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"As crianças estão a viver como pequenos executivos stressados"

Estímulos que destroem a curiosidade das crianças e ritmos infantis desrespeitados. Catherine L'Ecuyer, autora do livro "Educar na Curiosidade", explica porque é urgente simplificar a infância.

Uma televisão ligada que hipnotiza os mais pequenos ou um smartphone por perto, prestes a ser devorado pelas mãos de uma criança — talvez a sua sala de estar, aí em casa, seja assim. As ferramentas tecnológicas do dia-a-dia parecem, à partida, uma solução fácil para entreter a pequenada, mas as consequências desse uso são bem reais. É que demasiados estímulos interferem com a capacidade da criança em descobrir o mundo, uma vez que a curiosidade natural é uma das suas ferramentas mais poderosas.

“Quando damos muitos estímulos às crianças não temos em conta o desejo delas em aprender, em conhecer. Assim ‘cancelamos’ a curiosidade dos mais pequenos, que fica adormecida”, diz ao Observador Catherine L’Ecuyer, que esteve em Portugal esta semana para apresentar o seu novo livro, “Educar na Curiosidade” (editora Planeta). Nele fala sobre como é importante recuperar e simplificar a infância, bem como ter em conta os ritmos de aprendizagem dos mais novos.

O discurso de Catherine, canadiana radicada em Barcelona, centra-se no facto de a tecnologia atual e os seus estímulos estarem na origem de crianças agitadas, que não se conseguem motivar e que estão cada vez mais impacientes. Crianças que já parecem “pequenos executivos stressados”. A autora que também é consultora e investigadora de temas educativos diz que é urgente reduzir o nível de stress e de consumo, e que andamos a dar demasiada importância ao conceito de competência digital.

Afinal, é preciso “simplificar as crianças e a paternidade” porque “não existem pais perfeitos, antes pessoas que gostam muito dos seus filhos, que têm um instinto e uma sensibilidade para perceber o que eles precisam”. O livro de L’Ecuyer quer devolver o poder e a responsabilidade aos pais e aos seus instintos, pelo que não é de estranhar que faça uma dura crítica ao que diz ser a “indústria dos conselhos empacotados”

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"Acho que a indústria dos conselhos empacotados fez muitos danos à educação porque cancelou o instinto maternal e paternal. Quem sabe o que fazer quando uma criança chora não é um autor que não conhece os nossos filhos, somos nós." 

No livro escreve que há crianças que precisam de ser motivadas, que estão habituadas a demasiados estímulos e, por isso, chegam a ficar apáticas. Esta é uma realidade recorrente? Estas crianças estão nas nossas casas e nas casas dos nossos amigos?
Acredito que isto é uma tendência. A criança nasce curiosa porque tem esse desejo para conhecer, pelo que não é preciso estimulá-la em demasia e de fora para dentro. O que existe na criança é uma capacidade normal para se maravilhar com uma quantidade mínima de estímulos. Quando damos muitos estímulos às crianças não temos em conta o desejo delas em aprender, em conhecer. Assim “cancelamos” a curiosidade dos mais pequenos, que fica adormecida. Essa criança, nesse momento, passa a depender de uma fonte externa de estímulos e deixa de querer conhecer [o mundo] por si própria. O passo seguinte é a adição, com as crianças a procurar sensações novas. Quando estas regressam ao mundo real, que é lento, ficam aborrecidas.

As novas gerações são as mais afetadas?
O ambiente mudou. Quando nós éramos crianças as coisas eram mais lentas. Agora, o ambiente é mais frenético, há mais stress, há mais consumismo e mais tecnologias. Além disso, os dois pais trabalham, têm menos tempo. O ambiente faz com que as crianças não tenham tempo para descobrir como dantes. Mas depende do ambiente. Há famílias que têm um ambiente com menos estímulos, mais tranquilo e que respeita o ritmo das crianças. Cada caso é um caso. O livro adverte para uma situação geral, mas cada família deve ver o que pode fazer para reduzir o ritmo e filtrar o stress. Muitas vezes os pais não filtram o stress, pelo que o stress chega às crianças que acabam por viver como pequenos executivos stressados.

Catherine L'Ecuyer com a edição portuguesa do seu livro.

Hoje em dia as crianças estão rodeadas de televisões, tablets e smartphones. Quais os riscos de uma criança que está demasiado exposta a estímulos externos?
A perda da curiosidade dificulta a aprendizagem. A curiosidade é o desejo de conhecer e quando uma criança perde esse desejo… a criança já viu tudo, já fez tudo, nada a surpreende, nada lhe desperta o interesse. Isso faz com que ela fique aborrecida quando descobre algo novo. Repito: perder a curiosidade dificulta a aprendizagem.

As crianças estão a crescer demasiado depressa ao serem expostas a coisas que não correspondem à idade delas?
Estão a crescer demasiado depressa, sim. Chamo-lhe a redução da infância. E qual é a consequência da redução da infância? Alarga-se a adolescência. A infância deve ser vivida no tempo certo e, caso isso não aconteça, as pessoas terão de a viver depois — é nesse sentido que digo que a infância é como a varicela. Caso contrário dá-se o infantilismo, que é a falta de maturidade mais tarde na vida. A infância é a idade dos jogos, da imaginação, uma idade em que se aprende muito. É muito importante vivê-la no momento certo.

Isso quer dizer que existem adultos que vivem como se ainda fossem adolescentes?
Cada vez mais as gerações se cruzam, as crianças comportam-se cada vez mais como pequenos adultos e os adultos… vemos cada vez mais pais que jogam videojogos. Temos de deixar que as crianças sejam crianças. Quando adiantamos etapas fazemos com que a criança faça e veja tudo antes do tempo. Então, muitas vezes a criança não está preparada para assimilar esse conteúdo ou essa informação. Isto não é bom para o seu desenvolvimento.

"Quando damos muitos estímulos às crianças não temos em conta o desejo delas em aprender, em conhecer. Assim “cancelamos” a curiosidade dos mais pequenos, que fica adormecida." 

No livro lê-se, através de uma citação, que a brincadeira é a mais velha cultura do mundo. O que acontece a uma criança que não brinca o suficiente?
A criança que não brinca é a criança passiva, que está à espera que o brinquedo aja. Mas não é o brinquedo que tem de agir, é a criança que tem de o fazer através do brinquedo. Os brinquedos com menos pilhas e botões são melhores. Mas há dois tipos de brinquedos. Há os que proporcionam o desenvolvimento da criança porque, através dele, a criança age. Estes brinquedos são aqueles em que a criança é protagonista, pelo que ela desenvolve as suas funções executivas: a planificação, a atenção e a memorização de trabalho; são bons porque respeitam aquilo que a criança precisa, que é brincar. Há outros brinquedos em que a criança está num mundo demasiado estimulado, em que ela procura sensações novas e ritmos cada vez mais acelerados porque vai perdendo a sua curiosidade, o seu desejo de conhecer. Aqui falamos de brinquedos que dão às crianças conteúdos mais rápidos, que não respeitam o ritmo interior dos mais novos.

Os pais têm noção do perigo dos videojogos e da cultura que lhes está associada?
Acho que tudo o que os pais fazem, fazem-no a pensar que isto ou aquilo é bom para os seus filhos. Acho muito importante que sejamos nós a tomar as decisões do que entra no nosso espaço porque não podemos abdicar do nosso papel como primeiro educador. Ou seja, somos nós a decidir que brinquedos devem ou não entrar em nossa casa. Para ter a informação do que convém e do que não convém fazer, é preciso saber o que dizem os estudos. É por isso que no livro utilizo muitas referências a estudos académicos de neuropediatria, porque penso que são dados relevantes que ajudam os pais a tomar decisões.

Os pais andam muito indecisos e inseguros?
Acho que existem muitos livros no mercado sobre conselhos — o que se deve fazer e o que não se deve fazer para que uma criança seja inteligente, para que coma, obedeça e durma. Acho que a indústria dos conselhos empacotados fez muitos danos à educação porque cancelou o instinto maternal e paternal. O que faz é romper com a sensibilidade que o pai tem, de saber o que o seu filho precisa a cada momento. Quem sabe o que fazer quando uma criança chora não é um autor que não conhece os nossos filhos, somos nós. Temos de nos conectar outra vez com essa sensibilidade e, para isso, temos de passar tempo com os nossos filhos. É importante sabermos o que dizem os estudos — um estudo não é a mesma coisa que conselhos.

"Muitas vezes os pais não filtram o stress, pelo que o stress chega às crianças que acabam por viver como pequenos executivos stressados."

Porque é que acha que os pais recorrem a esta indústria?
Acho que esta indústria começou por três motivos. O primeiro motivo é porque os pais têm menos tempo para eles e para estar com os seus filhos, e é junto dos filhos que vão encontrar as respostas certas, ao observá-los e estando com eles. O segundo motivo é porque estamos num mundo cada vez mais complicado, mais rápido e mais acelerado. Há muitos agentes que interferem na educação, que não controlamos e que deveríamos controlar. O terceiro motivo é porque nos deixámos enganar — a palavra é um pouco forte — e acabámos por acreditar numa série de coisas que não estão corretas, que são os “neuromitos”. Os “neuromitos” são interpretações mal feitas da literatura da neurociência: essa do “mais e antes é melhor” não é verdade. Na etapa infantil, mais e antes não é melhor porque as crianças precisam de uma quantidade mínima de estímulos num ambiente normal. Um segundo “neuromito” é achar que as crianças só utilizam 10 por cento do seu cérebro ou que têm uma inteligência limitada, pelo que é preciso estimulá-las muito. Mais um? Durante os três primeiros anos há que rodear a criança de um ambiente enriquecido, caso contrário ela não se vai desenvolver. Tudo isto não é verdade. São interpretações mal feitas da neurociência aplicada no âmbito educativo.

A indústria do conselho empacotado geralmente começa com estes “neuromitos”. Se eu disser “o seu filho tem um potencial ilimitado, tem três anos para aprender inglês, chinês e mandarim, violoncelo e ballet”, então vamos pensar que é preciso que ele faça tudo isto rápido, que é preciso adiantar as etapas; ele vai ter de aprender a ler e a escrever com três anos, pelo que, achamos nós, é preciso inscrevê-lo em muitas atividades. Resultado? Os pais ficam stressados e convertem-se em animadores de ludotecas, organizadores de aniversários extravagantes. Isto introduz muito stress na paternidade e na maternidade. Além disso, os pais já têm um horário complicado, um trabalho exigente e um estilo de vida frenético. Isto tem repercussões nas crianças. Temos de simplificar as crianças e a paternidade. Não existem pais perfeitos, existem antes pessoas que gostam muito dos seus filhos, que têm um instinto e uma sensibilidade para perceber o que eles precisam.

Isto está relacionado como o facto de, como escreve no livro, os pais serem entertainers?
Brincar, que é muito mais ativo, não é o mesmo que entreter-se, que é passivo. Na brincadeira a motivação é interna, a criança atua a partir de dentro. Na diversão a motivação é externa, não é ativa — aqui, uma criança não tem curiosidade, fica antes fascinada e isso não é a mesma coisa. No primeiro caso a criança presta atenção, no segundo está desatenta.

Mas porque é que os pais são cada vez mais entertainers?
Porque as crianças aborrecem-se e estão habituadas a ritmos cada vez mais rápidos. Os pais não conseguem competir com um tablet, uma consola ou uma televisão, pelo que convertem-se em seres aborrecidos que não fazem nada. Para competir começam a organizar atividades e passam todos os fins de semana a ir a todos os sítios que existem. Temos de reduzir o nível de stress e o nível de consumo. Educar é alcançar a perfeição de que somos capazes.

"Chamo-lhe a redução da infância. E qual é a consequência da redução da infância? Alarga-se a adolescência. A infância deve ser vivida no tempo certo e, caso isso não aconteça, as pessoas terão de a viver depois."

A hiperatividade e o défice de atenção são problemas recentes, de agora, ou sempre existiram?
Os neurologistas sabem que os estudos dizem que a hiperatividade aumentou muito nos últimos anos. Além disso, os estudos confirmam-nos que a hiperatividade não é só um problema genético mas também um problema que tem que ver com o ambiente. Por esse motivo, e perante um caso destes, é preciso tentar reduzir a quantidade de estímulos externos a que as crianças estão sujeitas. Deve-se fazer isto como medida preventiva e como uma solução que precisa de ser experimentada antes da medicação.

Acha que as crianças são menos felizes agora do que no passado?
Não sei se podemos fazer esta pergunta. Uma criança é filha do seu tempo, ela não sabe distinguir o antes do agora. O que temos de perguntar é se, além de sermos filhos do nosso tempo, somos escravos do nosso tempo? Se não somos, então temos de rejeitar tudo aquilo que não respeita a natureza das crianças, as etapas da infância, a necessidade de silêncio, o mistério e a beleza. Acho que também é importante não cair na nostalgia de pensar que antes era melhor e que agora é tudo um desastre. Ser-se curioso é possível em 2017, como sempre foi e sempre será.

No livro há uma citação que diz que cada vez que uma criança nasce o mundo é novamente posto à prova.
Bem, as crianças estreiam o mundo. É igualmente possível ser-se curioso e espantar-se hoje como era há mil anos. Como pais queremos favorecer essa curiosidade, pelo que nos compete favorecer esse ambiente.

Catherine L'Ecuyer é canadiana radicada em Barcelona e mãe de quatro filhos.

No livro fala dos educadores mecanicistas, aqueles que querem crianças à la carte. Como assim?
Um educador mecanicista é uma pessoa que pensa que a criança pode ser à la carte, que é como uma folha em branco sobre a qual escrevemos o que queremos. Crianças assim são cubos vazios, programadas por nós como se fossem uma aplicação informática. Sabemos que não é assim que deve ser porque as crianças têm esse desejo de conhecer internamente e movem-se sozinhas.

Ainda criamos crianças à la carte?
Penso que essa realidade sempre existiu, mas não podemos generalizar e dizer que todos fazem isso. É preciso ver caso a caso. No livro denuncio esta tendência. O estilo de educação mecanicista de educar consiste em três pontos: memorização mecânica, repetição mecânica e autoridade como a única fonte de conhecimento — “é assim porque eu digo que sim”. É um estilo educativo que não responde à verdade das pessoas.

Escreve que por vezes a criança reage ao exagero de estímulos isolando-se ou ignorando os pais. Em que situações é que os pais devem estar atentos?
A natureza das crianças precisa de uma série de coisas para que estas consigam funcionar normalmente — como o respeito pelos seus ritmos, por exemplo. Quando damos às crianças ritmos demasiado rápidos, estamos a saturá-las de informação. A consequência é a impulsividade. Maria Montessori chamava a isso “gritos da natureza”, qundo uma criança reclama o que a sua natureza reclama. Às vezes, estes gritos são entendidos pelos pais como má educação, capricho ou rebeldia. O trabalho dos pais consiste precisamente em discernir o que é capricho do que é grito da natureza.

"Temos de simplificar as crianças e a paternidade. Não existem pais perfeitos, existem antes pessoas que gostam muito dos seus filhos, que têm um instinto e uma sensibilidade para perceber o que eles precisam."

Mas o que pode ser um grito da natureza?
É preciso conhecer a criança e as circunstâncias, bem como acreditar no instinto maternal e paternal. Cada pai deve tentar perceber o que a criança precisa e porque se está a queixar.

Nesse sentido, qual é a importância do vínculo de afeto entre a criança e o seu principal cuidador?
É fundamental. Em psicologia, uma das teorias mais aceites e mais documentadas — e sobre a qual se baseiam muitos programas educativos — é a teoria do apego. A teoria diz que as crianças precisam de criar uma vínculo de confiança com o seu principal cuidador para serem seguras, para terem autoestima. Como se estabelece esse vínculo de apego? As crianças têm necessidades e nós conseguimos perceber quais são graças à nossa sensibilidade. Note-se que as crianças desenvolvem dois esquemas mentais: ficam com a autoestima mais elevada [porque sentem-se queridas pelos pais] e, em segundo lugar, percebem que o mundo não é hostil [aprendem a confiar nas pessoas]. As crianças com apego seguro descobrem mais, são mais curiosas, são mais esperançosas, vão mais longe para descobrir; aquelas com apego inseguro são mais retraídas, têm medo de ir mais longe e desconfiam muito — isso têm impacto nas relações futuras. Estes são esquemas que nos acompanham durante toda a vida. O vínculo de apego estabelece-se nos dois primeiros anos.

A autora é consultora, investiga, escreve e dá conferências sobre temas educativos. Tem um MBA da IESE Business School e um mestrado europeu em investigação.

A baixa ou alta autoestima pode ajudar a determinar o quanto a criança é engolida pelos muitos estímulos à sua volta?
Creio que as duas crianças [com ou sem autoestima] podem ser carne para canhão em termos de adição tecnológica. Falamos de crianças pequenas: elas não têm força para conseguir controlar o consumo da tecnologia que é muito potente. A melhor preparação para o mundo digital é o mundo real. O argumento de que é preciso antecipar a introdução das novas tecnologias para um uso mais responsável não é válido porque a criança não está preparada para isso. O uso responsável não se consegue dando tecnologia a uma criança pequena.

Acha que o facto de as crianças desta geração serem digital natives, ou seja, terem nascido na era digital, faz com que se pense assim?
Estas tecnologias estão desenhadas para serem usadas por pessoas com morte cerebral, é muito fácil utilizar uma tecnologia destas. Os nossos avós podem usar isto. A linguagem tecnológica não é a mesma coisa que um idioma, é muito mais fácil. Acho que estamos a sobre-dimensionar o conceito de competência digital.

Como é que se educa uma criança sem interferir com a sua curiosidade?
Não se pode aprender no caos, pelo que é preciso existirem regras. Defendo que a criança descubra o mundo ao seu ritmo quando ainda não há educação formal, mas isso não é incompatível com regras. O importante é que a criança deseje aprender e não que faça o que quer. É muito importante ter um ambiente preparado porque o mundo real tem limites.

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