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Há 25 anos, duas semanas e uns quantos dias, quando me sentei para assistir em direto ao último episódio de “Seinfeld”, não era – ao contrário do que a matemática poderia levar a crer – dia 12 de maio de 1998 e nem sequer vi o último episódio de “Seinfeld”, muito menos em direto. Não há nada a temer – este não é um texto sobre o multi-verso ou, como então se dizia, universos paralelos. A impossibilidade contida na frase de abertura tem raízes num fenómeno mais antigo: a alteração dos meios de consumo do entretenimento filmado, forma pomposa de dizer que hoje vemos de maneira diferente gente a mexer-se e a falar.
Por esses dias pré-globalização, não havia propriamente diretos dos EUA, exceto em casos muito específicos, como finais da NBA ou eleições ou guerras (resumidamente: guerras). Uma série americana começava em – digamos – 1989, como fora o caso de “Seinfeld”, e começava a passar em Portugal lá por 1995. Aqueles de nós que ocasionalmente tinham acesso a imprensa estrangeira (numa ida a Londres, numa ida aos Restauradores, em Lisboa, por caricato que pareça) sabiam da existência da série, mas pouco mais: o nome “Seinfeld” não nos dizia nada, Larry David (co-autor da série e posteriormente criador de “Curb Your Enthusiasm”) muito menos; vivíamos, simplesmente, apartados do mundo.
Quando finalmente a TVI começou a passar “Seinfeld”, tínhamos direito a dupla dose diária, enquanto os americanos haviam andado nove anos a levar com um episódio semanal; era, antes de mais, uma série de culto entre os in the know. Eram tempos que as páginas de cultura filmada eram ocupadas por uma disciplina arcaica chamada cinema; ser crítico de TV concedia um lugar na hierarquia social abaixo de crítico musical; e facilmente aposto que a escassa informação que encontrávamos na imprensa nacional era copiada de jornais estrangeiros (eventualmente comprados em Londres, ou numa loja nos Restauradores, em Lisboa).
Então porque é que não liam sobre “Seinfeld” na internet, porque é que não sacavam a série no Pirate Bay?, pergunta o o jovem milenial. Bom, jovem milenial, porque essa coisa da internet (ou da world wide web, para ser preciso) não existia ou existia apenas numa forma tão primitiva que a primeira vez que tentei sacar uma canção (ilegalmente e apenas para efeitos científicos) tive de deixar o PC ligado dias a fio. A ideia de clicar e uma série ser reproduzida em streaming no nosso PC (mais ainda um PC portátil) era tão absurda que nem sequer fazia parte do imaginário da ficção científica. Then again, estávamos a começar a descobrir que podíamos usar um telefone dentro do bolso das calças, pelo menos se o bolso das calças tivesse espaço para um tijolo. Ainda nem sequer havia emojis para nos ajudar a transmitir que emoção queríamos passar – tínhamos de usar palavras.
Menos de um ano depois do fim de “Seinfeld”, estreava-se a série “Os Sopranos” e desde então que ouvimos, mais semana menos semana, que estamos a viver “A Era Dourada da Televisão” e que “O Cinema Morreu”. Como todas as Grandes Proclamações Generalistas, a ideia de que vivemos A Era Dourada da Televisão está tão certa ou errada consoante o ângulo que usemos para definir o que é bom ou mau; os jovens da altura dirão que nunca mais houve nada como “Seinfeld” ou “Os Sopranos” ou “The Wire”; os mais novos qualificarão estas opiniões como reacionárias; os meus amigos Luís Miguel Oliveira e Pedro Mexia (que entre ambos não devem ter visto mais do que duas séries na vida) nem sequer entenderão o ponto da discussão, para mais quando há um Rohmer para rever na Cinemateca.
Mas algo aconteceu, sim, ali entre 1989 e 1999, algo que permitiu que existisse os Sopranos, que existisse “The Wire”, que haja, hoje, milhões de pessoas órfãs de “Succession”, a primeira série em quase duas décadas a estar à altura das obras-primeiras televisivas originais, ao ponto de colocarmos a hipótese de ter sido o mais extraordinário entretenimento televisivo de todos os tempos (calma, revelarei uns parágrafos à frente qual o mais extraordinário entretenimento televisivo de todos os tempos e porque é que é “The Wire”).
O que aconteceu entre 1989 (data do início de “Seinfeld”) e 1999 (data do início d'”Os Sopranos”) é que o espectador de televisão aprendeu que uma má pessoa pode não ser uma boa pessoa e ainda assim ser uma personagem interessante. Mais: aprenderam que a dicotomia má/boa pessoa era extremamente limitada para avaliar a complexidade humana. Quando víamos Jerry, George, Elaine e Kramer a tratarem mal as pessoas que passavam pelas suas vidas, a acabarem uma relação pelo mais ridículo dos motivos, a darem cabo de um negócio de sopas só para se vingarem do dono com mau feitio, era difícil defender que eram boas pessoas; eram cínicos, mesquinhos, profundamente individualistas (exceto entre eles os quatro); não defendiam causa nenhuma e tinham interesses superficiais, como gostar de uma mulher bonita por ser bonita ou arranjar bilhetes para um jogo de hóquei no gelo sem pagar. Até que nos apercebemos do seguinte: eram exatamente iguais a nós e, mais ainda, eram exatamente iguais àquilo em que nos tornámos.
“Friends” nunca se atreveria a ser mesquinha
Antes da televisão, era necessário ir ao cinema, para ver uma história filmada; com o tempo, o cinema tornou-se mais sofisticado e as suas personagens também. Quando Ford realiza “A Desaparecida”, o grau de camadas que um plano ou um filme comportava já era de uma sofisticação quase literária. Mas ir ao cinema, sendo entretenimento popular, ainda assim não era tão de massas quanto ver televisão, pelo menos a partir do momento em que a televisão chegou a todos os lares. No caso da TV, havia ainda um caveat: uma casa tinha uma TV, pelo que os programas eram escritos “para a família”. Ambiguidade moral, personagens que fossem simultaneamente boas e más, tudo isso estava fora do scope de uma série. Compare-se “Seinfeld” com “Friends”: não é que não haja sexo gratuito em “Friends”, mas em “Seinfeld” acabam-se relações porque uma pessoa come uma ervilha de cada vez, um grau de mesquinhez a que “Friends” nunca se atreveria; nem as personagens femininas de “Friends” teriam sexo com tantos homens como Elaine, muito menos andariam (como Elaine) doidas pela cidade à procura do seu método contracetivo.
“Seinfeld” não era propriamente feminista – era apenas contra tratar as audiências como criancinhas a quem fosse necessário pregar moral. Nove anos de “Seinfeld” prepararam-nos para “Os Sopranos”, que nos colocou na situação de sentirmos empatia pelo líder de uma máfia de Nova Jérsia, simplesmente porque as suas atividades criminais estavam enquadradas pelos ataques de pânico que sofria, a sua má relação com os pais e a dificuldade em lidar com a sua vida familiar (ou conjugá-la com ter de matar um tipo durante uma road trip com a filha, o que, parecendo que não, não era simples).
“Os Sopranos” ensinaram-nos que o horror, o Mal, pode vir embrulhado na mais aparente normalidade – imaginem que Tony Soprano era, digamos, dono de uma empresa de recolha de lixo e que em vez de mandar matar pessoas, volta e meia irritava-se e dava um banano numa pessoa da concorrência: não estaríamos longe do típico pato-bravo tuga que enriqueceu durante o final dos anos 80, início dos anos 90.
Convém recordar que foi a HBO quem produziu “Os Sopranos” – isto é, não era um produto desenhado para o grande público, apenas para assinantes da produtora; mas a qualidade da escrita foi trazendo mais e mais pessoas e, com o tempo, a série tornou-se um êxito colossal. “Os Sopranos” mostrou que a vantagem de uma série face ao cinema era que, tal como um romance, dava oportunidade a que as personagens crescessem, mudassem (ou não), se tornassem mais complexas, com mais contradições.
Ou permitia saltar de personagem em personagem até se criar um mural representativo de toda a sociedade – que foi o que “The Wire” fez: em vez de se centrar numa única personagem, “The Wire” começou por apontar a lente ao tráfico de droga nas ruas e, de época para época, seguiu o rasto do dinheiro, passando por portos (marítimos, mesmo), jornalistas, sindicatos, políticos, polícias, etc, sem medo de deixar cair personagens, de matar personagens, o que na prática significava: sem medo de ser realista.
Um consenso impossível de atingir
“Seinfeld” acabou em 1989, “The Wire” começou em 2022 – nesses três anos forjou-se aquilo a que até hoje chamamos A Era Dourada da Televisão; mas o epíteto só começou a ser utilizado mais tarde, quando as produtoras alocaram mais dinheiro às séries de TV, a produção (os cenários, as câmaras, os atores) melhoraram em termos médios e cada episódio de qualquer série média passou a assemelhar-se a um filme de Hollywood de médio orçamento.
Este é o ponto de discórdia: não faltará quem afirme que “Os Sopranos” ou “The Wire” estão datados e enumere dezenas de séries feitas desde então e que são melhores, desde “Breaking Bad” ao extraordinário “Euphoria”, com a magnífica Zendaya no papel principal, enquanto adolescente junkie incapaz de lidar com o mundo atual (um mundo descrito com uma crueza, no que toca a género, sexo e drogas, capaz de aterrar o mais libertário dos pais).
É impossível um consenso nesta matéria – será “Mad Men” uma obra-prima ou uma boa ideia que se deixou arrastar ou um manifesto machista ou, pelo contrário, um libelo feminista? Fazemos melhor em ver “Mad Men” ou em gastar o nosso tempo com “I May Destroy You”, que conhece melhor do que ninguém o seu lugar de fala? E “Fleabag”, não terá feito mais pelas mulheres que do que (digamos) a Elaine de “Seinfeled”? “The Office”, na versão americana, não mostrava que pode haver redenção para pessoas com pouco consciência social e escassa noção de si mesmas? Não nos ensinava que podíamos ser disfuncionais mas que podíamos aprender a ser uma família, nessa disfuncionalidade?
E depois alguém lembra “Veep”, ou “Arrested Development”, ou “When They See Us” ou “Sete Palmos de Terra” ou “House of Cards” e todas elas tiveram momentos muito bons e se calhar “Better Call Saul” é melhor do que a série da qual nasceu, “Breaking Bad” e porque é que este senhor que escreve não coloca “Breaking Bad” ao lado d'”Os Sopranos” ou de “The Wire”? Porque é burro, só pode. Serei burro, mas há uma razão: apesar de tudo, “Os Sopranos” e “The Wire” não obedeceram a nenhuma lógica comercial, não obedeceram a outra lógica que a de dizer o que tinham a dizer e depois ir embora. “Breaking Bad” podia ter metade dos episódios e não se perdia nada – a viagem da personagem principal (e das secundárias) não seria diferente, o universo moral das mesmas não sairia engrandecido ou diminuído.
“Succession”: nem mais um segundo do que o necessário
Talvez seja isso que torna “Succession” a extraordinária série que é: recusar-se a ficar por mais um segundo do que o estritamente necessário para dizer o que tem a dizer. Há uma fonte primordial a que “Succession” vai beber (Rei Lear, de Shakespeare), e um caso concreto que usa para se inspirar (Rupert Murdoch). Há uma família com um império de media (entre outros negócios), cujo patriarca parece (ao início) estar em estado terminal. Tem quatro filhos e nenhum deles é, aparentemente, uma escolha óbvia para suceder ao pai ao leme das empresas que criou quase do zero. (Rupert Murdoch, já agora, herdou do pai um pequeno jornal australiano – no mundo real a esmagadora maioria dos multi-milionários já eram milionários à nascença).
O tom, inicialmente, não está muito definido: parece um drama pesado, e lentamente vai-se soltando: a ambição dos filhos (cada um quer o lugar do pai) vai sendo escancarada e é impossível não rir com a sequência de palavrões, one-liners catchy e situações improváveis (para as pessoas de classe média, não para os ricos) em que os guionistas vão colocando as personagens. (Talvez ajude saber que a produção teve como consultores filhos de ricos envolvidos em processos de sucessão – entre os quais um dos próprios filhos de Rupert Murdoch, o que é de esquerda, claro.)
Desde esse momento, algures a meio da primeira época, que “Succession” é descrito como uma comédia negra sobre o mundo dos ricos e dos poderosos. Mas a meio da 2.ª temporada o tom voltou a mudar: a rispidez e a agressividade do pai (Logan Roy) em relação aos filhos, a forma como os manipula, colocando-os uns contra os outros, como quem conduz uma experiência para ver quem é o mais killer e, consequentemente, o mais apropriado para tomar o seu lugar, todos esses comportamentos deixam de ser explicáveis apenas pela frieza inerente a gerir um império e algo de mais sombrio começa a pairar: Logan Roy era um abusador, que espancava um dos filhos, que basicamente abandonou os restantes, que nunca lhes deu algo minimamente aproximado de amor e que sempre teve um prazer sádico em fazê-los disputar pela sua atenção.
Talvez na época em que se criou “Os Sopranos” não notássemos isto, mas “Sucession” não é uma afirmação sobre o poder – sim, insinua que o poder, quando em excesso e nas mãos da pessoa errada, torna-se um ativo tóxico; mas, tal como “Os Sopranos” era uma série que se apresentava como uma história de máfia para na realidade se revelar uma história sobre as consequências do machismo tóxico (a violência, em particular), “Succession” apresenta-se como uma história sobre ricos e poder para se revelar uma história sobre abuso: pouco importa qual dos filhos conseguirá ficar com o poder, eles já perderam todos – a única salvação que estes quatro irmãos poderiam ter era simplesmente afastar-se da ideia de vencer a todo o custo, fugirem a sete pés do imperialismo monetário que ocupou o centro da mesa da família a qualquer refeição, e tentarem ser felizes.
Bons e maus guionistas e dinheiro para lhes pagar
Escrevo isto domingo, antes de sair o último episódio de “Succession”, um episódio que só terá derrotados – porque aquelas personagens viverão a vida inteira com a cicatriz causada por uma infância cheia de feridas e não há dinheiro no mundo que cicatrize a ferida emocional de não ser amado pelos pais. Nos próximos dias, milhões de nós ficarão órfãos porque milhões de nós deixarão de ter o semanal motivo de conversa com meia dúzia de amigos ou uma data de desconhecidos na net.
Nunca houve uma Era Dourada da Televisão – como todas as linguagens que por sorte ou acaso foram adotadas pelas massas, as séries de TV tiveram o seu Eureka, o momento em que descobriram que podiam tratar os espectadores como adultos, depois os senhores do dinheiro canalizaram mais fundos para que as séries tivessem o panache do cinema, e à medida que se produziram mais e mais séries foram, inevitavelmente, surgindo mais séries boas, mas numa percentagem cada vez menor face ao total de séries produzidas.
Muito ocasionalmente, como no cinema ao fim de umas décadas, surge uma voz única, que tem uma coisa para dizer e vai embora no momento certo – “Succession” é um desses raros casos em que uma série de televisão serve o seu propósito: dar o tempo necessário para conhecermos as personagens e as vermos evoluir.
No caso, dar o tempo necessário para nos apercebermos que no fundo do poder e do dinheiro está uma história de abuso e negligência emocional de um pai em relação aos filhos (em relação a toda a gente, valha a verdade) e como esse abuso se perpetua na tentativa que os filhos fazem de serem como o pai – essa patética e trágica forma de compensarem o amor que não tiveram é imitar o pai; essa necessidade de o imitar simboliza a incapacidade que cada um tem de ser ele próprio. Nenhum dos quatro filhos sabe existir fora da matriz competitiva e assassina do pai. Nenhum “é”, no sentido ontológico do verbo; numa família que só conhece o verbo vencer, todos perderam.
“Succession” é um desses raros casos em que não se fazem 9 épocas para render o peixe – fazem-se 4 épocas porque é o tempo necessário para dizer o que se tem a dizer; um desses raros casos em que damos por nós a ter empatia por quem supostamente não teríamos (meninos ricos que não têm uma boa ação e só querem ficar à frente de um império), porque nos mostra – de forma paciente, cruel e, por vezes, hilariante – como as pessoas são muito mais complexas do que as dicotomias que usamos para as classificar, são muito mais do que boas ou más, ricas ou pobres, de esquerda ou de direita.
Hoje somos todos órfãos de “Succession” e, consequentemente, da Era Dourada da Televisão, que na realidade nunca existiu — só existem bons e maus guionistas e dinheiro para levar a cabo as ideias destes. E, no caso, o bom senso de saber quando ir embora, algo que parece faltar aos filhos Roy, mas que os executivos da HBO têm de sobra.