Índice
Índice
Um brunch no Kramerbooks & Afterwords, perto de Dupond Circle, é uma das melhores formas de começar um domingo em Washington – e não falta quem assim pense. O local tem tudo para atrair uma certa elite intelectual: de um lado é livraria, do outro é bar e restaurante; de um lado encontram-se as últimas novidades e as mais recentes edições das principais revistas literárias e políticas, do outro um espaço relativamente informal onde nos podemos sentar à mesa a folhear o livro que acabámos de comprar, ou que ainda estamos indecisos sobre se vamos comprar. Aqui estamos em território de Hillary Clinton (porventura até de Bernie Sanders), e os sinais estão por todo o lado, dos livros em destaque às bandeirolas visíveis nalgumas casas das ruas das proximidades. Assim como nas conversas à nossa volta, onde não há palavras senão para “o horror” que é Donald Trump.
Naquela zona de charneira entre a Washington dos escritórios e dos múltiplos departamentos do governo federal, a Washington das embaixadas (a portuguesa fica a menos de 100 metros) e os bairros residenciais da elite afluente, tudo condiz com a imagem daquela parte da América que se vê a si mesma como educada, progressiva, liberal, cosmopolita, e ambientalista. Até o único mercado de rua, ali mesmo ao lado, é dedicado à venda de produtos biológicos e fervilhava de gente naquele domingo de manhã.
Entre “Belmont” e “Fishtown”
Aqui estamos em “Belmont”, o lugar imaginário onde um cientista social, Charles Murray, colocou a viver os que têm pelo menos um nível de formação universitária, os que tendem a casar entre si depois de frequentarem as melhores universidades, os que têm bons empregos e formam aquilo a que chama a “nova classe alta”. Não são milionários, longe disso, mas estão bem na vida – e bem com a vida.
Mas mais do que identificar essa “nova classe alta”, o livro de Charles Murray Coming Apart: The State of White America, 1960-2010 (2012) é sobretudo premonitório quando descreve a evolução da “nova classe baixa” branca, aquela que ele imagina a viver em “Fishtown”. Encontramo-la longe das grandes cidades e dos centros de poder, encontramo-la muito especialmente nas zonas desindustrializadas, aquelas que deixaram de oferecer perspectivas de futuro a todos os que, não tendo formação superior, acreditavam que tinham um futuro nas profissões especializadas e nos sectores tradicionais. Encontramo-la por isso entre os que vivem no chamado “rust belt”, a “cintura a ferrugem”, o antigo coração industrial dos Estados Unidos que se estende do eixo Nova Iorque/Filadélfia até aos Grandes Lagos, abarcando estados como a Pensilvânia, o Ohio, a Virgínia Ocidental e parte do Michigan. Estados onde se pode vir a decidir a eleição do próximo dia 8.
A autoestrada Lincoln, a primeira a cruzar o país de Leste a Oeste (ainda antes da mítica Route 66), atravessa esta região e tomar o que dela resta é ir ao encontro daquela parte da América que não está bem com ela própria – que sobretudo não está bem com aquilo que Washington DC, a capital do país, representa.
E isso nota-se mesmo em lugares tão centrais para a história e a mitologia norte-americana como Gettysburg, palco da mais importante batalha da guerra civil, travada nos campos que rodeiam a pequena cidade nos primeiros dias de Julho de 1863. Foi aqui que os estados do Sul estiveram mais perto de ganhar a guerra, e foi aqui que a sua derrota marcou um ponto de viragem no conflito que definiria os modernos Estados Unidos. Tal como foi aqui que Lincoln proferiu, em honra aos que tombaram no campo de batalha, um dos mais marcantes discursos da história do país (e de todas as democracias modernas), aquele cujas palavras encontramos gravadas em inúmeros monumentos: “Todos nós aqui presentes solenemente decidimos que esses homens não morreram em vão, que esta Nação com a graça de Deus conhecerá um renascimento da Liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desaparecerá da face da Terra”.
No sábado em que lá estivemos os inúmeros memoriais que se espalham pelos campos onde se travou a mais sangrenta batalha da guerra civil fervilhavam de gente, o museu estava cheio de turistas e na rua principal as lojas não tinham mãos a medir. Só um lugar parecia triste e quase abandonado: a sede local do Partido Democrata, onde uma meia dúzia de militantes olhava melancolicamente para a agitação em redor. “Gettysburg merece uma melhor representação”, lia-se num dos cartazes afixados junto à porta, mas nenhum dos jovens que ali estavam tinha ilusões: “Aqui vota-se republicano”, disseram-nos como se fosse uma fatalidade. E é mesmo uma fatalidade: naquele condado os candidatos republicanos recebem habitualmente três em cada quatro votos. Os democratas estão mesmo em minoria — uma pequena minoria.
A América onde já se viveram melhores dias
Saindo do perímetro onde a afluência dos visitantes vindos de todos os Estados Unidos para conhecerem aquele lugar histórico ou se fazerem fotografar ao lado da estátua de Lincoln cria uma sensação de prosperidade, seguindo pela velha autoestrada em direcção a Oeste, entramos naquela América onde o tempo parece ter parado e onde não é necessário encontrar fábricas abandonadas para perceber que ali já se viveram melhores dias. O que se passou nesta América passou despercebido a muitos até que o país acordou atordoado com o fenómeno Trump.
William Galston, um antigo conselheiro da administração Clinton com quem falámos no Brookings Institution, um dos mais importantes think tanks de Washington, encontra-se entre os que não ficaram demasiado espantados com o sucesso do milionário nova-iorquino, pois considera que “o triunfo de Trump não foi uma surpresa para todos os que há décadas estudam a decadência do sector industrial e a estagnação dos salários”. Esses perceberam que, enquanto as grandes cidades se estavam a tornar em centros financeiros, culturais e de produção de conhecimento, o que permitiu um verdadeiro renascimento urbano, as coisas estavam a passar-se de forma bem diferente nas cidades mais pequenas. Só que, acrescenta, “como aí não há grandes jornais, nem canais de televisão, essa evolução foi como que invisível”. Ou seja, nunca foi notícia.
Mesmo os partidos, apesar de o sistema americano favorecer a escolha de representantes directamente pelas bases, foram incapazes de compreender o que se estava a passar. Os democratas desde o tempo de Reagan, na década de 1980, que têm vindo a perder influência nestes sectores do eleitorado, mas como têm compensado essa erosão com o crescente apoio eleitoral das minorias (negros e latinos) não deram atenção ao que se estava a passar. Já os republicanos, que desde Reagan se tornaram um partido que apoia de forma vigorosa o comércio livre, não tinham disponibilidade para perceber que tinham cada vez mais eleitores que começavam a sentir-se inconfortáveis com esse mesmo comércio livre. Este ano esta dessintonia entre as bases e Washington “rebentou a barragem e impôs a sua vontade no interior do Partido Republicano”, explica-nos William Galston, alguém que recorda bem o seu tempo de estudante universitário, quando as classes trabalhadoras brancas eram uma das principais bases eleitorais dos democratas, algo que agora se alterou de forma radical.
Mas como é que isso aconteceu? Ele explica-nos:
“Foi uma mudança que ocorreu por diferentes motivos, alguns deles nem sempre bem aceites. Falo, por exemplo, da ascensão da contra-cultura dos anos 60 e 70 no interior do Partido Democrata, uma contra-cultura que antagonizou profundamente as referências culturais dos trabalhadores brancos. Outro factor foi o choque entre os trabalhadores brancos e os trabalhadores negros que derivaram do movimento dos direitos civis. Os negros naturalmente conquistaram a parte que lhes pertencia na organização do poder e isso fez-se à custa dos seus vizinhos das classes trabalhadoras brancas, tendo chegado a haver choques, por vezes violentos. Finalmente, esses trabalhadores industriais também tendem a ser fortemente nacionalistas, e leva-os a desconfiarem das críticas, sobretudo as mais radicais, à política externa dos Estados Unidos. O conflito no interior do Partido Democrata sobre a guerra do Vietname, que teve episódios violentíssimos, foi outro factor que levou ao desligamento de muitos trabalhadores industriais.”
Para ilustrar esta evolução Galston recorda-nos o fenómeno dos chamados “Reagan democrats”, trabalhadores industriais, de cidades mais pequenas, que logo no início dos anos 1980 começaram a trocar o Partido Democrata pelo Republicano. Mais: sublinha que em 2012, quando o candidato republicano era Mitt Romney – “alguém que não era de todo um candidato populista” –, este conseguiu 60% dos votos dos trabalhadores industriais brancos.
O ressentimento anti-globalização
Mas a verdade é que estes eleitores iam trocando os democratas pelos republicanos mais por terem deixado de se identificar com o partido de Clinton e Obama do que por aderirem genuinamente à agenda política do partido de Reagan e dos Bush. O que Donald Trump agora fez foi capturar a imaginação dessa parte do eleitorado e explorar a sua revolta contra as elites de Washington com base no mais virulento dos discursos anti-globalização, que designa sempre como “globalismo” e apresenta como sendo a origem de todos os males.
Paradoxalmente, essa nunca foi a linha dos republicanos nas últimas três décadas, período em que mais depressa defendiam o comércio livre contra, por exemplo, as tentações proteccionistas protagonizadas pelos sindicatos, tradicionais apoiantes dos democratas. Os seus líderes estavam contentes por conseguirem cativar essa parte do eleitorado, mas não perceberam que não estavam a falar para ela nem a representar as suas inquietações, pois hoje as sondagens mostram-nos que a percentagem dos que se opõem à globalização é maior entre os eleitores republicanos do que entre os democratas.
Trump, pelo contrário, apostou tudo em falar por e para esse eleitorado, para toda essa gente que está claramente “zangada” com a elite dirigente e receosa do rumo que o país leva. Não lhes falou dos sucessos da nova economia nem da diminuição da criminalidade nas grandes metrópoles – falou-lhes das fábricas que fecharam “porque se mudaram para o México”, da insegurança que aumentou nas pequenas cidades e dos empregos que os imigrantes estariam a “roubar”.
É contudo importante notar, como faz David Wessel, director do Brookings Hutchins Center on Fiscal and Monetary Policy, que “as pessoas que estão zangadas não são irracionais. A verdade é que a economia não está a entregar resultados a uma grande quantidade de pessoas comuns. Basta pensar que um trabalhador a tempo inteiro com um rendimento situado a meio da tabela ganha hoje menos do que há quatro décadas. Esta incapacidade de distribuir rendimento aos segmentos médios da sociedade é especialmente preocupante. De resto, se olharmos para quem votou pelo Brexit, vamos encontrar precisamente o mesmo tipo de eleitorado”.
Mas depois há ainda outro factor muito importante, e esse é psicológico: Trump dirige-se a sectores da população que no passado tinham a percepção de que controlavam o país e que agora já não controlam – e que perderam esse controlo sobre o futuro do país (e das suas vidas) por causa das mulheres, dos imigrantes e das minorias. “No seu slogan, ‘Make America great again’, o mais importante é o ‘again’”, sublinha David Wessel, que acrescenta: “No fundo, o que muitos desses eleitores querem fazer é que o tempo volte para trás, pois têm a ilusão de que fazendo regressar o mundo aos anos 1950 ou 1960 seria como regressar a uma época dourada, quando na verdade a América não era melhor nesse tempo”. Contudo, acrescenta Daniel Drezner, da Fletcher School of Law and Diplomacy da Universidade de Tufts, “os mais velhos tendem a ser sempre mais atreitos a argumentos nostálgicos, que remetem para visões idealizadas do que seria o passado”, e a verdade é que há cada vez mais pessoas de idade em sociedades como os Estados Unidos, sendo que essa parte do eleitorado até tende a abster-se menos em eleições nacionais.
Esses eleitores também têm mais dificuldade em aceitar que a indústria moderna já não é como a que fez os anos dourados do “rust belt”. “A grande indústria baseava-se em enormes contingentes de mão-de-obra, e isso era bem evidente em sectores como o siderúrgico ou na exploração do carvão”, explica William Galston. “Hoje, os Estados Unidos ainda produzem aço, mas as fábricas estão quase totalmente automatizadas, pois é a única forma de serem competitivas. O número de mineiros corresponde a apenas um quinto do que era há 50 anos, mas a produção não diminuiu 80%, nem nada que se pareça, já que a tecnologia permite extrair carvão utilizando muito menos trabalhadores. Por isso, mesmo onde as fábricas não desapareceram já não vemos 400 ou 500 trabalhadores a passarem pelos portões às oito da manhã. Já não é assim que funciona.”
A evolução demográfica favorece os democratas
Ao mesmo tempo que aqueles que sentem ser os “perdedores” neste processo – mesmo quando essa percepção corresponde sobretudo a uma ilusão – se juntam a Donald Trump, os democratas têm vindo a formar aquilo que Galston define como “uma coligação muito interessante” e por vezes surpreendente: “Por um lado, têm o apoio da alta classe média, dos quadros e trabalhadores mais educados, que no passado apoiavam mais depressa os republicanos; por outro lado, esses grupos sociais relativamente privilegiados estão hoje numa coligação com grupos minoritários – negros, latinos, asiáticos – e também com aquilo a que chamo os jovens adultos, que é hoje um grupo importante, que forma de longe a geração etnicamente mais variada de toda a história dos Estados Unidos”.
Ou seja, aqueles que Charles Murray vê a viverem em “Belmont” tendem a estar agora do mesmo lado não da classe média baixa branca e pouco educada de “Fishtown” – os “white without a college degree” que formam o núcleo duro dos apoiantes de Trump –, mas daqueles que podendo até viver nessa mesma “Fishtown”, ou mesmo numa “Fishtown” mais segregada e mais pobre, pertencem a um grupo minoritário. Mais: são aqueles que muitos desses brancos sem grandes horizontes de vida sentem que podem ameaçar os seus empregos ou que contribuem para baixar os salários.
Ora a verdade é que há décadas que nos Estados Unidos os ventos da demografia sopram a favor das minorias. “Os Estados Unidos estão a passar por uma revolução demográfica”, explica William Galston. “Tivemos a nossa primeira grande revolução demográfica no meio século que decorreu da década de 1880 à década de 1920, época em que a percentagem de imigrantes na população americana triplicou, o que provocou uma reacção nativista que levou a leis muito restritivas, aprovadas em 1924. As portas de entrada foram praticamente fechadas, e assim permaneceram durante 41 anos, até 1965, quando uma nova lei não só reabriu as portas à imigração como permitiu a chegada de gente de outras origens, isto é, de países não europeus”.
Os que começaram a chegar desde esse momento de viragem não são apenas latinos vindos do sul do Rio Grande. Há também muitos asiáticos, sobretudo indianos e paquistaneses, mas também caribenhos e africanos. E nem todos se arrumam na parte menos afluente da sociedade, pois os asiáticos tendem a fazer boas carreiras académicas e hoje dominam mesmo algumas profissões, com chineses e japoneses a encherem os departamentos de física ou matemática e os indianos e paquistaneses a tomarem conta dos hospitais.
Politicamente, esta revolução demográfica tende a favorecer os democratas, pois o seu partido é visto como acolhendo a diversidade, ao mesmo tempo que o Partido Republicano é visto como repelindo a diversidade. “Os republicanos transformaram-se num partido quase exclusivamente de brancos”, concretiza Galston, socorrendo-se dos estudos que mostram que é aí que se concentra o seu apoio. Nesta campanha, a percepção de que os republicanos são pouco hospitaleiros para os imigrantes agravou-se com a retórica de Trump, contrariando anos de esforços dos sectores do partido que procuravam abri-lo às minorias, em especial aos latinos.
Dois países que já não falam um com o outro
A clivagem entre estas “duas Américas” não tem parado de se aprofundar, alimentada quer pela extrema acrimónia no clima político de Washington, quer pela progressiva pulverização e “guetização” do espaço público.
“Desde a reforma da segurança social, ainda na administração Clinton, que não vemos uma grande reforma a ser aprovada pelos dois partidos”, recorda-nos Mark F. Plattner, fundador e co-editor do Journal of Democracy, no National Endowment for Democracy. Nos últimos anos, com um Presidente democrata na Casa Branca e as duas câmaras do Congresso – Câmara dos Representantes e Senado – dominadas pelos republicanos, o bloqueio foi quase total e Plattner lamenta que Obama não tenha governado mais ao jeito de Clinton, que chamava os líderes do Congresso e negociava directamente com eles. “Clinton ia jogar golfe com os republicanos se isso fosse necessário para obter um compromisso, mesmo quando estava debaixo de fogo por causa do caso Monica Lewinsky. Ele gostava genuinamente de fazer política. Obama, podendo ter outros dotes políticos, preferia ir jogar golfe com os amigos…”
Galston corrobora esta ideia: “Os republicanos, por vários motivos, desde o início da administração Obama que não queriam negociar, pelo que o Presidente teria de ter feito muito mais esforço para conseguir compromissos do que aqueles que fez. É uma pena que não tenha feito esse esforço.”
Mas a responsabilidade não pode ser apenas assacada aos líderes do Congresso e à Casa Branca: o ambiente político e mediático é também cada vez menos favorável a compromissos. Jay Caruso, um colunista conservador de publicações como RedState, National Review e Conservative Review, considera que se perdeu – e ele dirige-se sobretudo aos republicanos – a noção de que em política pequenos passos incrementais, conseguidos através de compromissos, são melhores do que bloqueios intransponíveis por ambos os campos se barricarem em posições de princípio inegociáveis. “Em vez de saudarem as pequenas vitórias, os radicais da Fracção gritam logo traição e atacam o ‘establishment’ por ‘trabalhar com Obama’ e ‘arruinar o país’, o que faz com que hoje qualquer pequena vitória seja uma raridade, uma relíquia, pois a Fracção só aceita vitórias totais”, escreveu por altura da convenção republicana.
A Fracção a que se refere é o mundo dos bloggers e animadores de programas de rádio que tornaram o ambiente político irrespirável. Pior: que estão a contribuir para o desaparecimento do espaço público como aquele terreno comum em que todos falam com todos e no fim se escolhe democraticamente entre propostas e ideias concorrentes. A degradação desse espaço público é mesmo uma das preocupações de Mark F. Plattner, que até já lhe dedicou um pequeno ensaio no Journal of Democracy.
“O que se passou não foi apenas a ‘invisibilidade’ nos grandes órgãos de informação das comunidades que estavam a ficar para trás e que agora acorrem em massa aos comícios de Trump, um mea culpa que já começa a ser feito por algumas das grandes referências do jornalismo”, disse-nos no seu escritório em Washington. “O que se passou, o que se está a passar e o que provavelmente vai continuar a passar-se é que esses grandes órgãos de informação, das cadeias de televisão aos grandes jornais, já não chegam a grande parte dos americanos. As suas fontes de informação são os canais por cabo, os blogues e as redes sociais, um ambiente onde não há a preocupação de colocar todos a falar com todos, antes se fecham na suas respectivas conchas”.
Plattner dá como exemplos a Fox News à direita e a MSNBC à esquerda, mas estes canais até são moderados quando comparados com outras plataformas. A internet, acrescenta, em vez de facilitar a conversa no “espaço público” que permite o saudável funcionamento da democracia, está a permitir que as pessoas encontrem as suas “almas gémeas” ideológicas mesmo que elas vivam do outro lado dos Estados Unidos e passem a falar apenas dentro do seu grupo de afinidades e ideias. Há assim uma atomização do espaço público, uma divisão por “claques” que não só não ouvem os argumentos da outra parte, como nem sequer tomam conhecimento dos mesmos factos, vivendo em realidades paralelas que se auto-reforçam internamente e auto-excluem externamente.
Uma mistura explosiva
Isso ajuda a explicar tanto o ambiente que, no campo republicano, permitiu o sucesso de Donald Trump, como, no campo democrata, permite entender o sucesso de um político considerado marginal como Bernie Sanders e a adopção por Hillary Clinton de uma plataforma ainda mais à esquerda que a de Obama, pelo menos nas propostas que avança, como notou William Galston. Este cientista político trabalhou, como já referi, na administração Clinton e por isso não surpreende que lamente o desaparecimento dos democratas centristas, os “new democrats” do marido da actual candidata.
Ou seja: as “duas Américas” não deixaram apenas de ser capazes de falar uma com a outra, estão a chegar ao ponto em que nem sequer se conhecem uma à outra. Tem isto solução?
“Não sei se 2016 será um ano-viragem ou apenas um solavanco na estrada”, responde Daniel Drezner. “Não sei se o ressentimento político que resulta da falta de crescimento, não sei se esse ressentimento que tem mostrado ser um terreno fértil para o populismo vai desaparecer depois deste ciclo eleitoral. Não sei mesmo.”
Mas pelo tom com que nos falava e pela expressão do rosto, era como se soubesse – e soubesse que não vai desaparecer. E William Galston como que nos explica esse pessimismo: “Nas democracias industriais avançadas ainda não se percebeu como reagir aos desafios que a globalização criou, sobretudo ao destruir as referências e as esperanças das classes médias baixas, das classes trabalhadoras. Também ainda não sabem como lidar com os gigantescos fluxos de populações a que estamos a assistir. A mistura destes dois ingredientes criou o tipo de ambiente tóxico em que estamos mergulhados.”
Falávamos em Julho, desde então concretizaram-se muitas das piores previsões sobre o que se mal podia acontecer nesta campanha, mas a poucos dias das eleições os barómetros eleitorais dão a Trump as mesmas hipóteses de vencer do que nessa altura: uma em quatro. O que me leva a terminar com a última frase que anotei da conversa com William Galston, precisamente depois de ele notar que eram essas as hipóteses de Trump: “Ainda acredito que as forças sãs vão chegar à frente no dia das eleições, mas não tenho a certeza, não tenho a certeza…”
O Observador esteve em Washington no quadro de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento