos do PREC, naquela mesma madrugada, às 4h40, um grupo de 60 páraquedistas destruiu à bomba os emissores de onda média da Rádio Renascença, que estava ocupada pela extrema-esquerda. Nos dias seguintes, a tensão entre as diferentes fações ia aumentar a grande velocidade. A 25 de novembro, as forças de extrema-esquerda tentaram um golpe e foram vencidas pelos militares do Grupo dos Nove, muito próximo de Mário Soares.

O processo revolucionário terminaria simbolicamente na mesma RTP onde Soares e Cunhal se defrontaram durante 3 horas 40 minutos e 52 segundos. Quando ainda existiam movimentações nas ruas, o capitão Duran Clemente foi à estação tentar travar os acontecimentos com um apelo.

[Veja aqui a intervenção de Duran Clemente na RTP a 25 de novembro]

Com cabelos longos e barba desalinhada, discursou: “Para bem do povo português, para que efetivamente o processo revolucionário prossiga, há necessidade que as coisas se clarifiquem e que aqueles, sobretudo os oficiais, tomem consciência de que…” Hesitou. “Tomem consciência de que…” Suspirou. “De que, se não são capazes, se atingiram essa incapacidade, têm que se afastar dele”. Olhou para o lado. “E não podemos mais permitir que seja nos gabinetes, que seja pela via administrativa…” E de repente: “Estão-me a fazer sinais, eu não sei se posso continuar. Talvez seja melhor explicar aos ouvintes que… não posso continuar a falar por razões técnicas, é isso?” E insistiu, olhando para o lado: “Não posso? Não posso continuar a falar por razões técnicas, ou então continuo daqui a pouco, não poderá ser?”

Não poderia ser. O sinal estava a ser interrompido pelos militares do Grupo dos Nove. O controlo da emissão foi passado para os estúdios do Porto e, subitamente, entrou no ar um filme cómico de Danny Kaye. E assim, 19 dias depois do debate na RTP, era derrotada a revolução. Para Álvaro Cunhal, era o fim. Para Mário Soares, era o começo.

[Veja aqui o debate completo entre Mário Soares e Álvaro Cunhal]

https://www.youtube.com/watch?v=UDZSuHuDXCA

Fontes:
José Gomes Mota, “A Resistência – subsídios para o estudo da crise político-militar do Verão de 1975”, 2.ª edição, Lisboa, Edições Jornal Expresso, 1976.
Jorge Miranda, “Da Revolução à Constituição – Memórias da Assembleia Constituinte”, Cascais, Princípia Editora, 2015.
Adelino Gomes e José Pedro Castanheira, “Os Dias Loucos do PREC”, ed. Expresso e Público, 2006.
Jornal de Notícias, Diário de Notícias e A Capital de 7 de novembro de 1975.
Expresso de 7 de junho de 1975.
“A mentira do primeiro debate”, de Pedro Jorge Castro, revista Sábado.

Entrevista a Joaquim Letria para um projecto de investigação.
Presidência do Conselho de Ministros, Arquivo Central, “VI Governo Provisório”, “Gabinete do Primeiro-Ministro Pinheiro de Azevedo”, processo 42, 06-10-1975/14-11-1976, súmulas do Conselho de Ministros (6 a 30 de Outubro), C. 5, 206 fls., súmula da reunião de 17 de Outubro de 1975.

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