O que disse Marcelo nas entrelinhas
Há uma reflexão crítica que ocorre todos os anos pelo menos pelo 25 de Abril mas neste começo de quinquagésimo ano há mais razoes para nos debruçarmos sobre essa reflexão. Há muito quem sinta que o 25 de Abril ficou incompleto, imperfeito, está por cumprir (…) uns porque, em rigor, teriam preferido que não tivesse existido o 25 de Abril (…) e que o que veem como tendo sido o 24 de abril, em muitos dos seus traços globais, não existiu é um refazer da história”
A intervenção foi uma tentativa de colocar água na fervura — e durante a manhã tinha escaldado — num Parlamento com um fratura exposta de forma ainda mais visível numa cerimónia como a evocativa do 25 de Abril de 1974. O Presidente convocou todos para “uma reflexão crítica” à porta dos 50 anos da Revolução (daqui a um ano), apontando desgostosos de um lado e do outro: seja pela mudança de regime, seja pelas frustrações sobre o que o novo regime não concretizou. Começou pelos nostálgicos, avisando que é preciso “respeitar” quem se sentiu sem chão, mas também para advertir que “o tempo não volta para trás”. Foi mesmo radical ao acusar esta frente de querer “refazer a história” quando falam no tempo que antecedeu a Revolução, ou seja, no “24 de abril”.
Quem como eu pôde viver o fim do Império, aqui ou na lonjura desses impérios, e observar por fora e por dentro o fim da ditadura, sabe que a realidade era outra”
Não foi a primeira vez que Marcelo recorreu à sua própria biografia pessoal numa cerimónia destas, lembrando que também ele “viveu o fim do Império” e pôde “observar por dentro e por fora o fim da ditadura”. O seu pai, Baltazar Rebelo de Sousa, foi ministro de Marcello Caetano e governador de Moçambique e essa experiência serve aqui a Marcelo para comprovar na primeira pessoa que existia uma realidade que não chegava a ser pública, com Portugal cada vez mais isolado no plano internacional sobre a independência da Guiné Bissau, a “situação político-militar extremamente grave em Moçambique”, enfim, de “uma ditadura que estava exausta e que, ainda que no marcelismo, não tinha conseguido o mínimo de renovação”.
Há os que consideram que o 25 de Abril de hoje não só é imperfeito, como é frustrante, por razoes que não se prendem com o regresso a um passado impossível. tem a ver com o 25 de Abril que sonharam e não se concretizou ou se concretizou em parte.
No lado oposto aos dos saudosistas do regime anterior, estão os descontentes com o rumo da situação. E se a uns Marcelo reconhece que é preciso “respeitar”, desconstruindo, aos outros, Marcelo diz que não têm toda a razão, desconstruindo-os também. “Como em todas as revoluções ou ruturas, umas triunfam e outras falham. Normalmente nunca de forma total. São vencidas parcialmente”, sublinha. Aqui, Marcelo elenca mesmo cada um dos lados, de Álvaro Cunhal, a Freitas do Amaral, passando por Mário Soares ou Sá Carneiro, para dizer que “é natural que muitos dos que formaram ou aderiram à frente nacional para abrir caminho para outro regime sintam que a sua visão própria ficou por concretizar”.
Ansiava-se e anseia-se por ainda melhor democracia, por mais crescimento, igualdade, melhor educação, saúde, justiça social, solidariedade social, mais ambiente, maior papel da mulher, desempenho de jovens e sectores excluídos ou ignorados pela sociedade, por menor pobreza e falta de coesão esse flagelo que infelizmente marcou todos os períodos, mesmo os de maior expansão, dos últimos 50 anos”
Mas Marcelo tende, ainda assim, a concordar mais com as frustrações destes últimos, elencando mesmo os problemas maiores, com a pobreza à cabeça. E em época de maior desafogo orçamental (défice deste ano mais baixo do que todas as previsões do Governo e a possibilidade de um excedente no próximo ano), o Presidente fez questão de lembrar que nem em tempos de “maior expansão” nos últimos 50 anos, o país conseguiu “reduzir a menos de um milhão e meio o número de pobres”. Isto surge também quando o Governo faz gáudio de ter uma redução “histórica” nesta frente, pegando em números de 2021 — antes da crise lançada pelos picos da inflação e pela guerra.
Faz parte da lógica da democracia e é imposto pelos desafios que se têm sucedido a ritmo extremamente acelerado o haver sonhos e aspirações ou expectativas e, em muitos casos, a não realização desses sonhos, desiludindo e frustrando”
Marcelo não parece estar convencido com o esforço do Governo (e dos anteriores também) no combate à pobreza, mas dá a mão a Costa nas insuficiências numa altura de crise. Com esta frase, dita depois de ter enumerado todas as áreas onde o caminho tem sido curto, alimentando os frustrados com o 25 de Abril, Marcelo apresenta a crise atual como explicação para muitas dessas queixas. Uma justificação que exaspera a oposição — Catarina Martins, na intervenção que fez, falou mesmo numa desculpa que é usada pelo Governo — mas que tem sido a linha de argumentação de Costa quando fala nos vários problemas que os seus governos t~em enfrentado, desde a pandemia à guerra.
A liberdade e a democracia permitiram e permitem que a esmagadora maioria partilhasse sem qualquer hesitação nem dúvida existencial a Ucrânia e o povo ucraniano agredido de forma bárbara e em valores e princípios fundamentais. mas ainda assim houvesse vozes claramente minoritária dissonantes
Em todo o discurso, Marcelo tenta livrar-se de uma linha mais fatalista, colocando sempre a solução para as insuficiências sempre no meio da democracia. E dá vários exemplos de dissonâncias que existiram, sem que isso pusesse em causa a “esmagadora maioria”. Foi isso que expressou na condenação da invasão da Ucrânia pela Rússia, exemplificou fazendo direita e esquerda aplaudirem, com um PCP mais incomodado sentado no plenário. E deu outro exemplo ainda, desta vez de junção insuspeita de partes, como a que aconteceu em 2003, com Freitas e Soares a “desfilarem nas ruas” pela oposição à intervenção norte-americana do Iraque.
O supremo senhor do 25 de Abril e, portanto, garante da estabilidade chama-se povo. E o povo vai escolhendo com sentido de Estado, com bom senso, com moderação e com boa educação ao longo do tempo o 25 de abril que quer”
Numa altura em que o próprio Presidente muita tinta tem feito correr sobre a eventualidade de eleições antecipadas, surge aqui mais uma vez essa possibilidade. No final de todas as reflexões, há sempre essa possibilidade, a de devolver a palavra ao povo, com Marcelo a conceder-lhe mesmo a sabedoria sobre o que é a “estabilidade”. Para o Presidente, mais do que as instituições democráticas, o “garante da estabilidade” é o povo. E aqui, com as referências ao “sentido de Estado” e à “educação”, faz logo a ponte para onde queria chegar na segunda parte da sua intervenção.
Este 25 de Abril tem de especial termos tido entre nós alguém que representa a primeira das primeiras descolonizações de Portugal, é um presidente da República Federativa do Brasil. o simbólico representante da pátria irmã e não apenas um titular de cada instante histórico, eleito por quem tinha direito a elegê-lo, o povo brasileiro e não outro povo ou partes maiores ou menores de outros povos”.
Sempre que a referência ia direita ao Chega, PS unia-se ao PSD nos aplausos à intervenção de Marcelo. Mas a controvérsia com a presença de Lula no Parlamento nesta data concreta não se cingiu ao partido de André Ventura, a IL também condenou (e esteve representada nos mínimos enquanto o presidente brasileiro discursou, antes da sessão solene do 25 de abril) e o próprio PSD também se mostrou desconfortável com a junção de tudo numa única cerimónia — tal como o BE. Lula acabou por discursar antes, numa sessão solene de boas-vindas à parte, mas Marcelo voltou a tocar nessa ferida para explicar como, na sua perspetiva, a junção fazia sentido. “O 25 de Abril começou por causa da descolonização”, por isso “faz todo o sentido o encontro de hoje” porque o Brasil “foi o percursor da descolonização 200 anos antes”.
Também serve para olhar para trás e assumirmos plenamente a responsabilidade pelo que fizemos, não é apenas pedir desculpa — devida sem dúvida por aquilo que fizemos — é um assumir das responsabilidades para o futuro daquilo que de bom e de mau fizemos no passado“
Mais uma vez em dissonância com a ponta mais à direita do hemiciclo, Marcelo assumiu a necessidade de uma responsabilização nacional pelos excessos cometidos nas antigas colónias, que vá além do simples pedido de desculpa, que considera insuficiente — uma via que e repudiada pelo Chega. Aliás, o direcionamento do que dizia a esta bancada foi claro quando, nesta fase da intervenção, Marcelo usou como exemplo o envolvimentos das diversas comunidades de imigrantes no tecido social nacional, refeindo mesmo que “descontam para a Segurança Social”.
Como podemos nós, pátria de emigração que tem de ser mais solidária com os dramas dos emigrantes, sermos egoístas perante os dramas dos emigrantes que são dos outros”
A frente do Chega anti-imigração foi uma das principais vítimas desta intervenção presidencial, com Marcelo a recorrer novamente há história pessoal para falar na coexistência na sua família de duplas nacionalidades, uma neta brasileira e um filho a viver no Brasil, ou mesmo um avó que no início da década de 70 fugiu “da miséria das terras de Basto”, para o Brasil e depois para Angola. Aqui a maioria socialista levantou-se para aplaudir, juntamente com o PSD e as restantes bancadas da esquerda.