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As aldeias submersas que a seca fez emergir e os turistas que elas atraem

A seca em Portugal pode causar danos no turismo. Mas também deixou à descoberta aldeias fantasma, antes submersas por águas de barragens, que atraem dezenas de turistas. Veja as fotos e os vídeos.

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Na Foz de Alge, onde a ribeira de Alge e o Rio Zêzere se cruzam, Figueiró dos Vinhos tem um clube náutico que atrai turistas. Mas este ano, as plataformas e os barcos que nelas ficam presos estão assentes em terra seca, já quase se consegue atravessar a pé de uma margem para a outra e não há um único barco na água. Quase ninguém por lá aparece e o verão pode ser bem pior: não se esperam as habituais filas para os concursos de pesca do S. João, nem banhistas ou piqueniques, e o único restaurante corre o risco de fechar.

Bem mais acima no Zêzere, contudo, um outro local ganhou turistas com a seca deste inverno. A antiga aldeia do Vilar, em Pampilhosa da Serra, emergiu com a falta de água e pode ser agora vista ao longe e visitada de perto. Submersa em 1954, as casas de xisto tornaram-se uma atração e não faltam pessoas para a ver. Acontece o mesmo em Aceredo, na Galiza, mesmo junto à fronteira com Portugal, onde todos os dias centenas de espanhóis e portugueses se juntam entre as ruínas para visitar a velha aldeia agora completamente a descoberto, nas margens da barragem do Alto do Lindoso, no rio Minho, onde parece que a vida parou há 30 anos e uma fonte ainda jorra água.

São opostos de uma mesma realidade que se vive no nosso país. A seca extrema em Portugal mudou drasticamente o cenário junto a várias margens de rios e barragens do país. Onde se conseguia ver água até ao limite máximo, agora apenas correm pequenos riachos com tudo à volta seco. E sem previsão de que mude nos próximos meses, uma vez que não está prevista precipitação. Zonas turísticas podem ficar sem gente. Mas outras tornaram-se um novo tipo de atração: à medida que as barragens foram descendo, emergiram velhas ruínas de aldeias submersas, locais fantasma que muitos começaram a visitar.

O Governo, com o objetivo da salvaguarda dos volumes necessários para o abastecimento público, definiu cotas/volumes de água a partir da qual outros usos podem ficar condicionados, quer seja a produção de energia ou a rega. Com essa decisão, ficou interdita a produção de hidroeletricidade nas barragens de Alto Lindoso, Alto Rabagão, Vilar, Cabril e Castelo de Bode, até essas cotas forem atingidas. E cessou também a utilização de água para rega na albufeira de Bravura.

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A falta de chuva e as temperaturas muito mais elevadas do que o normal para esta altura do ano fizeram com que as atenções se virassem para estas barragens e rios praticamente secos. Muitas foram as fotografias partilhadas nas redes sociais e as reportagens feitas a denunciar o problema da seca em Portugal. Pelos problema diretos, mas também pelo impacto no turismo nalgumas regiões. Mas foi a seca que trouxe à superfície aldeias que estavam submersas há anos, visitadas agora por dezenas de turistas atraídos pela beleza das ruínas, pelas memórias ou para tentarem saber como se vivia naqueles sítios antes dos níveis das águas subirem e as aldeias desaparecerem.

Em Figueiró dos Vinhos a falta de água afastou pescadores e turistas. Em Aceredo a seca levou centenas de pessoas a visitar a antiga aldeia agora toda fora de água

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Aceredo. A “Atlântida da Galiza”

Aceredo era uma pequena antiga aldeia na Galiza, a poucos quilómetros da fronteira com Portugal. A 8 de janeiro de 1992, todas as suas casas e campos agrícolas foram submersos, quando a EDP construiu a barragem do Alto do Lindoso, no Rio Lima.

A aldeia, entre Ponte da Barca e Ourense, já em Espanha, é hoje um grande ponto turístico, juntando todos os dias portugueses e espanhóis às centenas para ver as antigas casas que estão agora totalmente a descoberto pelas águas da barragem, que baixaram drasticamente.

Bruna Pereira e César Ferreira, um jovem casal de 26 e 27 anos, foram de Braga de propósito para ver a aldeia antes submersa. “Descobrimos nas redes sociais este sítio, temos muito interesse neste tipo de coisas do passado e viemos cá”, contam. Encontrámo-los junto a um antigo carro, parcialmente destruído e cheio de ferrugem que ali foi deixado pelos últimos habitantes de Aceredo, quando já andavam por ali a passear há cerca de uma hora. Desabafam logo de início: “Isto é um pouco ambíguo, é uma coisa bastante bonita de se ver, mas a razão não é das melhores”.

Os visitantes destas ruínas estacionam o carro na berma da estrada nacional, andam uns valentes metros num caminho de terra batida até chegar a um miradouro. É aí que se tem o primeiro impacto da real falta de água naquela zona. Do miradouro vê-se toda a aldeia agora completamente em zona seca, as casas e o que foram os antigos campos agrícolas, e vêem-se também as dezenas de pessoas que por lá andam, a entrar e a sair das ruínas.

Muitas casas, feitas na altura de pedra, estão parcialmente destruídas, mas as maiores e mais recentes, já de tijolo e cimento, mantêm-se praticamente intactas, apesar dos 30 anos debaixo de água.

Essas casas, caiadas de branco e com vidros nas janelas, passariam muito bem como atualmente habitadas. Quem o diz é Aurélio Gonçalves, de 62 anos, e Maria Gonçalves, de 56 anos, um casal que também aproveitou o bom tempo e a falta de chuva para visitar esta grande aldeia deserta. “Mesmo depois de tantos anos debaixo de água, vêem-se as vidas duras destas pessoas, é impressionante”, contam ao Observador.

Vindos de Vieira do Minho, descobriram a aldeia através das notícias e quiseram vir ver com os próprios olhos: “É de facto muito interessante”, diz Maria. “A primeira coisa que senti assim que cheguei cá foi uma enorme tristeza por quem deixou isto aqui, tudo isto foi construído com o suor deles e depois ver a água a entrar pela casa dentro, contra a vontade…”, interrompe Aurélio.

A antiga aldeia de Aceredo foi submersa em 1992

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

E continua: “Para mim tornou-se bonito esta paisagem mas para eles, que muitos deles ainda são vivos, vêm cá visitar e têm aquela mágoa dentro deles, como poderia acontecer connosco”. O cenário faz lembrar um de um filme de guerra, onde todas as casas ficam praticamente destruídas. Mariana começa a pormenorizar: “Há ali uma grande casa, que em tempos foi capaz de ter sido uma mercearia, havia lá um esqueleto de um carro de mão, há muitos pormenores que nos levam para a vida da época”.

A entrada na aldeia é fácil e faz-se sem grandes dificuldades: é preciso descer por entre algumas pedras do que já foram algumas casas. Mesmo no que parece ser o centro da aldeia há uma fonte que até hoje ainda jorra água. Esse é um dos pormenores que os visitantes mais estranham e admiram.

Há, no entanto, muitas outras coisas que nos levam para o que foi a vida naquela aldeia: há casas com azulejos intactos, fogões, garrafas de vinho e de cerveja, lâmpadas penduradas nos tetos, interruptores de luz e tomadas elétricas. Ao entrar em todas aquelas casas que estiveram durante 30 anos debaixo de água dá a sensação que as pessoas fugiram à pressa e deixaram várias coisas para trás: muita roupa e muito calçado está espalhado pelo chão.

Na aldeia de Aceredo existia uma fonte de água que ainda hoje existe... e funciona
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Pormenor de um antigo corrimão de uma das casas
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
A aldeia, na zona da Galiza, está a poucos quilómetros de Portugal
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Foi deixado para trás um carro
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Os níveis da água têm baixado quase diariamente
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Também um antigo fogão e uma mesa de cozinha foram deixados para trás
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Muitos são os objetos que a antiga população deixou para trás
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Pela linha que separa o verde e o castanho percebe-se onde a água em tempos chegou
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Outro dos objetos que a antiga população deixou para trás
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Muitos são os turistas que aproveitam para visitar as ruínas
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Caixa de garrafas de cerveja espanhola praticamente intactas
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Uma antiga mercearia pode agora ser visitada
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Muitos são os turistas que aproveitam para visitar as ruínas
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Mais objetos deixados intactos
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Portugueses e espanhóis visitam a antiga aldeia de Aceredo
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Peças de roupa e calçado foram deixados para trás pelos antigos habitantes da aldeia
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Os cenários são idênticos: de um ponto alto impressiona, ao perto assusta

A chapa verde com grandes letras brancas, que servia de porta de entrada aos inúmeros pescadores desportivos e banhistas, que dá acesso às plataformas flutuantes, não nos deixa enganar sobre o sítio onde estamos: Clube Náutico de Figueiró dos Vinhos. Só que aquelas plataformas, e os barcos que nelas ficam presos, estão agora assentes em terra bem seca.

Ali na Foz de Alge, local onde a ribeira de Alge e o Rio Zêzere se cruzam, já quase se consegue atravessar a pé para o outro lado e não há um único barco na água. Os barcos continuam amarrados às cordas, presos ao cais ou nas rochas das margens do rio, sempre em seco. Ao fundo vai-se apenas ouvindo o barulho de uma pequena linha de água a correr entre a lama.

Ao longe as pequenas fissuras na lama seca fazem lembrar imagens vindas da NASA tiradas da superfície da Lua. Ao perto, e com os pés assentes nessas fissuras, pisamos bivalves mortos e secos, na sua maioria amêijoas. Em pleno agosto de 2017, a água era tanta que numa visita àquele local o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ficou com água pelos tornozelos quando visitava os barcos presos no cais. Hoje, mesmo que quisesse, nem com a sola dos sapatos ficaria molhada.

Na Foz de Alge, onde a ribeira de Alge e o Rio Zêzere se cruzam, Figueiró dos Vinhos tem um clube náutico que atrai turistas

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Os barcos parecem ao abandono, mas todos têm dono e todos serviam para pescar ou para pequenos passeios pelo Zêzere. Hoje não servem para mais nada a não ser para o desconsolo de quem ali vive ou gostava de passear. Para José Gomes Silva, de 72 anos, pescador e agricultor, “é um bocado triste não haver água…”, desabafa, enquanto vai olhando para o seu barco encalhado nas margens secas do rio. José nem consegue ir até ao seu barco, a ravina é demasiado íngreme, o que torna a missão impossível. Gostava de voltar a pescar, mas nem ao barco consegue chegar.

“Cheguei a pescar aqui um [peixe], um lúcio de 5.5 quilos, isto estava quase cheio, e agora os barcos estão aqui em baixo”, conta no sítio onde, com a água a níveis normais, prendia o barco às pedras com uma corda. “Eu pesco quando há água, este ano não há aqui peixe, o peixe desceu todo”, continua.

Para mostrar o quanto o nível da água desceu aponta para a margem oposta à que estamos: “Ali consegue-se ver o que a água desceu, é raro o dia em que ele [o rio] não desce, é muito raro. Por exemplo: ontem o meu barco estava um bocadinho a seco, hoje está muito mais, quase o dobro, percebe-se bem. Eles falaram que isto não baixava mais, mas a noite passada já baixou”.

“Cheguei a pescar aqui um [peixe] Lúcio de 5.5 quilos, estava isto quase cheio e agora os barcos estão aqui em baixo”, conta José

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

José visita o sítio onde está o seu barco logo após o almoço. Durante a manhã esteve nos seus terrenos a lavrar a terra e a apanhar algumas batatas e garante: “A terra onde lavrei hoje está tão seca como aquela que já esteve completamente debaixo de água”, apontando para o seu barco.

É um pequeno barco de madeira, a remos e pouco robusto, que custou a José, há três anos, 800 euros. Desde então que todos os anos tira a licença para conseguir pescar e manobrar a pequena embarcação. Este ano garante que dificilmente irá tirar essa licença porque duvida que venha a compensar o investimento, dado o estado do rio em fevereiro: “Não há praticamente água nenhuma, quanto mais peixe”.

Num exercício de memória para se lembrar da última vez que pescou e a última vez que ali choveu, as respostas são idênticas: à primeira responde que foi o ano passado e à segunda não arrisca mandar para o ar um mês, não se lembra de todo.

No mesmo exercício de “más lembranças” está João Lopes, que mesmo assim arrisca uma data: “Outubro foi a última vez que choveu… sendo que estamos em fevereiro…”.

Com 69 anos e morador em Calaços, João Lopes conhece aquele cais desde que nasceu. Recorda-se que ali chegou a tomar vários banhos enquanto criança e adolescente. Tal como José, também pescava ali com o seu irmão e há cerca de um mês que não ia àquela zona.

Com 69 anos e morador em Calaços, João Lopes conhece aquele cais desde que nasceu

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Enquanto falava com o Observador caminhava lentamente em cima das plataformas flutuantes que agora estão estão fixas à terra seca do Zêzere: “Isto parece um deserto, cheio de água tem outra vida. No verão vem para aqui muito turista, este ano vem para onde? Não há água”. Se a situação se mantiver assim, não vêm, acredita.

João lembra-se de há 20 anos ter acontecido algo semelhante, até se conseguia atravessar para a outra margem do rio a pé. A diferença é que nessa altura a seca fez-se sentir em pleno mês de agosto, agora o cenário acontece em meses de inverno e de muita chuva, janeiro e fevereiro.

Os torneios de pesca desportiva, que ali levam centenas de pessoas, acontecem por altura do São João, em junho, uma das alturas em que há fila de carros para se conseguir chegar perto do cais. Mas todos os que ali moram perto garantem que era raro o dia do verão, principalmente ao fim de semana, que não aparecessem dezenas de pessoas para fazerem piqueniques ou simplesmente estarem junto ao rio. Vinham de todo o país mas principalmente de Lisboa, Coimbra, Leiria e Nazaré.

João é irmão do proprietário do único restaurante junto ao cais, que vive essencialmente do turismo, turismo esse que agora não existe. “Se calhar o restaurante do meu irmão este ano fecha”, desabafa.

Para José Gomes Silva, de 72 anos, pescador e agricultor, este cenário “é bocado triste não haver água…”

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Vilar. A aldeia portuguesa que foi submersa em 1954 e agora está à vista de todos

Devido à falta de chuva, as ruínas da antiga aldeia do Vilar, na Pampilhosa da Serra, submersa a 12 de fevereiro de 1954, quando as comportas da Barragem do Cabril se fecharam, também emergiram. Podem ser agora vistas ao longe e visitadas bem de perto.

As casas construídas em xisto tornaram-se também uma atração turística. Não há nenhuma casa inteira por completo, mas há ainda bastantes com as quatro paredes em pé. Consegue-se perceber os caminhos entre essas casas e as escadas que lhes davam acesso. Mantém-se também intacto um poço que servia de abastecimento a toda a aldeia, que na altura era rica em cereais e na produção de azeite.

Praticamente toda a aldeia está à vista, apenas os dois lagares de azeite estão debaixo de água, e é possível visitá-la a pé, caminhando por entre os antigos terrenos agrícolas. Ver-se algumas ruínas não é algo inédito, já noutros anos, quando o caudal do rio Zêzere está baixo, se consegue ver a parte de cima das casas mais altas, mas é a primeira vez que quase toda a aldeia ficou em terreno seco.

Quem lá viveu durante a infância recorda os momentos em que se começou a falar em ter de sair “porque a água vem aí”. É o caso de Manuel Barata, de 77 anos, e de Isaura Farinha, de 87. Manuel saiu da aldeia do Vilar com os seus pais aos 10 anos e Isaura aos 18.

Manuel, antigo combatente em Moçambique, recorda que aquela povoação “até vivia bastante bem ”. “Lá na aldeia tínhamos muito azeite, muito pinhal, mel, cereais e milho”, conta.

Sentado na cozinha de sua casa, a escassos metros da aldeia onde nasceu, Manuel descreve que naquela aldeia havia cerca de uma centena de habitantes e que era rara a pessoa que não tinha gado. “Havia muito gado, muitas cabras e, claro, havia os ‘Mercedes’ daquele tempo, os bois, para puxar os carros, fazer o transporte de qualquer coisa”.

Isaura Farinha era a mais velha de nove irmãos e viveu na aldeia até ser maior de idade. Quando se fala na aldeia do Vilar o brilho nos olhos é inevitável e o olhar foge-lhe para uma fotografia a preto e branco que tem num canto da sala, perto da lareira acesa. Foi tirada junto à casa onde nasceu e cresceu na aldeia, ela e os irmãos. “Aqui era a minha mãe, aqui a minha irmã, o meu irmão e eu, eu estava aqui, era a mais velha”, descreve a foto. Falta apenas um dos irmãos, que estaria em Lisboa.

A aldeia do Vilar foi submersa a 12 de fevereiro de 1954

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A fotografia do tamanho de uma folha A3 foi tirada por um primo que quis juntar a família para a retratar pouco antes de terem de abandonar a aldeia. Isaura não esquece também as suas amigas: “Éramos umas 15 raparigas e aos domingos íamos todas juntas à missa”. Foi com essas amigas que aprendeu a costurar e foi da costura que viveu toda a sua vida.

Manuel e Isaura recordam juntos as festas da aldeia: “Às vezes havia lá umas festas, uns bailes, quase todos os domingos, eram feitos nas salas das casas particulares”. Isaura entusiasma-se a falar em frente à lareira e ao lado do marido que lhe vai avivando a memória sobre muitas outras coisas: “Lembro-me uma vez, no dia de Carnaval, houve um nevão tão grande tão grande, que quando saímos do baile estava tudo branquinho, não sabíamos por onde havíamos de caminhar”. Todos dão uma gargalhada.

Apesar das casas agora estarem praticamente irreconhecíveis, Isaura já foi visitar a antiga aldeia para tentar descobrir onde ficava a sua casa e a de uma amiga com quem cresceu: “Já lá fui, fui no domingo, fomos juntas. Uma amiga nossa que também viveu lá queria ir ver onde é que era a casa dos pais. E ainda soubemos dizer onde é que era a casa dela e a minha também”.

O poço salta logo à vista. Um círculo perfeito no meio da destruição. De quem era? Qual era o propósito? Manuel explica: “Os donos daquele poço não queriam sair. A água começou a subir, toda a gente fugiu e ele deixou-se lá ficar. A água já estava no primeiro andar, estava todo cercado e tinha um barco à espera, mas ele não saía… e ficou lá”. ‘Ele’ é José Antunes, o último habitante a sair da aldeia. “Se hoje fosse vivo, o homem já tinha uns 150 anos”, ri-se.

Fotografia de família de Isaura em frente à sua antiga casa na aldeia do Vilar

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A resiliência de José valeu-lhe a compensação mais elevada de entre os habitantes. Recusou-se a sair com o dinheiro que lhe foi oferecido e só depois de lhe prometerem o que ele achava justo é que abandonou a casa que já tinha água no primeiro andar. Saiu já de barco, era impossível ir a pé. Manuel conta ao Observador que a ele e à sua família foi-lhe dado 110 contos (cerca de 548 euros) em 1953. “Os meus pais e tios, morávamos uns aos pé dos outros, e ouvia-os a comentar ‘e será que seja verdade a água vir?’. Até que chegou o dia e que foi verdade”, conta.

A seca provocou a Manuel e Isaura um sentimento comum. Custa-lhes olhar agora para a aldeia toda destruída e traz-lhes as mesmas recordações: “Faz-me lembrar das pessoas que moravam naquelas casitas todas. Não gosto mesmo de ver”, desabafa Manuel. Isaura conta que agora mal se conhece a aldeia porque está tudo destruído. “É um choque”, diz.

Ambos preferiam não estar a ver a aldeia onde nasceram, preferiam que o rio estivesse completamente cheio. Não lhes apagava a memória, mas não lhes fazia lembrar de outros tempos que foram bons. Manuel tenta evitar chegar perto e a Isaura resta-lhes olhar para aquela foto de toda a família junto à parede da antiga casa: “Temos aqui para a recordação”.

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